Na passada terça-feira, dia 2 de Dezembro, celebrou-se os duzentos anos do aniversário da morte de Donatien Alphonse François, Conde e Marquês de Sade, indivíduo cuja vida e obra cunharam, posteriormente, a palavra sadismo. Assim, em jeito de contributo celebratório, recupero um ensaio que escrevi há uns tempos sobre o filme Salò, o le 120 Giornate di Sodoma, realizado em 1975 por Pier Paolo Pasolini.
Confesso, em abono da honestidade, que o imaginário burlesco e
libertino (no seu significado contemporâneo) do Marquês de Sade, com
efeito, não me fascina particularmente, mas este filme de Pasolini é,
sem dúvida, um dos meus preferidos -- e um que revejo diversas vezes.
Hoje, Salò mantém o poder de chocar; o que é extraordinário, face aos excessos actuais. Salò é, para mim, o snuff movie quintessencial: ou, traduzindo para linguagem mais acessível, um snuff movie
para intelectuais. Revejam-no -- ou vejam-no pela primeira vez -- nesta
efeméride da morte de Sade, lembrando que para o ano que vem, no dia 2
de Novembro, será o quadragésimo aniversário da morte de Pasolini,
assassinado em circunstâncias que ainda aguardam clarificação. Os dias 2
de Novembro e Dezembro estão, neste feitio, reservados a dois
criadores, malditos nos seus tempos e (um pouco menos) malditos neste
momento. Nisto há simetria e onde há simetria há beleza.
A Burocratização do Mal
«O horror inventado pode ser avassalador», escreveu Susan Sontag em Regarding the Pain of Others. Salò, o le 120 Giornate di Sodoma, filme realizado por Pier Paolo Pasolini, é uma obra dessa estirpe.
A
natureza da arte é criar beleza; e o cinema, como a fotografia, fá-lo
de um modo descomplexado, inclusive quando a matéria apresentada prima
por um insustentável grau de violência (Witkin, Peckimpah, Verhoeven).
Quer se trate de instantâneos capturados no campo de batalha ou cenas
gravadas numa cela escura de uma instituição punitiva existe sempre uma
composição vestigial mecanizada pelo fotógrafo ou pelo cineasta, uma
certa direcção artística. Mas em Salò
não existe nenhuma beleza; no mínimo, beleza envernizada. As imagens do
filme são baças e estáticas. Sobretudo não indicam um juízo de valor e
isso é confuso o suficiente, pois essa nudez quasidocumental faz do
espectador um cúmplice.
Num pequeno documentário que integra os extras da edição em DVD da Costa do Castelo Filmes, a realizadora de Romance, Catherine Breilat, diz que Salò
é uma obra cinematográfica que oferece uma experiência impossível de
ser alcançada ou ultrapassada pela leitura. Sinto-me inclinado a
concordar, pois considero que a imaginação individual é, por vezes,
demasiado pobre em experiências alarmantes para fabricar imagens que
consigam evocar sentimentos semelhantes àqueles que assolam o espírito e
o corpo diante de obras como Salò. Não obstante, discordo, em igual medida, de Breilat, porque o filme de Pasolini é, na sua máxima espessura, uma obra literária.
O
realizador da Trilogia da Vida é, acima de tudo, um escritor e os
filmes que nos deixou, mais que imagens sobre enredos, são contos
ilustrados por imagens animadas. Esta desventura que nos conta a
história de quatro italianos, pertencentes à elite fascista, que decidem
acabar os seus dias numa propriedade isolada de modo a dedicarem-se a
ininterruptos exercícios de crueldade é toda contada em pequenos
episódios, seja pelas prostitutas incumbidas de abrir as sessões
orgiásticas com relatos titilantes ou por farrapos que parecem ter caído
de um caderno de apontamentos, como são exemplo os diálogos delirantes
entre os velhos pederastas. É uma espécie de A Grande Farra às avessas.
Acredito
que as alacridades perpetradas pelos carcereiros são comentários aos
contos das prostitutas: a personagem interpretada por Umberto Paolo
Quintavalle, ele próprio um escritor sem experiência de representação,
convidado por Pasolini em virtude da sua compleição doentia, interrompe o
relato da primeira prostituta e exige que ela seja pródiga em
pormenores. Só dessa forma, explica, pode ele, e os colegas, retirar o
combustível necessário às diabruras.
«É aceite entre os verdadeiros libertinos que as sensações comunicadas pelo ouvido são as mais vivas.»(1)
O
conto de prostíbulo é a primeira obra e a sevícia imaginada em
seguimento é, dessa forma, o comentário – o segundo texto. O homem que
corrompe o corpo do adolescente que escolheu para vítima é, apenas, um
crítico, um teórico que intenta complementar o opúsculo original e
explorar as possibilidades gramaticais que este deixou em aberto.
Acentuei
gramaticais e não semânticas, pois as brincadeiras ofensivas não visam a
pessoalidade da vítima, nem a intimidade que poderia ter-se desenvolvido
entre ela e o carrasco. A violência dirige-se ao corpo; e ao corpo
enquanto aparelho composto por peças (mãos, boca, órgãos genitais) que
podem ser substituídas por outras se manifestarem defeito. Um bom
exemplo dessa lógica industrialista é uma cena iniciática na qual um dos
fascistas recusa uma rapariga durante uma mostra, porque lhe descobre um
dente cariado. Não existe qualquer desejo em Salò e nenhum ódio. Existe burocracia.
Uma
vontade de parar o tempo histórico exterior aos muros da propriedade
tornada campo de concentração e que anuncia a capitulação do fascismo
que protege a República de Salò criada por Mussolini. O que os quatro
fascistas tentam fazer é cristalizar o fluxo; ou melhor, fazê-lo
circular como o tempo vivido pelas sociedades primitivas. Justifica-se,
assim, a escolha do calendário dantesco (os Círculos das Manias, da
Merda e do Sangue) que orienta os dias deles de volta ao primeiro
instante – à inauguração: a esse momento recheado de novas
possibilidades e novos corpos prontos a ser abraçados. Os fascistas de Salò não temem o tédio, pois sabem que tudo irá recomeçar: o tempo é o seu palimpsesto.
«Belo e certo céu, vê-me a ser diferente! Após tanto orgulho, tanto e estranho ócio, carregado embora de estranhos poderes, faço a minha entrega ao espaço brilhante, sobre o lar dos mortos corre a minha sombra (…)»(2)
O Mal que respira em Salò – e argumentar que conceitos de Bem e de Mal não se aplicam a este
filme é falacioso – é um terror despersonalizado; no sentido da
não-encarnação. É um ectoplasma indistinto que voga sobre os indivíduos,
moldando-lhes o comportamento, como o clima. É o mesmo tipo de mal que
encontro nos aparelhos punitivos das histórias de Kafka e nas figuras
intersticiais dos Ringwraiths de The Lord of the Rings de Tolkien: uma presença que mais que testemunhada é sentida.
A
burocratização do mal, epígona da metade do século XX, não é fruto da
hierarquia que se instaura no interior da propriedade, e que rege tanto o
escritório como o excretório, mas, possivelmente, contingência de um
fenómeno mais antigo: o advento do Iluminismo e a cessação das
metanarrativas (mitos) de ordem religiosa. Com efeito, a imagem
analógica do campo de concentração endémico do período da Segunda Grande
Guerra é o Inferno.
«Tem-se falado muito da solidão e da desorientação do homem desde a época em que o Paraíso deixou de ser objecto de uma crença activa. Conhecemos o vazio neutro dos céus e o seu terror. Mas talvez a perda do Inferno tenha sido mais devastadora ainda. Talvez a transformação do Inferno em pura metáfora tenha deixado uma lacuna formidável nas coordenadas do reconhecimento espacial e psicológico do espírito do Ocidente. A ausência dos condenados familiares escavou um vórtice que o Estado totalitário contemporâneo terá vindo preencher. Não temos Paraíso nem Inferno é ficarmos intoleravelmente despojados e sós num mundo sem espessura. Dos dois reinos perdidos, verificou-se que era o Inferno o mais fácil de recriar. (As suas descrições tinham desde sempre sido mais precisas.)»(3)
A casa de Salò
é um Inferno miniaturizado e as quatro personagens que a governam são
embaixadores dos poderes institucionais: temos um juiz, um bispo, um
duque e um político. Todos eles casados com as filhas uns dos outros,
como que para sublinhar o pacto – a consanguinidade – entre os
departamentos. A fenomenologia da hierarquia é a dominância, claro, mas
mais que o simples jugo dos indivíduos, sob graus de exigências, é a
domesticação do desconhecido. Numa hierarquia cada um tem o seu lugar
cativo e as relações entre constituintes cumprem-se pela
correspondência. Ora, o Homem hierarquizou o Inferno – em círculos, em
diversos níveis de torturas para os pecados mais exóticos, regidos por
castas demoníacas de diferentes importâncias – para o conhecer: para
negociar com o Inominável.
O
Diabo que atende o sacrifício do nobre é superior ao Familiar que
auxilia a bruxa e, assim, cada qual controla o seu medo do desconhecido
com um sistema de correspondências que não assusta ninguém, pois reproduz
o modelo feudal terreno. A perda de todo esse sistema deixou, com toda a
certeza, cicatrizes profundas no nosso tecido cultural. A transcrição
de George Steiner aponta um efeito dessa queda, mas haverá outros.
Baseado no livro homónimo escrito pelo Marquês de Sade, Salò
suplanta esse trabalho literário e apresenta-se como um objecto mais
lúcido: o humor do filme é sempre acidental, inversamente ao humor de
Sade que é propositado e procura ser constante. Pasolini cita Pierre Klossowsky, irmão
de Balthus Klossowsky, e o seu Sade, Mon Prochain (título que evoca S. Bento Labre que comia as lombrigas expulsas nas próprias fezes), Roland Barthes e Sade, Fourier, Loyola, entre outros autores. Curiosamente, olvidou, intencionalmente ou não, o ensaio de Bataille em La Littérature et le Mal. O enredo de Salò
pode ser entendido como uma sátira (grotesca) à erotização da relação
que se estabelece entre professor e aluno. Como se os assassinos
procurassem discípulos dignos entre as vítimas e as torturas fossem uma
correspondência desproporcional com os ritos de passagem arquetípicos
que os neófitos precisam cumprir para ganhar a confiança dos Mestres e
garantir o treino intelectual ou físico. A ir por esse caminho, também
ele legítimo, encontro nesta transcrição de Yukio Mishima o exemplo
perfeito dessa premissa:
«Ele é o homem mais livre do mundo... Ele acumula o Mal e ergue-se sobre ele. Se quisesse, poderia tocar a Eternidade com as pontas dos dedos levantados. Ele que fez santidade da imundice.»(4)
Os celerados de Salò
afundam-se na bebida e em acesas discussões filosóficas sobre a
natureza do Mal. É preciso não esquecer que são eles a elite do seu
país: aqueles que lêem e têm acesso à cultura estrangeira, alvo da
censura imposta pelo regime. Assistimos à aniquilação da civilidade do
Homem de Cultura, pois ele não previne a barbárie e acaba, enfim, por se
perder em prejuízo de rituais sem sentido que têm como objectivo
iluminar o seu espírito sobre um conhecimento mais elevado, mais
transcendental. Sob a égide de que nada deve ser proibido se for
excessivo, os fascistas de Salò
almejam a ascese, mas o próprio movimento circular em que estão imersos
regurgita-os sempre à ignorância. O Homem Clássico foi, em certa
medida, um felizardo, pois nunca travou conhecimento com a face mais
desumana do seu descendente.
Salò pertence a uma escola de cinema que se extinguiu. O casting
de Pasolini é correctíssimo: as composições dos quatro fascistas são
verdadeiramente repulsivas. Neste filme tudo é feio – até atonal.
No cinema, o texto literário é, cada vez mais, somente uma legenda para a imagem projectada. Em Salò as imagens ferem, é certo, mas quem deixa marcas é a palavra. Mandatório. Nem que seja visto só uma vez.
1) Marquês de Sade, Les 120 journées de Sodome, ou l'École du libertinage.
2) Paul Valéry, Le cimetière marin.
2) Paul Valéry, Le cimetière marin.
3) George Steiner, In Bluebeard's Castle: Some Notes Towards the Redefinition of Culture.
4) Yukio Mishima, Sado Kōshaku Fujin.