
Inversamente
às narrativas contemporâneas, sustentadas pelo vápido e pelo
transitório, os mitos, filtrados pela peneira do tempo, são, quase em
exclusivo, verdade — verdade sobre a condição humana. A verdade é que,
passados milhares de anos, a natureza humana ainda é a mesma.
Uma das verdades que mais serviria de guia e aviso para a jornada contemporânea, caso a maioria estivesse com atenção, é a
de que facilmente nos podemos transformar em algo que desgostamos; na
verdade, metamorfose e temeridade são cognatas na mentalidade clássica.
Confronto, más escolhas, transferência e transformação. Ovídio escreveu
um livro inteiro sobre esses temas.
A matriz humana é plástica,
proteica, instável. Nunca se sabe o que poderá advir de encontros
improváveis com matérias desconhecidas. Porém, na actualidade, neste
período assinalado por uma espécie de neo-cientismo devedor dos piores
tiques do original oitocentista, os mitos são desdenhados, porque não
consistem em correctas interpretações da realidade, pressupondo que
se pode com facilidade concordar sobre aquilo que é a realidade e,
também, sobre o quão objectiva pode ser uma interpretação. Mas o objectivo dos
mitos nunca foi o de explicar a realidade, mas o de dimensionar
significado. Os antigos não acreditavam na literalidade dos seus mitos —
e, em harmonia com essa velhíssima, mas prudente precaução, seria
cauteloso que não nos precipitássemos a crer na literalidade dos nossos.
De facto, continuamos a criar mitos, mas insistimos em não querer
vê-los dessa forma. O impacto desse comportamento será sempre o da
transformação indesejada em algo que se detestaria ser, mas que, como as
infelizes vítimas dos mitos antigos, se é impotente para impedir.
Talvez não seja arbitrário que a incessante procura contemporânea por
identidades se relacione com um angustiante sentimento de vazio face a
um mundo que se considera submetido a inéditas transformações, mas um
exame histórico demonstra que nada é inédito, verdadeiramente — e é por
essa razão que os mitos continuam a significar. A volta do Milénio, como
seria de esperar, não trouxe nenhuma das transformações profetizadas
pelos prognosticadores: nenhuma utopia se concretizou e isso é
assustador para quem lhes dirigiu a fé. Nestes tempos turvos de confusão
e ludíbrio, em que nem cultura nem contracultura estão de boa saúde,
infestadas pela praga dos pregões, das ideias feitas e do policiamento
da imaginação, seria uma boa ideia voltar a olhar para os mitos do
passado para compreendermos que 1) não estamos sozinhos nas nossas
indefinições e que 2) a falta de discernimento é a mais rápida forma de nos transformarmos naquilo que não gostamos.
(Imagem: Jóia quinhentista, representando a transformação de Dafne em loureiro, usando coral para o efeito.)