terça-feira, 30 de outubro de 2018

Sobre forças primordiais



O filósofo inglês John Gray escreve sobre a actualidade:

«Ours is an era in which political ideology, liberal as much as Marxist, has a rapidly dwindling leverage on events, and more ancient, more primordial forces, nationalist and religious, fundamentalist and soon, perhaps, Malthusian, are contesting with each other. In retrospect, it may well appear that it was the static, polarized period of ideology, the period between the end of the First World War and the present, that was the aberration. (...) that beneficent catastrophe will not inaugurate a new era of post-historical harmony, but instead a return to the classical terrain of history, a terrain of great-power rivalries, secret diplomacies and irredentist claims and wars. (...) At the worst, America faces a metamorphosis into a sort of proto-Brasil, with the status of an ineffectual regional power rather than a global superpower. (...) the days of liberalism are numbered. Especially as it governs policy in the United States, liberalism is ill-equipped to deal with the new dilemmas of a world in which ancient allegiances and enmities are reviving on a larger scale.»

Na verdade, estes trechos não pertencem a nenhuma reflexão sobre a actualidade, mas a uma especulação escrita em 1989 e dirigida ao artigo ensaístico intitulado The End of History? que o politólogo americano Francis Fukuyama deu à estampa nesse ano na revista The National Interest - e que serviu de base para a escrita do seu conhecido livro homónimo, publicado em 1992. Quase trinta anos depois, o retrato vertido por Gray em afilada e presciente lucidez é uma silhueta que cai de modo quase perfeito nos contornos da nossa actualidade. Nós somos este mundo descrito em 1989. Face a este retrato límpido e repungente como mercúrio, os imediatos discursos dos dias, sejam eles de que sinal forem, são apenas formas transitórias e insubstanciais que falham teimosamente - quiçá, ideologicamente - em fixar-se no essencial.

(Na imagem, de 1545, Herácles/Hércules assassina Caco, pela mão do artista bávaro Sebald Beham. Um episódio importante do repertório mitológico europeu que, se calhar, vale a pena resgatar para reflectir. Sobretudo, quando se pensa que no século XVI, quando esta imagem foi criada, Herácles/Hércules estava a ser reavaliado pelos humanistas num autêntico sentido greco-romano que havia ficado esquecido: não o de herói poderoso, mas o da personificação da ignóbil força bruta. Assim, a luta entre o patético Herácles/Hércules e o abjecto Caco parece simbolizar um qualquer enunciado difícil de decifrar.)