sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Sobre a criatividade e a escola e a criatividade na escola: uma perspectiva pessoal


Anda circulando um debate em diversas frentes virtuais e não-virtuais, nacionais e internacionais, sobre o facto da escola, enquanto conceito, estar, supostamente, organizada de modo a cercear a criatividade dos jovens; ou, no mínimo, de sustentar uma ambiência que não lhe é conveniente. Penso que existe alarmismo nesta(s) premissa(s) e que, mais uma vez (como em outros campos), se está a pedir demasiado à escola, no sentido de esperar que ela se comporte de modo diferente à sua natureza, que é, em essência, a de transmitir conhecimentos. Evidentemente, a escola tem de promover e fortalecer nos alunos um espírito inquisitivo, inquieto e indómito, mas desde quando é que essas qualidades passam directamente pela criatividade, no sentido artístico da palavra ou em outro sentido análogo? Se se espera que seja a escola a tornar mais criativos as crianças e os jovens, mais vale esperar-se sentado, porque a criatividade não nasce em viveiros de quaisquer géneros: ou se é criativo ou não se é criativo -- ou se é artista ou não se é artista. É tão simples quanto isso.

A minha experiência e as minhas interrogações pessoais sobre a criatividade enquanto problema têm-se inscrito numa idiossincrática axiologia, segundo a qual tento observá-la como sendo um valor em si, livre para se correlacionar com outros, como a Beleza, a Verdade e o Saber, mas, sobretudo, livre para existir por mérito próprio, sem depender de nenhum saco vitelino. Assim, entendo que a criatividade assume diferentes faces, consoante as áreas com as quais se vai entrosando e, nesse feitio, contribuindo para os seus êxitos, mas, acima disso, ela é um absoluto. A imaginação abstracta será, certamente, a qualidade mais humana possível e é a partir dela que podemos assistir ao apuramento da criatividade. Sozinha, a imaginação não passa de uma quimera sem valimento: é preciso trabalhar a imaginação para criar o objecto de arte. A criatividade é, por conseguinte, imaginação e acção, porque um objecto feito sem imaginação dificilmente será arte, por laboriosa que tenha sido a sua realização. É neste sinal do binómio imaginação-acção que envisiono que a escola (em principal, as escolas relativas às artes) poderá contribuir para uma cultura da criatividade: ensinando os conhecimentos técnicos indispensáveis a cada linguagem artística. Quanto ao outro sinal, o da imaginação, cabe a cada indivíduo, se for essa a vocação, cuidar dele.

Lembro aos mais distraídos que falo com conhecimento da matéria: a relação que tenho com a minha imaginação é longa e muitíssimo saudável e nunca esperei que a escola fosse minha conselheira imaginativa ou me inspirasse a criatividade. Pelo contrário: compreendi desde muito cedo -- e da maneira mais dura possível -- que a escola podia ser um local terrível para quem, como eu, se atrevia a imaginar.
Expressei esse conhecimento numa sequência do meu livro de banda desenhada Palmas Para o Esquilo (Kingpin Books, 2013), escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa. Às tantas, numa das reminiscências da personagem principal, pode ler-se como ela, enquanto criança, sofreu a humilhação de ver um seu desenho rasgado por uma professora do primeiro ano do ensino básico, somente porque este não se adstringia às balaustradas por ela anunciadas no início do exercício. O episódio é real: aconteceu comigo, tal qual se encontra representado no livro, numa das primeiras aulas do meu primeiro ano de escolaridade. Quando entrei para a escola já sabia ler e já imaginava e desenhava as minhas primeiras tentativas de histórias. Nunca precisei da escola para ser criativo. Considero até que esse momento tão terrível e estúpido (quantas vezes o verdadeiro terror anda aliado à mais elementar estupidez) em que vi o meu desenho ser rasgado foi a vacina que me permitiu criar defesas contra a crueldade e a estultícia daqueles que, por não serem capazes de criar, fazem da destruição o seu ofício. Existem vermes que se deleitam nesse prazer bem miserável -- e nem sempre se denunciam tão alarvemente quanto professoras do ensino básico com noções muito particulares sobre como um bom desenho deve ser.

Não se interprete o relato exposto acima como sendo uma demonização da escola. Longe disso: como também escrevi, e vale a pena repetir (vale sempre a pena repetir), os inimigos da imaginação estão por todo o lado. O que quis dizer com este texto é que será errado querer fazer da escola uma incubadora ou viveiro de criatividade. Não é essa a sua função -- e quanto mais funções estranhas à escola lhe formos adicionando, ela deixará, mais tarde ou mais cedo, de ser escola.
Já andámos mais longe disso, suspeito, mas espero estar enganado.