Do rol de confusões da contemporaneidade, uma que me desgosta especialmente é o erro de achar-se que Ciência é o mesmo que Tecnologia e que esta é o mesmo que Fé na tecnologia — a fé de que o desenvolvimento geométrico de comodidades tecnológicas remirá o ser humano das armadilhagens do seu atávico irracionalismo.
É uma percepção positivista, brotada da fonte das Luzes, esta de que moléstias sociais, como o crime, a loucura e o vício, podem, em última análise, ser extirpadas através da aplicação rigorosa de leis racionais, executadas por governos científicos ou tecnológicos. Os antigos Gnósticos acreditavam que o conhecimento libertaria o Homem — não se tratava de sabedoria, como hoje a entendemos, mas a árdua descoberta de que se estaria encasulado numa ilusão colectiva criada por um demiurgo diabólico. Não obstante, o topos de que o conhecimento liberta, e a metafísica aprisiona, permeia toda a Época Contemporânea e a fé resoluta — obstinada — de que o conhecimento racional, alcançável pela ciência e pela tecnologia, resolverá todos os problemas (mesmo quando se comprova que esse conhecimento nada tem de conhecimento e nada tem de científico). A figura electromecânica do robô, ícone futurista por excelência, é uma preclara representação do Homem Contemporâneo: programado para executar tarefas de modo eficaz — logo, de modo racional —, o nosso sósia cibernético ignora completamente tudo aquilo que identifica um ser humano enquanto tal, começando pela irracionalidade, o erro, o transcendente.
Em oposição ao robô, o Homem é uma criatura transcendental: uma mente divina reclusa num corpo animal, falível e deslustrada, capaz de construir uma catedral e, em seguida, escavar uma vala comum. Talvez a melhor forma de garantir que a catedral seja sempre mais alta que a profundidade da vala comum seja admitir a natureza irracional do Humano. Muitos mais cadáveres foram enterrados pelo Sono da Razão que por todos os Sonos anteriores: por trás de cada genocídio ou utopia totalitária novecentistas encontra-se sempre um plano de utilitarismo científico, servido pelos últimos gritos tecnológicos. Do mesmo modo que amputar um órgão não o torna mais eficiente, é uma loucura esperar que processos de desumanização construam seres humanos mais perfeitos. A ser alguma vez forjado, o Homem Novo com que sonham todas as Utopias não será mais do que um robô.
A arte, o sonho, o amor — até a Ciência —, tudo aquilo que identifica um ser humano como humano não é produzido na prancheta de modo canhestro a régua e esquadro: procede da nossa pré-história mental, de um tempo em que muito antes de se pensar em racionalidades, economias e tecnologias, artistas paleolíticos deixavam as mãos impressas nas paredes das grutas — essas mãos dizem-nos “sou eu”, “estou vivo”, “isto foi o que sonhei”. É umbilical, esta poderosa e telúrica energia somente minerada no lugar mais occipital do nosso pensamento, escondida sob compactas camadas de escória mediática e ideológica: penetre-se essa espessa parede, derrube-se as rochas do suposto racionalismo e, ei-las!, as nossas próprias mãos impressas no estrato mais primitivo. Sempre emergentes em tempos de crise da fantasia.
Com efeito, só a fantasia poderá salvar o Homem dos infortúnios da racionalidade, da miséria da acção funcional, da pressão entrópica do utilitarismo. Este é, à maneira gnóstica, um conhecimento perdido que urge encontrar. Se, como dizia Dostoiévsky, “o homem é um animal que se habitua a tudo”, habituemo-nos a fantasiar, a contemplar as mãos na parede da caverna.
Esta foto é de uma fonte esculpida no início do século XVI, no reinado de D. Manuel: representa o rei e a irmã, D. Leonor, na forma de uma serpente bicéfala que jorrava água por ambas as bocas (sabe-se que são o rei e a irmã, porque estão identificados com as suas divisas pessoais, a esfera armilar e o camaroeiro). Não me recordo de outro caso de representação análoga a esta no espaço europeu e penso que este artefacto singular diz muito sobre como uma sociedade e uma civilização podem aprender a fantasiar. A aceitar que a natureza humana é mitológica e metafísica, em oposição a ortogonal ou positivista. A aceitar que a natureza humana é dupla — sagrada e profana; transcendental e reptante como uma serpente. E, como esta, que é da água, anfíbia.
Uma Lisboa feliz produziu uma fonte feérica, simultaneamente rébus e rebis; puro divertimento contra o desespero e o Apocalipse. Porém, quais são os símbolos do nosso tempo? Onde estão as hodiernas mitologias que nos dão sentido? Não existem: vivemos num mundo artificial e desalmado. Não imaginamos nada, porque imaginar é um atavismo irracional.
Mas não tem de ser assim para sempre.