É fascinante a recente descoberta (notificada no jornal Público do passado dia 25 de Maio) de que nos painéis ditos de São Vicente de Fora, de autoria atribuída ao artista Nuno Gonçalves, o protagonista em duplicado (vulgarmente identificado como sendo esse santo) já envergou numa fase preliminar paramentos pintados de azul.
Na peça em que se dá prova do novo facto é lembrado que no Livro de Horas de D. Duarte existe uma iluminura na qual São Vicente também veste uma dalmática azul — mas no mesmo livro outras figuras, superiores e inferiores ao estatuto do mártir de Saragoça, vestem igualmente de azul; desde a Virgem (como seria de esperar), como alguns camponeses e até os sicários do rei Herodes. Criado no primeiro quartel do século XV (entre 1400 e 1430) na cidade de Bruges, este códice expressará ainda a trecentista cromofilia flamenga que mutaria de gosto no decurso da centúria seguinte, em que o azul foi, progressivamente, sendo substituído pelo preto como a cor aristocrática, por excelência — moda que se espalhou e perdurou por quase toda a Europa durante boa parte da Época Moderna. Aliás, já no século XVI, a rainha Isabel I de Inglaterra proibiu o uso da cor azul. No setentrional cosmos protestante, o preto é, superlativamente, a cor moral. (Na verdade, a afirmativa emergência do preto como a cor mais digna do espectro pode ser traçada desde a promulgação de certas leis trecentistas e quatrocentistas contra o luxo: as leis sumptuárias que tinham como objectivo regular o vestuário e os acessórios.)
De facto, o azul foi uma cor impopular — e até observada com desconfiança — ao longo de grande parte do período denominado de Idade Média: arreigadas aos costumes greco-romanos, as cada vez mais consolidadas elites reais e respectivas nobrezas privilegiavam a tríade clássica de branco, vermelho e preto, reservando, por vezes, algum destaque para o verde; nas representações artísticas, inclusive, o azul é inexistente — até como cor do céu. Foi, certamente, por via da indústria do pastel dos tintureiros, muitíssimo utilizado nas manufacturas de vitrais e de objectos de vidro que o azul, em principal nas primeiras décadas do século XII, foi associado nas igrejas à Luz Divina, como uma manifestação visual da imaterialidade. Para a nova associação contribuiu o pensamento gótico do abade Suger; com efeito, é a partir do tempo de Suger, do dealbar do Gótico, a Arte da Luz, que o azul logra sobrematizar o próprio manto mariano (que até à data era, muitas vezes, preto) e até transmutar-se em cerúleo avatar de França: a cor da corte e da nação. Não obstante, nesse período a popularidade do azul não se traduziu na sua celebridade — e permaneceu fora da paleta de outros reinos. Quanto a paramentos, o azul não se inscreveu como cor litúrgica no catolicismo, ou seja no Rito Romano; sem embargo de se encontrarem vestes cerimoniais azuis, por exemplo, na igreja de Inglaterra do século XIV, ainda em fase de difusão insular do Gótico.
O azul foi, em suma, uma cor de tradição francesa e flamenga — e neste caso até finais de Trezentos. Para a Flandres, e não só, o século XV já era o do preto. Assim, as dalmáticas azuis de São Vicente nos painéis consistem num “mistério” estimulante e que, certamente, vem sugerir interpretações que até agora têm estado em suspenso: uma delas, que eu não defendo (faltam elementos), mas que mantenho sem nenhuns problemas em aberto, é a de que os Painéis de São Vicente não são portugueses e podem, inclusive, representar uma camarilha de figurantes cuja identidade de grupo nos escapa à decifração. Lembre-se que Francisco d’Ollanda — que viu os Painéis na Sé de Lisboa e escreveu sobre eles — descreve esta obra como sendo insigne em «tempo mui bárbaro», porque na altura da sua concepção (século XV) os artistas portugueses só queriam imitar o estilo flamengo e desconsideravam o italiano: ora, na sua óptica, os ditos Painéis de São Vicente da Sé iam em sinal contrário, aproximando-se da arte italiana e não da flamenga — como exsuda do políptico aqui sob observação, que nos mostra toda uma gramática visual e encenação flandrinas.
(Abaixo segue a imagem de um excerto das notas finais do meu romance O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência, 2010), nas quais reflecti, precisamente, sobre a problemática da identificação das personagens dos Painéis e a proveniência destes.
Este texto foi publicado originalmente no passado dia 28 de Maio na minha página de Facebook.)