O incrível (no sentido etimológico de «algo que custa a acreditar») e lamentável artigo de opinião escrito por José António Saraiva no seu jornal semanal Sol parece querer demonstrar que é provável reconhecer de imediato um homossexual a partir de algumas misteriosas características fenotípicas, exibidas em espaços exíguos («À minha frente, no elevador, está um rapaz dos seus 16 ou 17 anos. Pelo modo como coloca os pés no chão, cruza as mãos uma sobre a outra e inclina ligeiramente a cabeça, percebo que é gay», José António Saraiva in Sol, 9 de Abril de 2012).
Com efeito, cada um é livre de escrever o que bem entender e, evidentemente, também os leitores são livres de julgarem como bem entenderem os autores pelas bitolas que eles próprios escreveram. É, pois, uma pena que se tenha perdido tempo a escrever um texto jornalístico de carácter intolerante em que a palavra gay é usada onze vezes de modo preconceituoso e no qual nada nos seja dito sobre o contexto histórico dessa designação.
Por conseguinte, e à aproximação do dia 25 de Abril, data de liberdade e de igualdade de oportunidades para todos, independentemente de serem heterossexuais ou homossexuais, de esquerda ou de direita, jornalistas ou leitores, tipos que se deslocam de elevador ou tipos que preferem ir pela escada, achei que seria uma boa ideia partir do mote dado pelo artigo de opinião publicado no supracitado jornal e oferecer um contributo muito mais positivo.
A palavra inglesa gay provém do étimo francês gai e ambas já eram usadas no século XII com o mesmo significado: o de alegre ou despreocupado; mas convém esclarecer que gai começou por ser um apelido, antes de tornar-se adjectivo. Em português, esse galicismo entrou no nosso léxico como gaio, que, além de possuir significação idêntica, também é um apelido: neste caso, por via adjectival, ou seja a alcunha tornou-se apelido, embora a genealogia não seja clara no que concerne às origens desta família que, nos estudos heráldicos, surge com as armas dos Góios, um ramo diferente cujo nome de família, provavelmente, terá origem numa corruptela do sobrenome Goes, à qual pertenceu, por exemplo, Estevão Vasques de Goes, um trecentista alcaide-mor de Lisboa (por curiosidade, o humanista quinhentista Damião de Goes ou Góis não parece ter pertencido a esta linhagem, fazendo lembrar que nem sempre a semelhança entre sobrenomes indica a mesma proveniência).
Contudo, a palavra gaio também é o nome de uma ave muito comum na Europa: em português, essa ave, da família dos corvos, chama-se gaio, em inglês chama-se jay e em francês chama-se geai - todas derivações da palavra original gai. O gaio, espécie de corvo colorido, sempre foi conhecido pelos nossos antepassados pela sua capacidade inata de imitar o canto de outras aves e, talvez por essa via, os actores e os artistas de rua já eram chamados de gaios (jays) na Inglaterra seiscentista, mas a designação não tinha nenhuma conotação sexual.
Essa apareceu, em finais do século XIX, em Inglaterra, com a expressão gay house: epíteto dado aos bordéis, mas, lá está, sem nenhuma conotação homossexual que se saiba. (Tinha um significado eufemístico, análogo ao da expressão contemporânea happy ending massage.)
Todavia, a colagem ao sexo homossexual terá surgido mais ou menos na mesma altura, entre os anos 1893 e 1897, mas nos Estados Unidos, nos quais uma grave crise económica abalou o país, retirando o emprego a milhares de pessoas. Entre os hobos, vagabundos que romavam pelo território em busca de pequenos trabalhos, os jovens sem-abrigo dispostos a fazerem sexo com homens mais ricos, em troca de dinheiro, eram conhecidos por gay cats: trocadilho com stray cats; ou seja, eram chamados de gay cats, do mesmo modo que os prostíbulos também se chamavam gay houses, e, neste caso, por serem jovens rapazes sem dinheiro, dispostos a prostituirem-se, a palavra gay começou a ser associada ao sexo homossexual. (No seu romance auto-biográfico The Road, publicado em 1907, o escritor norte-americano Jack London descreve essa realidade em primeira mão, pois ele próprio foi um vagabundo nesse período - e nunca afastou suspeitas sobre a sua suposta homossexualidade.)
Apesar disso, a adopção da palavra gay, enquanto sinónimo exclusivo de homossexual, tanto pelas comunidades homossexuais, como pelo público, em geral, é um fenómeno de meados do século XX: em essência, a partir de 1940, a palavra gay ganhou não só uma difusão inaudita como um cunho distintivo que ainda perdura. Porquê?
Como em tantas outras circunstâncias, em diversas alturas, é muitíssimo provável que tenha sido a cultura popular de entretenimento a dar esse impulso. Neste caso, com a estreia, em 1938, da comédia Bringing Up Baby (Duas Feras) do realizador norte-americano Howard Hawks, com a actriz norte-americana Katharine Hepburn e o actor inglês Cary Grant nos papéis principais. Às tantas, o paleontólogo David Huxley (Grant) vê-se obrigado a vestir um négligé com penas, porque as suas roupas foram roubadas por Susan Vance (Hepburn) enquanto tomava banho. Ao ser confrontado à porta de casa pela personagem Tia Elizabeth (May Robson), o espaventado Huxley reage de uma maneira muito especial, como podem ver no vídeo abaixo.
Considerando que este filme é de 1938 e que a palavra gay se difundiu cerca de dois a três anos depois é provável que se encontre aqui a origem da sua popularidade. Nesta cena, a ambiguidade de sentido da palavra gay é reforçada pelo conhecimento de que Grant nunca se livrou das suspeitas de ser bissexual e de manter uma relação com o actor norte-americano Randolph Scott, que conheceu na rodagem do seu primeiro filme: Hot Saturday, do realizador norte-americano William A. Seiter, estreado em 1932.
Com efeito, cada um é livre de escrever o que bem entender e, evidentemente, também os leitores são livres de julgarem como bem entenderem os autores pelas bitolas que eles próprios escreveram. É, pois, uma pena que se tenha perdido tempo a escrever um texto jornalístico de carácter intolerante em que a palavra gay é usada onze vezes de modo preconceituoso e no qual nada nos seja dito sobre o contexto histórico dessa designação.
Por conseguinte, e à aproximação do dia 25 de Abril, data de liberdade e de igualdade de oportunidades para todos, independentemente de serem heterossexuais ou homossexuais, de esquerda ou de direita, jornalistas ou leitores, tipos que se deslocam de elevador ou tipos que preferem ir pela escada, achei que seria uma boa ideia partir do mote dado pelo artigo de opinião publicado no supracitado jornal e oferecer um contributo muito mais positivo.
A palavra inglesa gay provém do étimo francês gai e ambas já eram usadas no século XII com o mesmo significado: o de alegre ou despreocupado; mas convém esclarecer que gai começou por ser um apelido, antes de tornar-se adjectivo. Em português, esse galicismo entrou no nosso léxico como gaio, que, além de possuir significação idêntica, também é um apelido: neste caso, por via adjectival, ou seja a alcunha tornou-se apelido, embora a genealogia não seja clara no que concerne às origens desta família que, nos estudos heráldicos, surge com as armas dos Góios, um ramo diferente cujo nome de família, provavelmente, terá origem numa corruptela do sobrenome Goes, à qual pertenceu, por exemplo, Estevão Vasques de Goes, um trecentista alcaide-mor de Lisboa (por curiosidade, o humanista quinhentista Damião de Goes ou Góis não parece ter pertencido a esta linhagem, fazendo lembrar que nem sempre a semelhança entre sobrenomes indica a mesma proveniência).
Contudo, a palavra gaio também é o nome de uma ave muito comum na Europa: em português, essa ave, da família dos corvos, chama-se gaio, em inglês chama-se jay e em francês chama-se geai - todas derivações da palavra original gai. O gaio, espécie de corvo colorido, sempre foi conhecido pelos nossos antepassados pela sua capacidade inata de imitar o canto de outras aves e, talvez por essa via, os actores e os artistas de rua já eram chamados de gaios (jays) na Inglaterra seiscentista, mas a designação não tinha nenhuma conotação sexual.
Essa apareceu, em finais do século XIX, em Inglaterra, com a expressão gay house: epíteto dado aos bordéis, mas, lá está, sem nenhuma conotação homossexual que se saiba. (Tinha um significado eufemístico, análogo ao da expressão contemporânea happy ending massage.)
Todavia, a colagem ao sexo homossexual terá surgido mais ou menos na mesma altura, entre os anos 1893 e 1897, mas nos Estados Unidos, nos quais uma grave crise económica abalou o país, retirando o emprego a milhares de pessoas. Entre os hobos, vagabundos que romavam pelo território em busca de pequenos trabalhos, os jovens sem-abrigo dispostos a fazerem sexo com homens mais ricos, em troca de dinheiro, eram conhecidos por gay cats: trocadilho com stray cats; ou seja, eram chamados de gay cats, do mesmo modo que os prostíbulos também se chamavam gay houses, e, neste caso, por serem jovens rapazes sem dinheiro, dispostos a prostituirem-se, a palavra gay começou a ser associada ao sexo homossexual. (No seu romance auto-biográfico The Road, publicado em 1907, o escritor norte-americano Jack London descreve essa realidade em primeira mão, pois ele próprio foi um vagabundo nesse período - e nunca afastou suspeitas sobre a sua suposta homossexualidade.)
Apesar disso, a adopção da palavra gay, enquanto sinónimo exclusivo de homossexual, tanto pelas comunidades homossexuais, como pelo público, em geral, é um fenómeno de meados do século XX: em essência, a partir de 1940, a palavra gay ganhou não só uma difusão inaudita como um cunho distintivo que ainda perdura. Porquê?
Como em tantas outras circunstâncias, em diversas alturas, é muitíssimo provável que tenha sido a cultura popular de entretenimento a dar esse impulso. Neste caso, com a estreia, em 1938, da comédia Bringing Up Baby (Duas Feras) do realizador norte-americano Howard Hawks, com a actriz norte-americana Katharine Hepburn e o actor inglês Cary Grant nos papéis principais. Às tantas, o paleontólogo David Huxley (Grant) vê-se obrigado a vestir um négligé com penas, porque as suas roupas foram roubadas por Susan Vance (Hepburn) enquanto tomava banho. Ao ser confrontado à porta de casa pela personagem Tia Elizabeth (May Robson), o espaventado Huxley reage de uma maneira muito especial, como podem ver no vídeo abaixo.
Considerando que este filme é de 1938 e que a palavra gay se difundiu cerca de dois a três anos depois é provável que se encontre aqui a origem da sua popularidade. Nesta cena, a ambiguidade de sentido da palavra gay é reforçada pelo conhecimento de que Grant nunca se livrou das suspeitas de ser bissexual e de manter uma relação com o actor norte-americano Randolph Scott, que conheceu na rodagem do seu primeiro filme: Hot Saturday, do realizador norte-americano William A. Seiter, estreado em 1932.