domingo, 27 de abril de 2014

Apontamentos para uma errata do futuro e do passado



Um desacerto reiterado em reconstituições de épocas pretéritas é pensar-se sobre o passado em moldes diorâmicos, como se cada período estivesse constituído sem surpresas para turistas temporais verem, tal qual uma sucessão esfuziante de carrosséis temáticos numa estranha feira popular do tempo: entre outros, o carrossel do ano 2000, o do ano 1950, mais o do ano 3000 a. C. Nem damos conta do anacronismo de que em cada uma dessas reorganizações artificiais do passado todos os elementos escolhidos para efeito de representação cénica pertencem, sem variações, aos próprios anos que estão a ser reproduzidos por esses cenários. Isto significa que no carrossel do ano 1950, por exemplo, tudo aquilo que pode ser observado pelo visitante temporal pertence a esse ano em específico: os modelos dos automóveis; o estilo do vestuário dos indivíduos, assim como os seus cortes de cabelo; as revistas, os jornais e os livros; todas as inovações tecnológicas. É uma escolha que tem como objectivo montar os dioramas com o maior grau possível de autenticidade, mas a nossa visão do passado é cega diante do facto de que o ano 1950 foi, certamente, muito mais parecido com o ano 1949 ou com o ano 1948 do que aquilo que imaginamos. Com efeito, o ano 1950 terá sido muito mais parecido com o ano 1940 ou até com o ano 1935, porque todas as inovações tecno-culturais criadas num determinado ano (modelos de automóveis e de vestuário, certos tipos de electrodomésticos e restantes tropos culturais, enuncie-se) apenas se popularizam nos anos seguintes à sua criação; nesse feitio, a visão especulativa que criámos no carrossel dioramático de 1950 terá tudo a ver, na verdade, com o ano histórico de 1940.
É graças a esta cegueira sobre o passado que somos capazes de ver alguns filmes de recomposição histórica e não dar conta dos múltiplos anacronismos que nos estão a ser apresentados - ou, no limite, os mais imperceptíveis, porque se detectamos sem dificuldade um relógio no pulso de um figurante que faz de legionário de um exército de Júlio César não somos capazes de perceber que aquele modelo de automóvel no qual acabou de entrar o nosso protagonista de um filme policial cujo enredo se passa em 1950 somente se difundiu em meados do ano seguinte, independentemente dessa máquina ter sido, efectivamente, criada em 1950. Nesse sentido, um bom filme policial com acção decorrida no ano de 1950 apresentaria um panorama cosmopolita com pouquíssimos elementos atribuíveis a esse ano, porque a vida de todos os dias pertence à média, enquanto que as inovações pertencem aos extremos. Importa reter a universalidade do conceito de que entre criação e implementação ou entre criação e difusão existe sempre um intervalo variável de tempo. Ora, é neste inconstante interstício, entre a constituição de um protótipo, que, aqui, quase assume um papel similar à forma ideal neoplatónica, e a sua difusão pelo público na sociedade, que reside o ponto cego das nossas previsões sobre o futuro e, por atracção, o ponto cego da ficção científica.

A autêntica ficção científica está preocupada em interrogar os efeitos que a ciência e a tecnologia imprimem sobre a sociedade e, por essa via, está pouquíssimo interessada nos afectos e nas convenções mais mundanas que são o combustível de outras famílias de narrativas, excepto quando esses afectos e convenções são ferramentas ao serviço do desiderato citado inicialmente. É por essa razão que a maioria dos livros e dos filmes que o público entende como sendo de ficção científica não o são: a verdadeira ficção científica está, desde há umas décadas, relativamente ausente do centro. Uma das razões para que esse afastamento tenha ocorrido será, sem dúvida, a incapacidade que a ficção científica de meados do século XX teve em prever, de facto, o futuro – ou seja, o nosso presente. Essa imperícia de presciência resulta, em exclusivo, do interstício inconstante que descrevi no final do parágrafo anterior. Os escritores de ficção científica têm sempre uma inclinação imediata para sobrecarregar o futuro com tecnologias novas, com múltiplos gadgets e criar uma atmosfera de neofilia omnipresente, mas, com efeito, o tempo erode as tecnologias e as inovações que vão sendo criadas e lançadas à experimentação. Só me recordo de duas grandes novas tecnologias, inventadas nas últimas décadas, que não só permanecem connosco como mudaram inexoravelmente o tecido social e o modo como o mundo se organizava: a bomba nuclear e a Internet – e se ainda é discutível se a ficção científica previu o aparecimento da primeira, menos discutível é a constatação de que não foi capaz de prever o surgimento da segunda.
O nosso presente – o futuro da ficção científica de meados do século XX – é muito mais semelhante aos finais do século XIX, com os conflitos dos Estados Unidos e do Próximo Oriente a espelhar os problemas que a Inglaterra teve com o Afeganistão, com a descoberta efectiva do bosão teorizado por Peter Higgs a mimetizar o impacto que teve a descoberta de Albert Michelson e Edward Morley de que o Éter não existia e com os movimentos alternativos do pseudoconhecimento e das teorias das conspirações a irem ao encontro dos efeitos provocados pelo renascimento ocultista da segunda metade de oitocentos. Excepto a bomba nuclear e a Internet todas as tecnologias ao nosso dispor são aperfeiçoamentos sucessivos de tecnologias que foram sobrevivendo à calandragem das eras.

Dizia Simónides de Ceos que «o tempo tem dentes afiados que destroem tudo». Para se prever o futuro é preciso olhar para o presente e perceber quais os elementos que, entretanto, irão desaparecer. Não me escapa a prematuridade dos prenúncios da morte do livro, face ao advento do eReader: de um ponto de vista de selecção natural, o livro está connosco para durar, enquanto que os indicadores de vendas demonstram que o entusiasmo pelos eReaders está a extinguir-se. A neofilia esgota-se a si mesma, como é evidente.