A
arduidade de muitas práticas contemplativas que diversas religiões
exigem aos crentes constitui uma prova mais do que suficiente de que o
Homem não foi feito para o silêncio: assente na oralidade e na escrita, a
linguagem é uma forma de vida na aventura humana, reproduzindo-se de
indivíduo para indivíduo, coagindo artífices da palavra a transmutá-la e
resignificá-la. Mais do que ser uma interrupção da unidade da
inconsútil manta discursiva, a assonia do silêncio é um espaço de
ausência do humano; logo, o lugar do sagrado, na perspectiva de que o
sagrado é, sempre, a antítese do humano, uma formidável força
antropofóbica, porque nas crenças que admitem o contacto do homem com o
númen, aquele tem de transcender a carne, qual crisálida ou casca de
suas primícias, de molde a ascender da plataforma profana que é este
mundo.
A percepção de que o silêncio era sagrado — e intangível —
expressa-se nos pânteos paleolíticos, preenchidos por divindades
teriomórficas, amálgamas de homem e animal, em desiguais graus de
hibridez. Esculpido há quarenta mil anos num dente de mamute, o
Homem-Leão de Hohlenstein-Stadel representa essa característica da
religiosidade primeva: descoberto numa caverna dos alpes suábios, na
Baviera, uma semana antes do início da Segunda Grande Guerra, este ídolo
de uma Europa tão antiga que poder-se-ia apelidar de mítica, ergue-se
em trinta centímetros de altura — pouco mais alto que um gnomo de jardim
(outra criação das alpinas latitudes germânicas) —, enfrentando com
confiança felina o olhar dos observadores. É um macho sem juba, segundo o
figurino do extinto leão das cavernas europeu, espécie cujos últimos
descendentes ainda foram caçados pelos antigos gregos e romanos. Este é o
Leão de Nemeia, fabulosa fera chacinada por Herácles no seu primeiro
trabalho: o último filho de Équidna, primordial mãe de todos os
monstros, irmão mudo da Esfinge. O silêncio e a ferocidade, apanágios
dos deuses, anaglifados por lâmina de pedra; arrancados, por esse lítico
fórcipe, do útero da matéria-prima animal até a cintilante e imaterial
sefira do sonho.
O seu homuncular corpo não se encontra anediado
pela erosão milenar, mas pelos ininterruptos afagos dos crentes: isto é
adoração no estado mais puro — carícia, beijo, prometimentos contra a
miséria dos elementos. Contra a fome e contra o desespero, o Homem-Leão
foi venerado na sua despojada gruta: santuário ‘ad fontes’ de todos os
templos seguintes. A sua silhueta ainda transmite uma firmeza
simultaneamente autoritária e compassiva, de quem, em segredo, gostaria
que as presas humanas se tornassem seus filhos. Os deuses não falam,
porque ensinam pelo exemplo.
Não obstante, nós falamos — com
efeito, não somos capazes de ficar em silêncio. Mussitamos suaves
orações, rogamos de voz entrecortada pela desesperança, quando não
amordaçada pela própria morte em leito hospitalar cercado de crípticos e
cruéis instrumentos. Procuramos a luz fosca da memória; tão fosca
quanto uma candeia acesa numa caverna — e igualmente frágil. As palhas
da memória precisam do fogo da imaginação.
Esta é a verdade da
condição humana: comunicar com o numinoso e ominoso silêncio dos deuses,
transcender os contornos do Antropos em direcção ao zoomorfismo
silencioso e sagrado das bestas. Homem-Leão, Homem-Pássaro, Homem-Peixe:
os elementos não aprisionam o humano transfigurado. E no entanto — uma
semana depois de o Homem-Leão ter sido descoberto, deflagrou a barbárie:
o mesmo território que deu à luz o monacal Homem-Leão também vomitou o
Holocausto. O Homem é um construtor: ergue catedrais e câmaras de gás;
fabrica deuses e crucifica-os. Sozinho no universo, só ele inventa o Céu
e o Inferno.
A vantagem de idolatrar o silêncio, como bem sabiam
os aurignacenses, é que, ao contrários das vociferantes ideologias e
credos contemporâneos, não nos é dito como nos devemos comportar: isso —
tal como a opção entre cultivar ou não a imaginação — é uma escolha de
cada um.