terça-feira, 18 de setembro de 2012

Quando é um político que se sacrifica


Nesta altura em que toda a gente, em menor ou maior grau, aguçou a sua consciência política, vale a pena lembrar um nome de vital importância que, lamentavelmente, tem sido esquecido: Manuel Fernandes Tomás.

Nascido a 31 de Julho de 1771, o "patriarca da liberdade portuguesa", como viria a ser cognominado, matriculou-se com apenas quinze anos de idade na Universidade de Coimbra. Abreviando um percurso extenso de vida, que tomaria muitas linhas a explanar, basta reter que, muito mais tarde, em 1811, Manuel Fernandes Tomás voltou a essa cidade, como seu Provedor da Comarca, e foi a partir dessa altura que iniciou o estudo legislativo das constituições políticas, europeias e norte-americana, que, entretanto, vieram à luz. Em paralelo, indignado com o servilismo e a decadência dos partidários do Antigo Regime e com os autoritarismos das forças francesas (mais tarde também as inglesas, lideradas pelo marechal William Beresford, que se instalaram no país em altos cargos militares), publicou diversas obras reformistas e de protesto, nas quais se inclui o célebre Repertório Geral ou Índice Alfabético das Leis extravagantes do Reino de Portugal (1815-1819). Em 1817, muda-se para o Porto, para desempenhar o cargo de Desembargador da Relação, e enceta esforços para formar um novo tipo de regime, de feição liberalista, no sentido de regenerar Portugal - numa altura em que "liberal" significava algo muito diferente de "desregulação bancária para as empresas".
É, pois, juntamente com José Ferreira Borges (advogado e secretário da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro), José da Silva Carvalho (juiz dos Órfãos) e João Ferreira Viana (comerciante da praça do Porto), que, logo no início do ano seguinte, funda o Sinédrio: associação discreta que, reunindo juristas, militares, clérigos e civis, objectivava a criação e implementação de um novo regime liberal.

Em 1820, observando com redobrada atenção a vizinha sublevação galega de Março, que restaurou "La Pepa" - a Constituição de Cádis (de 1812) -, os elementos do Sinédrio aceleraram os seus esforços revolucionários e, nesse mesmo ano, a 24 de Agosto, instauraram o primeiro regime liberal do país, naquela que ficou conhecida como a Revolução Liberal do Porto. Este movimento foi surpreendente, porque contou com o apoio de todas as classes sociais, que exigiam, no mínimo, dois grandes objectivos: o retorno da família real portuguesa ao país e a reinstauração do Pacto Colonial (em síntese, a exclusividade portuguesa de comércio com o Brasil). Manuel Fernandes Tomás escreveu o Manifesto aos Portugueses, no qual deu a conhecer a natureza da revolução e seus desideratos, e, de imediato, por unanimidade, iniciou o projecto de lavrar uma constituição.
Essa inaugural constituição, baptizada de Constituição Política da Monarquia Portuguesa, foi jurada por D. João VI, no Palácio de Queluz, a 25 de Setembro de 1822. Porém, ao mesmo tempo que foi redigindo a constituição, Manuel Fernandes Tomás viu a sua saúde debilitar-se rapidamente: morreu, pouco tempo depois, a 19 de Novembro de 1822. O repentino falecimento chocou amigos íntimos, como o poeta Almeida Garrett.

Quanto à causa da morte, o que é possível auferir-se dos relatos de época é que ele, indivíduo imbuído de um elevadíssimo sentido do dever, como é raríssimo encontrar-se hoje, recusou imperativamente receber honorários pelas suas funções políticas, declarando que estava na política por patriotismo e não pelo dinheiro. Gastando as suas poupanças, tanto no orçamento doméstico e nos esforços revolucionários, Manuel Fernandes Tomás passou fome nos últimos meses de vida - aqueles em que redigiu olimpicamente a inédita constituição - e morreu em consequência dessa privação.
As primeiras cortes ordinárias, reunidas a 1 de Dezembro, aprovaram a atribuição de subsídios anuais à sua viúva e filhos - não sem vozes discordantes, o que é verdadeiramente nóxio: dezassete deputados tiveram a frieza de votar contra a atribuição dessa caridade à família do homem responsável pela criação do regime que lhes proporcionava os cargos que desempenhavam e que, para que esse mesmo regime regenerador fosse uma realidade, morrera de fome. 

Hoje, o nome de Manuel Fernandes Tomás é, infelizmente, algo desconhecido do grande público, mas devemos muitíssimo ao seu trabalho e a sua vida é um exemplo ímpar de rigor e devoção aos ideais da liberdade e da justiça. Nesta altura em que tão poucos pedem sacrifícios a tantos, vale a pena recordar Manuel Fernandes Tomás que, individualmente, e sem recolher benefícios - mesmo aqueles que lhe eram devidos por direito - se sacrificou por todos.
Também vale a pena recordar o que ele leu às cortes provisórias, em Fevereiro de 1821: «Quando um governo, senhores, trata o interesse dos povos pelo modo que tendes ouvido, o que, desgraçadamente, é muito verdadeiro, fazendo ou consentindo que se façam males tão grandes, ninguém poderá deixar de confessar que ele é um governo mau; e, em tal caso, seria bem admirável que houvera ainda quem se lembrasse de espoletar à nação o direito de escolher ou de fazer outro melhor.»