sábado, 18 de abril de 2020

Pequenas Histórias - ep. 1: "Filhos de Anúbis (freguesia da Misericórdia)"

Este é o primeiro episódio de Pequenas Histórias: série de vídeos sobre a história de Lisboa, que criei para o meu canal de YouTube, contada por freguesias e partindo de personagens e factos ignorados ou desconhecidos, que enfatiza a importância das pequenas histórias no entrecho dos grandes acontecimentos.

Em Filhos de Anúbis (freguesia da Misericórdia), observa-se uma ligação tropológica entre a guerra contra os cães vadios de Lisboa, iniciada a 12 de Abril de 1808 pelo intendente da polícia Pierre Lagarde, e o fixamento dos ideais do Liberalismo. Duas cosmovisões em confronto, num período transitório entre um mundo que acabava e outro que, progressivamente, se instaurava.

domingo, 12 de abril de 2020

Leitura de "O Corvo" de Edgar Allan Poe (trad. Fernando Pessoa)

Leitura minha do poema O Corvo de Edgar Allan Poe (1845), numa tradução de Fernando Pessoa — para todas as gralhas e todos os corvos que flutuem de fugida entre os sopros de uma poesia.


segunda-feira, 6 de abril de 2020

Conta-me como será: ou, Algumas previsões para um mundo pós-Covid-19

 
Sem querer insistir na solidez desta meia-dúzia de previsões (redigidas com base na informação disponível até este instante), afiguram-se-me alguns novos pontos de fuga para o travejamento político pós-Covid-19. Eles são:

1) É plausível uma acelerada ou mesmo abrupta extinção do Liberalismo, nas suas várias facções, concomitante ao reforço de políticas novas que fortaleçam a intervenção dos Estados em áreas que, por tradição, eram do desempenho privado.

2) Políticas que tendam a robustecer a influência dos Estados serão, conjectura-se, muito populares; mas, credivelmente, esse incremento não passará pelo recrudescimento de medidas de Esquerda, porque esta encontra-se comprometida com um projecto Europeu em assinalável moribundez e de baixíssimos níveis de popularidade. Prevê-se, pelo contrário, que essas novas políticas de estribamento dos Estados sejam, efectivamente, de Centro: ideias ditas de Centro serão consideradas as que mais angariam bom-senso e achadas as mais eficazes.

3) O modelo actual de globalização, já flebotomizado até à palidez pela crise de 2008, sofrerá um intenso golpe, porque ficaram ainda mais expostas as fragilidades de um comércio global assente em demasiados intermediários e por sistemas produtivos e económicos demasiado descentralizados. Assim, será provável que os novos Estados fortalecidos adoptem políticas para uma maior auto-suficiência, investindo em áreas de produção já abandonadas e enriquecendo os seus tecidos industriais — em particular Estados que nas últimas décadas se orientaram quase em exclusivo para uma economia de serviços.

4) A reinstituição das antigas lógicas de Estados-Nações não será, pois, acompanhada de um ressurgimento de ideologias nacionalistas novecentistas, pois a auto-suficiência tem limites: situação que poderá acelerar o declínio da União Europeia e nesse seguimento recriar um mundo parcelado em novas-velhas ‘commonwealths’, digamos assim, de interesses comuns, ligadas por laços históricos, geográficos, económicos e culturais (p. ex.: Reino Unido + Estados Unidos; um grupo formado pelos países da Europa do Norte e outro grupo formado pelos países da Europa do Sul).

5) Ainda é cedo para especular como ficarão as preocupações climáticas/ambientalistas que efervesceram de variadas maneiras a opinião pública nos anos mais recentes, mas é provável que o novo ‘milieu’ milenarista pós-Covid-19 sirva de breviário e altar a religiões globais mais adaptáveis à nova moldura política e económica esboçada nas linhas anteriores.

6) Mais do que subsidiar a existência ao espaço digital, a actual experiência de isolamento social demonstrará aos indivíduos que a Internet é apenas uma ferramenta e não a tecnologia utópica que se considerava ser há poucos meses, sendo de prever que esta passe por um período de desencantamento utilitário similar aos de outras tecnologias, como a electricidade — um exemplo: observada nos anos 20 do século passado pelo regime soviético como a tecnologia que faria a revolução socialista global, a electricidade passou pelo seu período de desencanto tecnológico. O mesmo ocorre/ocorrerá com a Internet: ninguém poderá viver sem ela (como com a electricidade), mas perderá as vestes de utopia com que foi enroupada desde a sua concepção.

O heroísmo das pessoas fracas


The Outsider, adaptação de um livro recente de Stephen King, é inscrito pela ingenuidade simultaneamente encantatória e exasperante com que, demasiadas vezes, os autores americanos tentam enxertar as suas criações em mitologias de origem europeia para fazê-las crescer com o viço mítico que alimenta o reservatório folclórico do Velho Mundo; neste caso, a criatura que perambula pelo Bible Belt, metamorfoseando-se em diversas pessoas com quem contacta de molde a predar os fracos sob essas identidades, é descrita como sendo o monstro que, através dos tempos, foi arregimentando relatos e lendas sobre o Papão — ou El Cuco, em expressão espanhola, como é tratado em The Outsider. Com efeito, quando a personagem Holly Gibney, detective contratada para descobrir pistas sobre este estranho caso, navega a páginas tantas num motor de busca de Internet por entre imagens amadoras de avistamentos de El Cuco e as pinturas negras de Goya percebe-se que existe, efectivamente, um distanciamento enorme entre a sensibilidade americana e a europeia, pois se para a primeira essa cena evocará um lastro mitológico longínquo e até desconhecido, para os olhos europeus a mesma cena tem o efeito de um duche de água fria. Quão melhor seria se os criadores de The Outsider tivessem rebuçado o monstro sob o anonimato, numa mitologia endémica, natural desta produção, sem necessidade de alistá-lo no bestiário.

No folclore e no hagiológio de Portugal, a Cuca ou Coca é, muitas vezes, uma criatura saurópside — como o Dragão que é derrotado nas festividades do feriado do Corpo de Deus, em Monção. Nos livros de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, o escritor brasileiro Monteiro Lobato imaginou a sua Cuca como sendo uma jacaré bruxa, prima do Saci-Pererê.

Não obstante a sonoridade patusca, o nome precipita do étimo grego ‘kako”, que significa “mau” ou “maléfico”, e do qual se desprendeu a acepção excrementícia de “caca” e de “cocó”. É, por conseguinte, um nome que tem estado sempre associado ao mal, à sujidade, ao nauseabundo. Aliás, palavras como “cisma”, “consciência” e “ciência” são todas cognatas do étimo em latim “scire”, aparentado de “kako” e do étimo indo-europeu “shkei”, que também significa “excremento”.

Alheias a estas ligações etimológicas, as personagens de
The Outsider caçam El Cuco numa velhíssima gruta de infame historial e conseguem eliminá-lo com relativa facilidade, pois, para sua sorte, a criatura encontrava-se num momento de fraca forma — embora uma coda algo mercenária, martelada já a ficha técnica do último episódio se desenrolava, sugira que poderá ser produzida mais uma temporada.

Não li o livro de King, mas, pelo que conheço do seu estilo,
The Outsider assemelha-se mais a um híbrido eficaz das primeiras temporadas de The X-Files (a sobriedade antártida do tom, da cinematografia e da banda-sonora), os romances de Clive Barker (a caracterização à inglesa da psique perturbada de personagens bizarras) e a matriz narrativa de King (crónica dos medos contemporâneos da sociedade americana, um ambiente cercado pela cultura popular e os ‘underdogs’ contra as forças do Mal).

Na verdade,
The Outsider atenua algumas das características de King que enunciei acima, como as referências à cultura popular da época em que a história se situa, o que favorece o todo, tornando-o mais intemporal. No entanto, no que concerne à crónica pesadelar da actualidade, alia-se no mesmo inimigo o medo da pedofilia e o do roubo da identidade: à semelhança de It, também aqui a criatura transmuta de forma e é uma predadora de crianças — porque «são mais doces», lembrando os fãs de King que o autor tem desenvolvido a ideia de que os seus monstros provêm, em regra, do mesmo local: um abismo inter-dimensional, situado entre mundos, ninho de monstruosidades malévolas, entre o demoníaco e o alienígena. É a influência de Lovecraft, provavelmente, mas se os seus monstros espaciais se caracterizavam pela indiferença face ao humano, os de King estão totalmente interessados em nós. Na verdade, parecem viciados no humano.

É por esta via que eu considero que os monstros de King se comportam como demónios medievais e os seus heróis são representantes de uma espécie de piedade popular de pendor protestante, segundo a qual os “escolhidos” vencerão. Muitas vezes, os heróis de King derrotam o Mal por meios verdadeiramente perfunctórios, o que só pode justificar-se pelo facto de que o actor vale mais que a acção; ou seja: o Mal é derrotado, porque foi enfrentado por determinada personagem e não por outra. No confronto entre o Bem e o Mal é importante escolher o campeão do Bem. No fundo, a Fé vale mais que as Obras, numa lógica determinista puramente protestante — mesmo quando o cunho determinista é atenuado, a tónica assinala-se pela fé nas Escrituras e não na conduta. Assim, os heróis de King (e não só) acabam por ser os indivíduos mais imprevisíveis, os anti-sociais, os marginais, os imperfeitos. Uma lógica que, com efeito, já vinha anunciada na primeira epístola de Paulo aos Coríntios: «Deus escolheu propositadamente as coisas que o mundo considera loucas para envergonhar aqueles que pensam ser sábios e escolheu as pessoas fracas para envergonhar as que têm poder» (Coríntios, 1, 27).