Mais uma sova dada ao escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft, desta vez pelo crítico literário Charles Baxter, nas páginas do The New York Times Review of Books.
O artigo de Baxter é, infelizmente, mais um exemplo do evemerismo ao contrário que tem caracterizado as epístolas antilovecraftianas que, mormente, são dadas à estampa; e redigidas tanto por críticos camareiros do mainstream, como por corifeus saídos do próprio universo da chamada "ficção de género", mas todos preocupados com as suas próprias directrizes de promoção pessoal, feita à custa de um homem que não pode defender-se -- aliás, pela profusidade de textos desta natureza, que vão surgindo, dir-se-ia que Lovecraft está vivo, mas informo os mais distraídos que, com efeito, ele morreu em 1937: ano tão longínquo e feito de contrastes, como o bombardeamento da cidade espanhola de Guernica, pela Legião Condor da Luftwaffe nacional-socialista, ou a estreia de Snow White and the Seven Dwarfs, primeira longa-metragem de animação dos estúdios Disney. Entre o absurdo violento das guerras europeias e a candura melíflua do sonho norte-americano, vale a pena especular que o século XX terá sido, afinal de contas, mais lovecraftiano do que parece. Talvez seja esse o combustível secreto que anima fãs e detractores, em simultâneo.
No parágrafo anterior, falei em «evemerismo ao contrário», porque, de facto, é isso que se verifica na exegese desses textos maticinos: o evemerismo ortodoxo consiste na leitura errada que se faz de eventos e personagens lendários, atribuindo-lhes cronologias e papéis históricos pseudofactuais, como, por exemplo, achar que os deuses antigos de uma determinada mitografia foram, na realidade, poderosos reis e sábios sacerdotes do passado -- ou até seres de proveniências extraterrestres: tropo que também se relaciona totalmente com Lovecraft, como irei (re)demonstrar daqui a umas linhas.
Ora, baxteres e quejandos operam de modo inverso, respigando farrapos da vida de Loveccraft para, com eles, construir, não uma aproximação à realidade, mas uma ficção desbragada na qual o erudito escritor de Providence, pequena cidade costeira do estado norte-americano de Massachusetts, não passa de um virulento racista misógino, incapaz de escrever uma linha sem veicular todas as espécies de rancores étnicos e sexistas.
No que concerne a libelos dessas naturezas, já os desmistifiquei nesta ligação e também nesta, razão pela qual não valerá a pena repetir-me. Penso que esses dois textos demonstram que Lovecraft foi um indivíduo mais complexo e multidimensional (trocadilho propositado) do que se poderia, à partida, pensar; sobretudo, quando existe a vontade de partir para o terreno pantanoso da difamação sem conhecer, com rigor, a obra e a vida dos indivíduos que se almeja atirar para a lama. Até para inventar calúnias convém ser culto ou, no mínimo, estar bem informado.
Prometi que deslindaria o novelo que une Lovecraft ao evemerismo que fere como ferro quente a cultura popular contemporânea, já que este escritor foi o seu pai, e, assim, recupero o texto em que escrevi sobre esse tópico.
Termino com uma provocação dirigida aos detractores de Lovecraft: por que é que não voltam os cegos escalpelos para figuras da nossa história recente que foram, verdadeiramente, racistas e misóginas?
Figuras como Gandhi, por exemplo, que sob o manto diáfano da doutrina da não-violência escondeu um racismo insuspeito contra os negros -- que toda a vida considerou de "qualidade inferior" aos dalits (intocáveis) da hierarquia indiana de castas --, uma homofobia ainda desconhecida do grande público, além de uma misoginia de contornos caseiros (batia na mulher para "discipliná-la"). Os delirantes que vêem em Lovecraft um fervoroso admirador do fascismo e de Hitler farão melhor em observar Gandhi com atenção, pois ele estimava Hitler e Mussolini. Este, conheceu-o em Itália e ficou deslumbrado com o "amor" que Il Duce tinha pelo povo italiano, com o modo como ele rechaçava a "praga" da urbanização, em prol de valores campesinos, e, ainda, o "engenho" com que lidava com todas as questões relacionadas com o capital e o trabalho (leia-se, o sistema capitalista e corporativista de estado, apanágio do(s) regime(s) fascistas).
Quanto a Hitler, achava que ele não era tão mau quanto o pintavam, sobretudo quando comparado com aquilo que os boers e os ingleses tinham feito aos Zulus da África do Sul. Seguindo esse raciocínio, a 23 de Julho de 1939, escreveu a Hitler, a quem tratava por «querido amigo», pedindo-lhe que, em vez da guerra, experimentasse o caminho da não-violência, método que, segundo a sua experiência, dava alguns frutos (em pouco menos de dois meses, o «querido amigo» invadiu a Polónia, iniciando a Segunda Grande Guerra). Aliás, em Novembro do ano anterior, Gandhi já advogara que os judeus perseguidos e chacinados pelos nacionais-socialistas não poderiam fazer melhor do que deixarem-se eliminar colectivamente numa atitude de resistência não-violenta, porque o terror não existia quando se morria crente: «the calculated violence of Hitler may even result in a general massacre
of the Jews by way of his first answer to the declaration of such
hostilities. But if the Jewish mind could be prepared for voluntary
suffering, even the massacre I have imagined could be turned into a day
of thanksgiving and joy that Jehovah had wrought deliverance of the
race even at the hands of the tyrant. For to the godfearing, death has
no terror. It is a joyful sleep to be followed by a waking that would
be all the more refreshing for the long sleep».
Infelizmente, ao contrário do que Gandhi escreveu nas linhas transcritas acima, o terror existe mesmo -- para crentes e para descrentes -- e para derrotá-lo é preciso, além de coragem, compreendê-lo.
Lovecraft tentou fazê-lo através da sua ficção inovadora, olhando a humanidade com desafectação, mas, inesperadamente, com uma espécie de optimismo sem garantias, sentimento nascido do seu ateísmo e da paixão pelo desenvolvimento científico. Fica a sugestão de fazer-se uma reflexão sobre a maneira como, independentemente da verdade histórica, uns são eleitos para ser vilões e outros para ser heróis. Compreendo que o clima de correcta-politiquice que afecta a nossa sociedade vá criando os monstros que lhe são mais convenientes em determinados momentos -- aparentemente, Lovecraft está nos primeiros lugares da lista negra de uma desintelligentsia somente interessada em ficar bem na fotografia (Houellebecq e epígonos vêm à memória), por diversos motivos que confluem todos na superficialidade.
Não é à toa, afinal de contas, que escolheram Lovecraft para vilipendiar: em tudo o que fazia, era profundo. A superficialidade não era coisa que lhe agradasse.