Em 2009, assim que saiu, li o romance Inherent Vice, de Thomas Pynchon, um dos autores que mais admiro, mas, admito, tenho pouquíssimas memórias desse livro atípico na obra do escritor norte-americano. Tenho uma noção diluída do enredo e de algumas personagens e situações que considerei mais interessantes, mas teria de relê-lo para refrescar a memória, quanto ao panorama. O problema é que o livro -- para o padrão fixado por Pynchon -- é demasiado ligeiro e até superficial: é, somente, uma história rocambolesca, semipolicial, semi-humorística, sobre alguns arquétipos da subcultura norte-americana de inícios da segunda metade do século XX e, sobretudo, demasiado esquecível, se é que me faço entender. Depois da publicação do genial e muito bem arquitectado Against the Day, um extraordinário romance, gigantesco em páginas e em ambição, este Inherent Vice foi uma desilusão e pêras.
Penso que Pynchon, conhecido por estar muitos anos sem publicar nenhum romance novo, quis, dessa vez, reduzir o tempo de espera dos seus leitores publicando um novo título -- apressado -- apenas com três anos de intervalo em relação à obra anterior (entre Against the Day e Mason & Dixon estão, retrospectivamente, nove anos de distância -- e dezassete anos entre Vineland e Gravity's Rainbow). Daí que não me surpreende que Inherent Vice, um "Pynchon light", seja a primeira escolha de Hollywood para uma adaptação cinematográfica do universo autoral deste escritor singular.
Todavia, para o espectador comum, Inherent Vice, realizado pelo interessante Paul Thomas Anderson, não será tão ligeiro quanto isso, porque o filme está a ser criticado por ser demasiado complexo e não-linear. Ora, bem: palavras como "complexo" e "não-linear" são música para os meus ouvidos, por isso lá terei de ir ao cinema comprovar se os críticos e o público têm razão.
Gostava, não obstante, que Hollywood tentasse filmar uma adaptação de Gravity's Rainbow, publicado em 1973 e rejeitado para o Prémio Pulitzer por culpa de uma sequência sadomasoquista de sexo coprofágico entre as personagens Katje Borgesius (uma agente dupla holandesa que é, em simultâneo, uma escrava sexual de um oficial da SS) e o submisso Brigadeiro Ernest Pudding; acrescente-se os laivos de zoofilia que envolvem pelo pescoço e pela cintura a bombástica Katje Borgesius e o estrambótico polvo Grigori, condicionado pavloviamente para atacá-la numa praia da Côte d'Azur (evento do qual é salva pelo protagonista Tyrone Slothrop, que distrai Grigori com um apetitoso caranguejo) -- uma passagem que evoca, de imediato, a arte shunga (estilo erótico japonês, cognato da nossa palavra chunga, que significa reles ou ordinário) do artista japonês Hokusai; em principal, a peça oitocentista Tako te Ama (O Sonho da Mulher do Pescador), mas, de igual modo, certas capas de revistas pulp norte-americanas, como a Spicy Adventure Stories, acervo de bizarras aventuras lascivas, editada nos anos trinta pela Culture Publications.
Considerando que Gravity's Rainbow data de 1973 e as mangas revolucionárias de Toshio Maeda, pai do género Hentai de banda desenhada japonesa, só apareceram em meados dos anos oitenta e inícios dos anos noventa, Pynchon será, na verdade, o primeiro autor a introduzir o sexo tentacular na cultura ocidental -- e, de chofre, no campo da literatura erudita. Aliás, tenho quase a certeza que os bonzos bem-pensantes que gostam muito de apregoar à boca cheia a sua admiração por Pynchon, enquanto crachá cultural, nunca leram, de facto, as tropelias tentaculíferas e escatofágicas de Gravity's Rainbow (entre outros desatinos de alto apuro que lá se encontram), com mais pontos em comum com os universos marginais de alguma literatura fantástica do que com a comoditização de costumes e conceitos domesticados que, hoje, infelizmente, passa por "boa" literatura.