sábado, 7 de abril de 2012

Sobre o café Starbucks e o Infante D. Henrique

Três das minhas paixões são a história, a etimologia e o café. Há quatro anos, a cadeia internacional Starbucks abriu em Lisboa, na Rua de Belém, perto de mim num local cheio de história, a sua segunda loja portuguesa de café e a minha vida nunca mais foi a mesma. Porém, como sou um amante de etimologia, tratei logo de saber de onde vem o nome Starbucks. É uma história que partilho convosco, com todo o prazer.

A resposta mais rápida é a de que consiste no apelido do imediato do Capitão Ahab no romance Moby-Dick (1851), da autoria do escritor norte-americano Herman Melville, mas é possível recuar até outros imediatos e capitães, mais hostis que os dos navios baleeiros da ilha de Nantucket e oriundos de regiões muito mais frias que o estado norte-americano de Massachussets: neste caso, da Dinamarca.

Em 793, vikings dinamarqueses navegaram pela costa noroeste da Grã-Bretanha acima e pilharam o mosteiro cristão da pequena ilha de Lindisfarne, dando início à era das conquistas vikings, que só terminou três séculos depois. (O facto dos vikings se terem convertido ao cristianismo cerca de oitenta anos depois desse ataque inaugural não provou ser nenhum impedimento para que continuassem as suas expansões turbulentas - em nome de Cristo.) A sua hegemonia em todo o território britânico ainda repercute nos dias de hoje, em diversas toponímias, e, com efeito, na primeira metade do século IX os piratas nórdicos já dominavam todo o condado inglês de Yorkshire, no qual, junto à cidade termal de Harrogate, encontraram uma ribeira aprazível, com margens vicejantes de juças (uma planta comum em quase toda a Europa e também conhecida por carriço). Chamaram-lhe, adequadamente, Ribeira das Juças: denominação que em antigo dinamarquês se pronuncia Starbeck.
Este é o nome com o qual foi baptizado um subúrbio a Leste de Harrogate, habitado desde o século XIV - e o registo da primeira família a adoptá-lo como apelido, sob a corruptela de Starbuck, data de 1379.

Avançando em seguida para meados do século XVII, é altura de falar no inglês George Fox e na Sociedade Religiosa dos Amigos por ele criada: uma seita mística que, tal como todos as seitas místicas, arrogava ser possível comunicar com Deus sem o intermédio da igreja instituída; em especial a Igreja de Inglaterra. Quando a divindade falava directamente com Fox e seus Amigos, os corpos agitavam-se e, não raras vezes, eram atirados extáticos ao chão; esses tremores (quakes em inglês) valeram-lhes o nome de Quakers (os que tremem), pelo qual são, com mais facilidade, se não justiça, reconhecidos.
Até ao final do século XVII, os Quakers de Fox foram constantemente perseguidos e presos pelas autoridades; nessa altura pesadelar para novos credos alguns indivíduos acharam que seria uma boa ideia tentarem uma vida nova num Novo Mundo e, em consequência, partiram para as colónias da América do Norte. Entre esses pioneiros escorraçados encontrava-se uma família de apelido Starbuck, que tomou residência na ilha de Nantucket; com o passar dos anos, os descendentes da família Starbuck tornaram-se os baleeiros mais famosos do mundo; e é em sua homenagem que Melville baptiza com esse apelido o carismático imediato quaker do navio baleeiro Pequod.

Tão ilustres os Starbuck de Nantucket se tornaram que, em 1823, enquanto fazia escala no reino do Havai, Valentine Starbuck, o capitão do célebre baleeiro L'Aigle, foi contratado pelo rei Kamehameha II para que o levasse a ele, à rainha Kamāmalu e à sua corte, numa viagem a Londres; no ano seguinte, depois de terem feito escala no Rio de Janeiro, onde foram recebidos por D. Pedro I, imperador do Brasil (D. Pedro IV de Portugal), os reis do Havai morreram subitamente de sarampo, em Londres, no início do Verão. As mortes repentinas chocaram a opinião pública e o governo; no rescaldo da investigação, Valentine Starbuck foi acusado de corrupção pelos seus empregadores originais, em virtude de não ter cumprido o contrato.

Vinte e sete anos depois, o escritor Herman Melville, apreciado na altura pelas suas narrativas exóticas, fez das tripas coração e publicou um romance negro e sublime, intitulado Moby-Dick, que, infelizmente, foi destroçado pela crítica e consistiu num fracasso de vendas. Melville nunca recuperou do choque provocado pela péssima recepção que o seu romance mais querido teve e quando morreu, em 1891, nenhum dos seus livros continuava em impressão; mais tarde, depois da Primeira Grande Guerra, o trabalho superiormente simbólico de Melville foi descoberto por leitores e críticos norte-americanos e europeus, com uma nova sensibilidade, que consideraram merecidamente Moby-Dick como um dos melhores romances de sempre.
Um dos fãs tardios de Moby-Dick foi o norte-americano Jerry Baldwin, um professor de inglês residente na cidade de Seattle, no estado de Washington.

Baldwin adorava café e sonhava em abrir na sua cidade uma loja exclusivamente dedicada a essa bebida; juntamente com o escritor Gordon Bowker e o professor de história Zev Siegl, ambos norte-americanos, reuniu as condições necessárias para encetar esse empreendimento e quando surgiu o momento de dar nome à empresa lembrou-se de ir buscar um ao seu romance preferido. E o nome que escolheu foi...
Pequod: o nome do baleeiro do Capitão Ahab.
Os seus sócios odiaram-no, porque tinha uma sonoridade muito semelhante a pee (xixi), algo indesejável para uma loja de bebidas e, aparentemente, Bowker (em outra versão, a autoria da escolha recai sobre o publicitário de Seattle Terry Heckler, que desenhou o conspícuo símbolo da sereia "starbuckiana" - na realidade, não é uma sereia, mas uma adaptação de um desenho quinhentista de Melusina) escolheu um segundo nome, que encontrou num mapa dos Estados Unidos, o de uma antiga mina, situada a sudeste de Seattle, no Monte Rainier: Camp Starbo. Insistente em retirar um nome do romance Moby-Dick, Baldwin sugeriu que o do imediato Starbuck seria um bom compromisso entre a sua vontade e o nome da mina preferido pelos sócios. Toda a gente concordou e, em 1971, na Western Avenue, abriu-se a primeira loja daquela que viria a ser a cadeia internacional Starbucks (a internacionalização viria vinte e cinco anos depois com a abertura de uma loja na cidade japonesa de Tóquio). De Ribeira das Juças a nome de família e até marca internacional, o velhinho nome viking já viajou bastante.

Mesmo assim, a ligação entre ele, o romance Moby-Dick e o café não se esgota aqui.
Algo que pouca gente sabe é que Melville inspirou-se na existência de um cachalote albino verdadeiro que, no início do século XIX, atacou um punhado de navios baleeiros antes de ser capturado. (No romance a que dá o título, a baleia Moby-Dick não é completamente albina: só a cabeça e a corcunda são brancas.) Em 1839, o jornalista norte-americano Jeremiah Reynolds publicou na revista nova-iorquina Knickerbocker Magazine o primeiro relato sobre os ataques e a captura desse cachalote, intitulado... Mocha Dick, or The Whale of the Pacific. Os baleeiros chamaram Mocha Dick à baleia branca, porque ela nadava nas águas da Ilha de Mocha, ao largo da costa chilena.

Ora, de acordo com uma das versões da lenda da origem do café, um muçulmano chamado Omar, que partira em direcção ao Iémen, na Península Arábica, perdera-se no deserto; esfomeado, encontrava-se quase sem forças para continuar quando uma inesperada visão o guiou até um bizarro arbusto, cujas "bagas" diligentemente comeu. Sentindo-se revitalizado por esses grãos desconhecidos, guardou alguns e, graças a eles, foi capaz de chegar ao seu destino: a cidade de Mocha. Achando que tinha sido escolhido pela providência divina para dar a conhecer aquela planta milagrosa aos homens, transformou-a numa bebida revigorante a que chamou, claro, Mocha. (O porto da cidade de Mocha tornou-se, de facto, no grande exportador seiscentista de café.)
Com efeito, os viajantes árabes já mascavam grãos de café, mas a ideia de usá-los para fazer uma bebida é, provavelmente, uma verdadeira invenção iemenita (a lenda tem, afinal, um aroma de autenticidade), imaginada pelo místico sufi quatrocentista Muhammad al-Dhabhani que terá usado grãos dessa espécie de arbusto para fazer uma bebida reconfortante que pudesse ser tomada de forma a afastar o cansaço nas longas horas de estudo e oração a que os sábios sufis se dedicavam (assim chamados devido às suas idiossincráticas indumentárias feitas de lã, que em árabe se chama suf - logo, sufi significa homem de lã). Muhammad al-Dhabhani chamou qahwah à sua bebida (étimo da palavra turca kahveh que está na origem da palavra seiscentista italiana caffe), nome que significa vinho.

É espantoso que Mocha, nome que hoje é usado para designar uma bebida feita de café com chocolate e, também, um tom quente de castanho-escuro, tenha sido dado a uma baleia branca - uma que, ainda por cima, inspirou a criação literária de outra baleia branca, muito mais famosa, em cujos perseguidores se encontra uma personagem que deu o seu nome à maior cadeia de lojas de café do mundo.

Quanto ao Infante D. Henrique, a quem aludi no título deste texto, ele surge como provável inspiração para o desenho da capa da edição a solo do artigo de
Reynolds, editado pela primeira vez em Inglaterra no ano de 1870. A semelhança entre esse desenho e o célebre (mas muitíssimo improvável) retrato afamado de ser o de D. Henrique é impressionante, contudo o nosso cognominado Navegador não navegou nem um quinto daquilo que os baleeiros de Nantucket e de outras partes do globo navegaram. Na verdade, contam-se pelos dedos de uma mão as vezes que Henrique navegou para fora do reino, em toda a sua vida - e somente para ir a Ceuta, no Norte de África, uma viagem que, quando comparada com as de Eanes, Dias, Gama e Cabral, se apresenta como tendo apenas o tempo suficiente para beber uma bica curta. (Aliás, o facto destes navegantes terem sido capazes de tais proezas sem terem, sequer, bebido uma única chávena de café dá-me uma séria volta à cabeça.)