terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Lista de Compras no próximo sábado na FNAC Chiado


No próximo sábado, dia 26, às 17H00, estarei no fórum da loja FNAC Chiado a convite da revista LOUD! como entrevistado na rubrica Lista de Compras: consiste numa iniciativa em que os convidados conversam com o público sobre livros, discos ou filmes que escolheram previamente na loja e que tenham particular importância para si. Apareçam.


Vale mesmo mais um pássaro na mão


A ouvir um dos mais surpreendentes e melhores lançamentos do ano passado: One Byrde in Hande (Linn Records) do maestro e músico inglês Richard Egarr, que também é director da Academy of Ancient Music, em Cambridge. Este disco consiste em peças para cravo compostas pelo compositor isabelino William Byrde. Recomendo-o vivamente a todos os fãs de música renascentista, de Byrde e Egarr e, claro, a todas as aves raras. Esta gravação, na qual Egarr demonstra o seu talento superlativo, é servida por uma produção irrepreensível e por um design de muito bom gosto.

O futuro homérico — e acidentalmente wildeano — de Shyamalan



No remate do ensaio intitulado 'A Strange Faith in Science', uma das faces que poliedram Seven Types of Atheism (Allen Lane, 2018), o filósofo inglês John Gray reflecte sobre a problemática de um futuro pós-humano, avançando com a provocação de que um estádio dessa natureza, em que seres humanos criados artificialmente poderão, eles próprios, criar artificialmente outros seres humanos, se assemelharia mais às composições de Homero, em A Ilíada e A Odisseia, que à utopia transhumanista na qual o Homem Novo, mesclado de sintético e cibernético, assomaria como senhor da história ou auto-proclamada divindade. Escreve Gray: «If it ever comes about, a post-human world will not be one in which the human species has deified itself. More like the polytheistic cosmos imagined by the ancient Greeks, it will be ruled by a warring pantheon of gods. Anyone who wants a glimpse of what a post-human future might be like should read Homer. Like the evolutionary process that produced the human species, post-human evolution will be a process of drift» (p. 69).


O futuro idealizado por Elijah, o Mister Glass (que, a páginas tantas, declara ser um criador de super-heróis), aparenta ser mais próximo de Homero e de Gray que de Ray Kurzweil ou de Yuval Harari (The Singularity is Near: When Humans Transcend Biology e Homo Deus: a Brief History of Tomorrow, respectivamente) na sua tácita aceitação do humano: o mundo de super-heróis de que ambiciona ser, em simultâneo, parteira e profeta radica na aceitação do bestiário das imperfeições, pois cada poder de um super-herói possui num super-vilão uma fraqueza correspondente, num vero caleidoscópio de enantiomorfos. Assim, é uma pena que a personagem mais interessante de Glass (2019) seja remetida ao mutismo e ao imobilismo durante mais de uma hora, nunca se concretizando o denouement que uma relativamente hábil construção de expectativas prometia.


Faz lembrar a patifaria de Nolan em The Dark Knight Rises (2012), filme do Batman com quase três horas de duração e em que essa personagem somente aparece, no limite, durante vinte cinco minutos; com efeito, ainda houve Bruce Wayne suficiente para preencher o resto da fita, e arguir-se-á que o nome Batman não faz parte do título, ganhando, em proporção, maior espessura a patifaria de M. Night Shyamalan que, ainda por cima, pontofinaliza a sua história com um dos desfechos mais deprimentes que vi em ficção nos últimos anos. Será subjectiva esta minha avaliação, certamente, mas o filme transmitiu-me o sentimento que Shyamalan foi um criador injusto para as suas criaturas — leitura reforçada por revelações propínquas desta hora sobre o facto de o final original ter sido outro, reescrito mais ou menos à última instância por receio que caísse mal na actual mundividência politicamente-correcta do público. 


A verdade é que haveria muito para gostar em Glass, porque a premissa é interessante: olhar-se para o fenómeno dos super-heróis com um ponto de vista ontológico ou até semiótico, o que Unbreakable (2000) já conseguira fazer, dentro de uma balaustrada infelizmente bem definida. Nesse sentido, é, ainda, um filme melhor e mais pertinente que Glass.


É sintomático que seja na banda-desenhada que os exames metafísicos à super-heroicidade voem a alturas nunca sequer afloradas pelo cinema, cujo epítome poderia ser o excelente livro do Super-Homem It's a Bird (2004), escrito por Steven T. Seagle e desenhado por Teddy Kristiansen, obra que, na minha opinião, se tem conservado como o mais sensível, astuto e imprescindível testemunho sobre o que significa, afinal, ser-se super-herói. Infelizmente, para o espectador, Shyamalan não é um pensador, digamos assim. É plausível que Glass brilhasse mais em formato de seriado televisivo, prolongado — formato que até se aproxima mais de um romance, em oposição ao da longa-metragem, que vai mais na direcção de um conto. Susan Sontag teorizou sobre sinergias desta estirpe em Against Interpretation (1966); pelo menos pensou no parentesco entre literatura e cinema como linguagens narrativas, desagrilhoando o segundo do campo exclusivo da gramática visual.


Apesar do titulo, parece que Shyamalan se deslumbrou pelo títere interpretado por James McAvoy, oferecendo-lhe longo tapete vermelho para um protagonismo imenso. Se é verdade que o actor escocês desempenha os seus vários papéis em Glass com uma desenvoltura notável, a pirotecnia gestual e vocal não justifica, por si só, o segundo plano dado às personagens trazidas de Unbreakable. Tem graça a sincronicidade de ter estado a falar sobre Oscar Wilde antes de entrar no cinema, pois no final lembrei-me logo da sua famosa frase «each man kills the thing he loves». Infelizmente, é o resumo perfeito deste filme.

Crítica ao ruinismo da contemporaneidade


Seguindo na esteira dos esforços sinceros, mas, por vezes, pouco sistemáticos, dos antiquários que o precederam, Piranesi foi, na minha opinião, o artista que com mais argúcia e persistência aperfeiçou um estilo de desenho que se poderá denominar de ruinismo, ou seja, a representação indefectível da corrupção do passado, tal qual podia ser observada num momento presente; desiderato que comporta, em suma, a transferência de um espelho temporal para o plano moral, integrando a ruína na topografia metafórica, à guisa de alegoria da corrosão do indivíduo. No fundo, haveria gérmen para o efeito, não obstante o intrínseco homomerismo das estruturas em decomposição, nas quais parece só existir um todo, nunca as partes: espécie de fractais, cuja formulação fora prematuramente interrompida.

Porém, foi Goya o tradutor, em caliginosos ensaios, do ruinismo individual (e colectivo) do humano: fui sendo atraído pela vontade de ver em Goya um Piranesi do ser humano, um ruinista do homem — mas onde o olhar pacífico de Piranesi se deixa preencher pela flora esparrinhada em volta da pedra e do ferro (e ainda bem, pois poucas composições serão mais hostis à harmonia que o hibridismo entre pedra e metal), em jeito de nevoeiro enviado por Atena a Odisseu para protegê-lo dos perigosos feaces, guindando a sua pena ao serviço do todo, Goya é obcecado pelas partes: só existem partes nos desenhos e pinturas negríssimas de Goya, por vezes partes na mais imediata acepção dessa palavra — partes humanas, espetadas em ramos e lâminas. Partes, outras, de zoomorfismos e teriomorfismos variegados, amoldados em lúgubres grotesquerias: nunca me abandonará o desconforto sentido quando vi pela primeira vez o bisonho e patético lobisomem que observa uma bruxa numa vassoura a subir por uma chaminé, qual Anúbis castrado e esfolado, ao qual só faltaria uma coleira para ser bicho de trazer por casa. Horrendos são os seus duendes e diabretes, mas repare-se que certos fenótipos dessas aberrações se aproximam daquilo que viria a ser o figurino tolkiano do orco, espécie de criatura miserável que é, na origem, o ruinismo do elfo.


Com efeito, no imaginário de Tolkien, os orcos foram fabricados pelo poder das trevas a partir dos elfos, os primeiros seres da criação: arruinados — e aplico programaticamente esta palavra —, eles são versões ruinistas de uma melhor intenção, propositadamente corrompida para servir de instrumento da deterioração. Assim, os "orcos" semi-humanos de Goya, que se deleitam nos mais abjectos actos que a sua astúcia de animal perverso é capaz de conceber, expressam, tal como em Tolkien, uma visão pessimista da humanidade transfigurada — não pela tragédia —, mas pelo arbitrário absurdo de pequenas violências que se vão acumulando, que nem as partes amorfas de uma ruína, concorrendo para um todo cada vez mais uniforme na sua colossal deformidade física e moral.


Polémica de vãos de escadas


Os comentários que ouço e leio pela comunicação social e pela Internet influenciam-me a conjecturar que, de facto, pouca gente conhecia o poema Ode Triunfal do heterónimo Álvaro de Campos, criado por Fernando Pessoa, tais os niveis de estupefacção e indignação pela revelação que contém passagens algo heterodoxas.

Ora, Álvaro de Campos é o avatar pessoano de um estilo que se quer Futurista, logo muitíssimo severo para com a sociedade que a Europa herdou do século XIX, inspirando essa crítica violenta da sociedade urbana — cosmopolita, considerada imoral na sua atomização do indivíduo (o que é Kafka, senão uma espécie de futurista niilista?) — as de outros movimentos posteriores, de aspectos análogos, como o Dadaísmo, surgido em meados da Primeira Grande Guerra. Todavia, se o Dadaísmo enfatizava — e se opunha — ao absurdo e horror dessa guerra massificada, industrializada, o Futurismo abraçara a velocidade, a indústria e a violência como ferramentas revolucionárias que iriam esboroar uma ordem social liberal, considerada decadente. Já em 1909, Marinetti, pai do Futurismo, cantava no seu Manifesto que o ruído de um automóvel a correr ou os disparos de uma metralhadora eram mais belos e pertinentes que a Vitória de Samotrácia. Daí que as putas, mais as meninas que masturbam homens de aspecto decente em vãos de escada de
Ode Triunfal, são como que lâminas nas quais se reflecte todo o estertor de uma sociedade liberal de início de século considerada corrupta, imoral e hipócrita pelos futuristas e outros istas (como os fascistas, mas isso é outra história).

Fica ainda a revelação que Pessoa escreveu várias vezes sobre as suas próprias práticas masturbatórias, onanistas, e que não andam meninas por essas fantasias solitárias.



Nota sobre o Absoluto


 
Ao ler neste momento sobre o problema filosófico do Absoluto, lembrei-me, de modo absoluto (isto é, acabado em si mesmo, não-contingente), de determinados espaços que vi poucas vezes na minha infância, mas que sempre considerei fascinantes: a estância e a drogaria. Na minha geografia mental, eles nunca contêm pessoas (tal como as melhores pinturas de Hammershoi), somente um florilégio de objectos e briquebraques, como espelhos, escovas, panos, louças; ali, na estância de atmosfera seca — tão grande que parecia uma imperfeição para a qual a ortogonal malha cosmopolita consistia em pérola — estão suspensas sobre o longo balcão de madeira dezenas de alfaias esqualomórficas, lemniscatas de ferro e cobre cujo uso nunca determinei: que estranha física, aquela que elevava o metal ao tecto e agarrava papel, areia e plástico ao chão, nas formas mais dóceis e perceptíveis de lixas, serraduras e mangueiras. Porém, na recendente drogaria todos os artefactos derivavam uns dos outros, em estonteante reprodução assexuada — amebas de vidro e tecido, de borracha e cortiça, dispostas nas escadas, nas paredes e nas portas. Infenitesimais parafusos coabitavam com colossais misturadoras de cimento, cujo antracíticos ventres davam ares de gigantes caldeirões caligráficos numa lista medieval. Cheira a cera e a suor e a farinha creme que se desprende de contraplacado serrado vai misturar-se como cacau em pó com a luz projectada da rua pela porta. E, no entanto, não existem pessoas nestes espaços atafulhados. Todos os sons, cores e formas estão lá por si só. E ao lado da caixa registadora vê-se um calendário cheio de pó e lascas de ferrugem: sem utilidade num espaço intemporal que é o da mente, é livre para existir por si mesmo, sem a contingência que o unia à marcação do tempo. Tóteme do absoluto num interior tão desértico e relevante quanto uma paisagem marciana.