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quinta-feira, 9 de junho de 2016

Enterrando sardinhas


Agora que chegou o intermezzo da ictiofagia bairrista - e não só em Lisboa -, vale a pena dar o alvitre sobre a espantável tradição do Enterro da Sardinha (quarta-feira de cinzas): misto de piedade popular e Carnaval, que, infelizmente, tem andado um bocado esquecido. Cortesia de Francisco Goya é o chinfrineiro charivari que aqui publico, pintado em 1819 no dealbar da realização da série das Pinturas Negras pelas quais o quasimodiano artista ficou famoso no nosso tempo - e, com efeito, já há muito de pintura negra nesta caliginosa composição - na qual, curiosamente, o pelágico clupeiforme está ausente. Já foi enterrado, provavelmente.

Coda:
1) o Enterro da Sardinha é uma espécie de Enterro do Bacalhau, também praticado na quarta-feira de cinzas;

2) nas Posturas Antigas sobre o pescado na cidade de Lisboa, três posturas, pelo menos, falam exclusivamente sobre problemas relacionados com o comércio e pesca de sardinhas; a minha preferida é a «Postura do Preço das Sardinhas e Contadeiras que Sejam Casadas e Não Solteiras» que regula tanto a mercadoria como o estado civil de quem a pode ou não vender;

3) além de servir para a confecção de pastas e acepipes de variável grau de requinte e exigência, a sardinha era usada pelo vulgo como ingrediente principal em mezinhas muitíssimo curiosas (lia-se as vísceras das sardinhas para adivinhar quase tudo, mas, em principal, o sexo dos bebés era adivinhado lançando-se uma espinha de sardinha ao lume e observando como se comportava - se levantasse, nasceria um rapaz). Aliás, nem só pelo vulgo, pois o Dr. Cipriano de Pina Pestana, médico da câmara de D. João V e físico-mor do reino (houve três médicos de câmara neste reinado, mas penso que este é o nome certo para o caso), saudava o efeito expurgante da cabeça de sardinha quando empregada como supositório em casos de prisão de ventre.
 

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Sobre o Carnaval


Pouquíssimas dúvidas restarão sobre o facto de que a origem da palavra Carnaval se encontra na expressão latina Carne Vale, que significa, literalmente, despedida da carne ou, de modo mais abreviado, adeus à carne. Mas qual carne? Não se trata tanto da carne que se come, como é evidente, embora esta não esteja excluída do enunciado, mas das tentações carnais, dos pecados da luxúria, do sensualismo. Com efeito, a festa do Carnaval contemporâneo está relacionada directamente com o Entrudo, nome proveniente da palavra latina introitus, que possui o significado de entrada; neste caso, a entrada na Quaresma (em latim, quadragesima): período de quarenta dias de preparação para a celebração da Páscoa, que se estende desde a chamada quarta-feira de Cinzas até ao sábado de Aleluia, véspera do domingo pascal, dia da ressurreição de Cristo. Durante estes quarenta dias (o número 40 sempre foi especialmente significante para as religiões judaica e cristã), os cristãos eram obrigados pela Igreja a absterem-se de relações sexuais e a obedecerem a um conjunto de preceitos rígidos, de orações e de jejuns mandatórios. Neste feitio, o Entrudo - os três dias de abastança e festa que assinalavam a entrada na Quaresma - era observado como sendo um intervalo de tempo em que quase tudo era permitido, de molde a domar os instintos mais insaciáveis para as privações que se iniciariam no dia seguinte à chamada terça-feira Gorda (último dia do Entrudo), na quarta-feira de Cinzas.

Neste sentido, o Carnaval é, em essência, uma festividade cristã (católica), embora existam algumas teorias sobre as suas origens "pagãs"; em principal, a que advoga uma procedência carnavalesca nas Saturnais romanas, festividades realizadas em honra de Saturno, celebradas entre 17 e 23 de Dezembro. O único elo de ligação que poderia existir entre as Saturnais e o Carnaval é o facto de que as primeiras eram conhecidas por serem uma festa em que os escravos e os amos trocavam entre si as vestes e os papéis sociais; ou seja, os escravos comportavam-se como amos e os amos fingiam-se de escravos. Este "mundo às avessas" era, sobretudo, institucional e simbólico: nenhuma hierarquia era desrespeitada e toda essa rotina era cumprida com artificialidade, no sentido em que não ocorriam rebeldias, nem excessos dignos desses nomes. À luz disso, tenho reservas em aceitar esta teoria, porque a simples troca de roupas entre amos e escravos não constitui, sozinha, um indício de folia e desregramento, que é a característica principal do Carnaval; e, sobretudo, porque as Saturnais também era conhecidas pelas generosas ofertas de presentes e, que eu saiba, nunca se ofereceu, nem oferece, presentes no Carnaval. Será, no meu entender, precipitado afirmar-se que o Carnaval perdeu o significado original, as raízes "pagãs", etc., com o advento do cristianismo, porque o Carnaval é, para todos os efeitos, uma festividade cristã. A tentação de procurar origens "pagãs" para quase todas as festas e costumes populares é, por vezes, injustificada - e até forçada.

Escrevi "pagãs" entre aspas, porque os romanos nunca chamaram pagã à sua religião, nem nunca foram pagãos num sentido religioso: o étimo de pagão é a palavra latina paganus que significa rústico e deriva de pagus, que significa distrito rural; também foi um nome, mais ou menos, pejorativo pelo qual se designavam os indivíduos que não tinham cumprido serviço militar e este é o significado que nos interessa. É que os primeiros cristãos - romanos convertidos ao cristianismo -, perseguidos pelos imperadores (como Nero, Diocleciano e, mais tarde, Juliano, o Apóstata), chavamam-se a si próprios de "soldados de Cristo" e, nesse sentido, todos os outros romanos eram os "pagãos" (não-convertidos, porque eram "civis" para Cristo). Em suma, nunca existiu uma religião "pagã" ou um culto "pagão": existiram cultos e religiões que, a posteriori, assim foram chamados para efeito de diferenciação. É uma designação que não tem relação autêntica com a religião romana e outros cultos pré-cristãos.


Mas o Carnaval é tanto uma festividade cristã que, em 1517, o Papa Leão X, em vez de, por exemplo, proibir os excessos carnavalescos, concedeu uma indulgência plenária que tinha, entre outros propósitos, o objectivo de exceptuar os indivíduos dos jejuns e das abstinências quaresmais: ou seja, prolongar - para quem pudesse pagá-los, é claro - esses regabofes. Foi esta indulgência plenária que, vendida na Alemanha pelo frade dominicado Johann Tetzel, deu azo à escrita das célebres noventa e cinco teses do frade agostinho Martinho Lutero, nas quais este não só atacou as bases teológicas da venda de indulgências, como até questionou o próprio poder papal. A partir deste episódio, Lutero rejeitou liminarmente o primado católico, romano, e a infalibilidade das definições dos concílios; em Dezembro de 1520, para adicionar insulto à injúria, incinerou publicamente a bula papal Exsurge Domine que o ameaçava com a excomunhão e no início do ano seguinte cortou relações, em definitivo, com a Igreja Católica ao ser mesmo excomungado com a bula Decet Romanum Pontificem. Nesta óptica, não deixa de ser interessante que tenha sido o escândalo provocado pela venda das remissões dos pecados carnavalescos, cometidos durante o período quaresmal, a estar nas origens do fenómeno do Protestantismo e estabelecimento das variadas comunidades eclesiásticas que sob ele medraram e que, de maneira geral, odeiam o Carnaval.

O genuíno Carnaval português, que sempre foi grotesco, mal-comportado, "popularucho", quase que desapareceu, tendo sido substituído pelos arremedos do Carnaval brasileiro que se realizam anualmente, um pouco por todo o lado. Contudo, o dissolvimento já vem de longe, desde finais do século XIX; com o advento da República, o Carnaval "domesticou-se", tornando-se uma celebração pública mais ordeira, com uma tónica maior na espectacularidade dos desfiles de fantasias e de carros alegóricos, do que na quebra das regras e no confronto. Mesmo assim, o último estertor de um Carnaval genuinamente lisboeta não finou há tão pouco tempo quanto isso: estou a falar da personagem chamada Xexé.  

O Xexé foi uma visão comum, e "temida", nas ruas de Lisboa durante os dias de Carnaval. O período áureo do Xexé terminou em meados da década de trinta do século passado, quando esta personificação do Antigo Regime perdeu, em definitivo, referentes com a vida de todos os dias.
    
Vestido de casaca de seda, bicórnio e cabeleira, como se fosse um nobre setecentista, munido com um bastão, um facalhão e um par de cornos, o Xexé é uma caricatura fidalga, projectada pelos populares, que veio a ser entendida no século XIX como sendo uma sátira aos partidários miguelistas. Os chavelhos, elementos decisivos na composição da sua figura, remetem para o velho hábito olisiponense de pendurar-se cornos nas portas das casas dos indivíduos a quem se queria chamar de "cornudos": verdadeira febre que incendiou a imaginação dos lisboetas da primeira metade do século XVIII e que D. José tentou finar com uma lei datada de 15 de Março de 1751. Desse modo, o Xexé será, sem dúvida, uma síntese desse humor popular, ordinário, com o estilo mariálvico de quem pertence ao escol, mas prefere imiscuir-se com a ralé. Por ser uma personagem retrógrada, pertencente a uma memória que o grande terramoto de 1755 não debilitou totalmente, o Xexé costumava ser representado como sendo um velho lascivo, afectado por tiques de embriaguez, que importunava com veemência aqueles que com ele se cruzavam na rua - e daí o nome "xexé" que se dá, tantas vezes, aos velhotes já acometidos de senilidade. No início do século XX, com o advento da primeira república, as lúbricas brincadeiras dos xexés e das chamadas "caqueiradas" (chuvas de águas sujas, dejectos e quinquilharias que, das janelas, se jogavam sem piedade para cima dos transeuntes) perderam popularidade para um Carnaval cada vez mais cosmopolita, pensado como grande espectáculo colectivo, e cada vez menos um intervalo de ruptura. Já Rafael Bordalo Pinheiro, em 1887, se regozijava com o facto do "novo" Carnaval estar a substituir o "antigo" e, com ele, a desmanchar da memória colectiva a presença incoveniente e insalubre do Xexé (ver o seu artigo caricatural sobre a "Batalha das Flores").
 
 O nome Xexé, cuja grafia deixa no ar uma suspeição de proveniência galega, poderá ter uma origem onomatopaica, do mesmo modo que o nome gagá, que retém um sentido parecido. Gagá é uma onomatopeia que deriva da palavra francesa gâteur: pejorativo calão hospitalar, usado pelas enfermeiras e pelos médicos, que significa, literalmente, velhote que mija na cama e que veio, seguidamente, a veicular a ideia de senilidade. É, pois, possível que xexé possa derivar de xixi, relacionando-se assim com a ideia do velhote senil que já não tem capacidade para controlar-se, inclusive controlar o seu próprio corpo, e a quem tudo (ou quase tudo) é permitido? É uma contribuição que deixo para a resolução deste enigma.

Seja como for, o badalhoco, bafiento e impertinente Xexé foi, provavelmente, o último dos anormais "alegóricos" de Lisboa: espécie de Careto urbano de um Carnaval popular, tipicamente lisboeta, que foi substituído pelas manifestações assépticas das marchas bairristas (criadas em 1932) e das versões turísticas das celebrações dos santos populares.


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Anormais reais: o Geek e o Xexé


Hoje, a palavra norte-americana geek (sem tradução directa para língua portuguesa, mas cujo sentido se contígua ao transmitido pela palavra anormal) é, quase em exclusivo, utilizada para designar o arquétipo do adolescente tímido, "caixa de óculos" e sem competências sociais, que é obcecado por tecnologia e banda desenhada, mas, em outros tempos, principalmente na transição do século XIX para o XX, o nome geek era dado aos artistas dos circos e feiras ambulantes que, nos seus espectáculos, comiam cabeças de galinhas, cobras e ratazanas vivas.
Na imagem acima, fotografada no ano de 1938 na cidade norte-americana de Donaldsonville, no estado do Louisiana, pode ver-se um geek autêntico a trincar a cabeça de uma serpente para gáudio da assistência. De maneira geral, estes artistas eram indivíduos simplórios ou padecentes de doenças mentais que aceitavam ou eram obrigados a participar em desafios de natureza aberrante, como os de comer insectos e cabeças de répteis e roedores. O New International Dictionary of the English Language (1954) oferece esta definição de geek: «um "homem selvagem" circense que comia as cabeças de cobras e galinhas vivas nos seus espectáculos». É uma designação que provém de geck, quinhentista palavra inglesa que significava louco ou imbecil e que, por sua vez, teve origem no nome holandês gek, que possuía o mesmo sentido.

A lamentável figura do geek das feiras itinerantes foi popularizada junto do grande público pelo filme Nightmare Alley, realizado em 1947 pelo cineasta inglês Edmund Goulding, que estreou dois anos depois em Portugal com o título O Beco das Almas Perdidas: neste filme, que adapta o romance homónimo do escritor norte-americano William Lindsay Gresham, publicado em 1946, o actor norte-americano Tyronne Power interpreta a personagem Stan Carlisle, vigarista que, a dada altura, por culpa de um reverso de fortuna, se vê obrigado a fazer de geek numa feira para ganhar a vida. No início da década de oitenta do século passado (no ano de 1981), o músico inglês Ozzy Osbourne também fez de geek, mas acidentalmente, quando, embriagado, comeu a cabeça de uma pomba viva durante uma reunião de trabalho com executivos da distribuidora discográfica Columbia Records. Não deixa de ser interessante que essa empresa tenha ido buscar o seu nome à personagem Columbia: a personificação feminina e republicana (com barrete frígio e tudo) dos Estados Unidos (que, entretanto, perdeu popularidade em relação à simbologia romântica oferecida pela Estátua da Liberdade) e cujo nome é uma variação do apelido do navegador genovês Cristovão Colombo, o descobridor oficial do Novo Mundo - em latim, columbus significa pombo).

 Se a primeira mudança de sentido da palavra geek, de imbecil para anormal de feira, é, mais ou menos, linear, não é clara a sua transformação em adolescente, embora se possa especular com segurança que a popularização desse significado ocorreu a partir de 1984 com a estreia do filme Sixteen Candles (Dezasseis Primaveras), a primeira longa-metragem do cineasta norte-americano John Hughes, no qual a personagem intepretada pelo actor norte-americano Anthony Michael Hall é conhecida como Geek.

Contemporânea do geek de feira norte-americano, outra personagem grotesca - avatar (praticamente esquecido) da psique popular - que dava pelo nome de Xexé, foi uma visão comum, e "temida", nas ruas de Lisboa durante os dias de Carnaval. O período áureo do Xexé terminou em meados da década de trinta do século passado, quando esta personificação do Antigo Regime perdeu, em definitivo, referentes com a vida de todos os dias.
    
Vestido de casaca de seda, bicórnio e cabeleira, como se fosse um nobre setecentista, munido com um bastão, um facalhão e um par de cornos, o Xexé é uma caricatura fidalga, projectada pelos populares, que veio a ser entendida no século XIX como sendo uma sátira aos partidários miguelistas. Os chavelhos, elementos decisivos na composição da sua figura, remetem para o velho hábito olisiponense de pendurar-se cornos nas portas das casas dos indivíduos a quem se queria chamar de "cornudos": verdadeira febre que incendiou a imaginação dos lisboetas da primeira metade do século XVIII e a que D. José tentou dar o fim com uma lei datada de 15 de Março de 1751. Desse modo, o Xexé será, sem dúvida, uma síntese desse humor popular, ordinário, com o estilo mariálvico de quem pertence ao escol, mas prefere imiscuir-se com a ralé. Por ser uma personagem retrógrada, pertencente a uma memória que o grande terramoto de 1755 não debilitou totalmente, o Xexé costumava ser representado como sendo um velho lascivo, afectado por tiques de embriaguez, que importunava com veemência aqueles que com ele se cruzavam na rua - e daí o nome "xexé" que se dá, tantas vezes, aos velhotes já acometidos de senilidade. No início do século XX, com o advento da primeira república, as lúbricas brincadeiras dos xexés e das chamadas "caqueiradas" (chuvas de águas sujas, dejectos e quinquilharias que, das janelas, se jogavam sem piedade para cima dos transeuntes) perderam popularidade para um Carnaval cada vez mais cosmopolita, pensado como grande espectáculo colectivo, e cada vez menos um intervalo de ruptura.

 O nome Xexé, cuja grafia deixa uma suspeição de proveniência galega, poderá ter uma origem onomatopaica, do mesmo modo que o nome gagá, que retém um sentido parecido. Gagá é uma onomatopeia que deriva da palavra francesa gâteur: pejorativo calão hospitalar, usado pelas enfermeiras e pelos médicos, que significa velhote que mija na cama e que veio, seguidamente, a veicular a ideia de senilidade. É, pois, possível que xexé possa derivar de xixi, relacionando-se assim com a ideia do velhote senil que já não tem capacidade para controlar-se, inclusive controlar o seu próprio corpo, e a quem tudo (ou quase tudo) é permitido? É uma contribuição que deixo para a resolução deste enigma.

Seja como for, o badalhoco, bafiento e impertinente Xexé - tão descabelado quanto um geek de feira - foi, provavelmente, o último dos anormais "alegóricos" de Lisboa: espécie de Careto urbano de um Carnaval popular, tipicamente lisboeta, que foi substituído pelas manifestações assépticas das marchas bairristas e das celebrações turísticas dos santos populares.