Mostrar mensagens com a etiqueta Sardinha. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Sardinha. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Sardinhada à romana: sobre o garum

Tirando proveito do período das festas populares que decorrem em Lisboa (e não só), caracterizadas por planturosos banquetes de sardinhas assadas, lambiscadas luculianamente no pão ou no prato, ao ar solto junto dos grelhadores ou em interiores sobre mesas tapizadas de vistosas variedades de verde e vermelho, cortesia do macramé de pimentos que, em regra, enfeita e revigora estes ágapes populares, publico aqui um extracto de um texto inédito que escrevi há uns tempos sobre a indústria romana de salga de peixe na Baixa de Lisboa - da qual a sardinha, claro está!, foi protagonista principal. Sardinha e Lisboa continuam a estar, ainda, indissoluvelmente coligadas.


Sobre o Garum
 
«Os romanos nunca foram, verdadeiramente, um povo inovador e, no seu ultra-pragmatismo, primaram por uma certa preguiça imaginativa; mas foram um povo extraordinariamente renovador: ou seja, foram mestres a absorver tecnologias e culturas das populações que iam subjugando e a examiná-las com minúcia para refinarem-lhes as possibilidades a inéditos níveis de eficiência. Nesse sentido, a indústria da conserva e salga de peixe por eles reformulada não foi nenhuma excepção e a diversidade de produtos que conceberam chegou até nós em nomes cuja interpretação é o pesadelo dos etimologistas; como Isidoro de Sevilha, que, no final do terceiro capítulo do Livro XX das suas Etimologias, discorreu sobre o assunto: muria, allec, liquamen, e, em destaque, garum.

Garum: nome que, foneticamente, bem podia ser algo ronronado por um delambido gato a esfregar-se nos tornozelos do dono, evoca, logo à partida, uma imagem de algo aquoso e antracítico – uma versão orgânica do basalto, pedra usada na “típica” calçada portuguesa. Que produto foi este, confeccionado nas cetárias revestidas de opus signinum (argamassa feita de areia, cal e calcário britado) que se encontram no subsolo dos nossos hodiernos edifícios, como a sede do banco Millennium BCP, mas também da Casa dos Bicos/Fundação José Saramago, na Rua dos Bacalhoeiros, e da loja Napoleão, na Rua dos Fanqueiros – a topologia é destino e esta casa, vendedora de finos azeites, vinhos e queijos portugueses, parece prosseguir a tradição gastronómica de que a Baixa foi o efervescente cadinho, porque o garum, desde o início, cifrou-se como produto gourmet: o principal molho salgado de peixe.

Era transportado em ânforas (...) as de transporte de azeite e vinho eram delgadas, enquanto que esta é gorda. Se há objecto universalmente identificável com a cultura romana é a ânfora, mas, mais uma vez, não foram eles que a inventaram e o nome, que é grego, significa com dois transportadores (os “transportadores” são as pegas laterais): projectadas para serem usadas apenas uma vez, foram a louça de plástico da época. Com mais de trinta metros de altura, o verdejante Monte Testaccio, em Roma, parece ser uma elevação natural, mas é totalmente artificial, formado por sedimentos sucessivos de cacos de mais de cinquenta milhões de ânforas: terra tornada barro, tornado terra; há rebeldia, aqui, nesta fímbria cosmopolita, porque não basta aos homens moverem montanhas, mas têm de ser capazes de construi-las. Este é o único Olimpo que vale a pena idolatrar.

(…)

É provável que algumas das receitas romanas mais “herméticas” sejam exageros literários, mas, mesmo assim, de acordo com as fontes mais credíveis, é inegável que os romanos adoravam iguarias extravagantes e não poupavam esforços e despesas para confeccioná-las – até inventaram uma palavra para isso: abligurire, que significa, em bom português, “gastar rios de dinheiro em comes-e-bebes”. Todavia, também adoravam sal; tanto que até salgavam o vinho – e eles bebiam imenso vinho – com um molho salgado chamado defrutum, feito de propósito para o efeito.

Que se esconde detrás desta obsessão com molhos salgados, como o defrutum e o garum?
A resposta reside no facto de que os romanos não usavam pedrinhas de sal para cozinhar ou temperar os pratos. Hoje, quando queremos salgar a comida, agarramos num saleiro e polvilhamos a gosto; ora, os romanos também tinham saleiros, mas, praticamente, não os usavam, porque preferiam salgar a comida com molhos salgados. Molhos salgados de peixe, neste caso; foram, em simultâneo, condimentos e remédios, porque os físicos coevos achavam que eles continham todas as propriedades medicinais do sal, mais as do peixe. Tomava-se garum contra a ciática, contra as enxaquecas e até contra problemas respiratórios ainda por diagnosticar convenientemente, como a asma e a tuberculose. Deste modo, não é surpreendente que a indústria de produtos piscícolas tenha transformado Lisboa na segunda capital da Lusitânia. Tão bem temperado era o sentido do negócio dos romanos que até vendiam uma versão kosher do garum para o mercado israelita, chamado garum castimoniale, feita em exclusivo com peixes escamados; de qualquer forma, o garum feito em Lisboa era kosher por excelência, feito de carapau e, principalmente, de sardinha (conhece-se esse facto, graças às análises feitas às espinhas e aos resíduos do preparativo, encontrados nas cetárias e nas ânforas).»


quinta-feira, 9 de junho de 2016

Enterrando sardinhas


Agora que chegou o intermezzo da ictiofagia bairrista - e não só em Lisboa -, vale a pena dar o alvitre sobre a espantável tradição do Enterro da Sardinha (quarta-feira de cinzas): misto de piedade popular e Carnaval, que, infelizmente, tem andado um bocado esquecido. Cortesia de Francisco Goya é o chinfrineiro charivari que aqui publico, pintado em 1819 no dealbar da realização da série das Pinturas Negras pelas quais o quasimodiano artista ficou famoso no nosso tempo - e, com efeito, já há muito de pintura negra nesta caliginosa composição - na qual, curiosamente, o pelágico clupeiforme está ausente. Já foi enterrado, provavelmente.

Coda:
1) o Enterro da Sardinha é uma espécie de Enterro do Bacalhau, também praticado na quarta-feira de cinzas;

2) nas Posturas Antigas sobre o pescado na cidade de Lisboa, três posturas, pelo menos, falam exclusivamente sobre problemas relacionados com o comércio e pesca de sardinhas; a minha preferida é a «Postura do Preço das Sardinhas e Contadeiras que Sejam Casadas e Não Solteiras» que regula tanto a mercadoria como o estado civil de quem a pode ou não vender;

3) além de servir para a confecção de pastas e acepipes de variável grau de requinte e exigência, a sardinha era usada pelo vulgo como ingrediente principal em mezinhas muitíssimo curiosas (lia-se as vísceras das sardinhas para adivinhar quase tudo, mas, em principal, o sexo dos bebés era adivinhado lançando-se uma espinha de sardinha ao lume e observando como se comportava - se levantasse, nasceria um rapaz). Aliás, nem só pelo vulgo, pois o Dr. Cipriano de Pina Pestana, médico da câmara de D. João V e físico-mor do reino (houve três médicos de câmara neste reinado, mas penso que este é o nome certo para o caso), saudava o efeito expurgante da cabeça de sardinha quando empregada como supositório em casos de prisão de ventre.