quarta-feira, 27 de junho de 2018

Os animais de Tischbein, de Joyce e a barbárie da reflexão



Ainda na preambular fímbria do seu magnífico e voluminoso The Anatomy of Melancholy, o obsessivo fazedor de listas Robert Burton averiguou as copiosas causas da desgraça humana; entre doenças e pragas, também se ocupou das espécies animais e vegetais que, nas suas palavras, estão em guerra com a humanidade: «lions, wolves, bears, etc., some with hoofs, horns, tusks, teeth, nails (…) noxious serpents and venomous creatures, ready to offend us with stings, breath, sight, or quite kill us (…) pernicious fishes, plants, gums, fruits, seeds, flowers, etc., could I reckon up of a sudden, which by their very smell, many of them, touch, taste, cause some grievous malady, if not death itself!». Falecido em 1640, este académico inglês deixou como testamento um exuberante enciclopedismo que suplanta os de outros compiladores coevos, como De rerum varietate do polímate lombardo Jerónimo Cardano e De rerum natura iuxta propria principia do filósofo calabrês Bernardino Telésio, ambos tratados intensivos sobre a natureza; contudo, Burton, na predominância que instala sobre os aspectos melancólicos, prefigura a frieza do materialismo setecentista que pode encontrar-se, entre outros casos, no pensamento do filósofo neerlandês Bento Espinosa e, em maior espessura e inflexibilidade, no do enciclopedista franco-germânico Holbach, autor do influente Système de la nature. Se o cristianismo filtrado pela cosmovisão franciscana anunciava que a natureza era nossa irmã (pedra de toque para o moderno método cientifico), Holbach almejava autonomizar o homem em relação a ela: no mínimo, o homem novo, racional, chocado na incubadora das Luzes; aquele a quem, por ter-se libertado das antigas superstições, era dada a chave para entender a natureza como sendo um previsível sistema de verdade. De igual modo inquieto com os dons de observação da natureza, e com a idade de dezanove anos à altura da publicação do livro de Holbach, o artista alemão Johann Wilhelm Tischbein estava prestes a iniciar uma curta viagem aos Países Baixos para estudar a arte dos antigos mestres; na verdade, quando contemplo os seus quadros não posso deixar de vê-lo como um Miguel Ângelo do bestiário, analogia conforme à diligente e dinâmica musculatura dos seus animais, comprovada pelas telas em que o raposo Reynard é levado para a forca pelo urso, pelo lobo e pelo gato, e na dramática cena de caça ao urso, com cães e homem a cavalo – sob o pêlo, a carne torce-se e encarquilha numa instável energia maníaca, como as palavras no livro de Burton.

No entanto, o quadro A Vingança dos Animais Caçados, que exibe uma cena de mundo às avessas, com um caçador a ser assado por animais, singulariza-se no cômputo da sua obra: não me suscita a sátira, mas a perturbação; desencadeada, não pelo caçador churrascado por um porco e uma cabra – numa composição grotesca, mas, ainda assim, caricatural –, mas pela minúcia macabra de dois cães de caça enforcados num ramo de uma árvore por duas raposas e um macaco, enquanto outros dois cães aguardam, abatidos, a sua vez de ser dependurados. É impossível não lhe aglutinar em perfeita proporção as sinistras imagens monocromáticas desenhadas febrilmente pelo pintor aragonês Francisco Goya, reunidas sob a designação Los Desastres de la Guerra: aqui, os animais selvagens enforcam, exultantes, os animais traidores, os cães fiéis ao caçador. Esta é uma imagem do mundo natural que se ergue em absoluto sinal contrário ao emitido pelas profecias de Holbach e seus pares enciclopedistas: a natureza é tudo menos previsível e verdadeira – é irrefreável, retaliativa, impiedosa. Os negríssimos desenhos de Goya retratam que o homem é o pior inimigo do homem, juizo com o qual Burton encerrou a sua passagem sobre os animais em guerra com a humanidade: «The greatest enemy to man is man, who by the devil’s instigation is still ready to do mischief, his own executioner, a wolf, a devil to himself and others». Porém, a excêntrica visão de Tischbein mostra que não existe nenhuma solidariedade entre os animais; empregando conceitos posteriores à execução da pintura, é sedutora a leitura de ver os cães a ser enforcados pela comunidade de tovarishes, ou camaradas, depois de serem rotulados de burzhooi, aquela proteica categoria soviética de inimigo do povo, transversal a todos os grupos sociais, na qual, arbitrariamente, qualquer indivíduo poderia cair. Dos participantes neste zoológico charivari, somente o elefante guarda no olhar um resquício de respeitabilidade; de postura pacífica, ainda é possível musicar a sua marcha ao som do quinto movimento de Le carnaval des animaux, do compositor francês Camille Saint-Saëns, que, para esse breve andamento, reduziu a velocidade e adicionou gravidade a trechos endiabrados de Berlioz e Mendelssohn. Mas a atonalidade da ópera Moses und Aron, do compositor austríaco Arnold Schoenberg, será mais adequada a uma orquestração deste grand guignol – até em relação ao tema plasmado na pintura, que parece ser o do idealismo abstracto em confronto com a crua realidade, incluso no conflito fraternal entre a metafisica de Moisés e a materialidade proposta por Araão. Um deus anicónico contra um ídolo que se possa tocar. Uma natureza calculável e ordeira, face a uma natureza desgovernada e sanguissedenta. Não é à toa que o bezerro é feito de ouro, porque esse metal valioso evoca a substância de um pretérito precioso que, debalde, se intenta readquirir em períodos de caos (como no quadro de Tischbein).

O escritor dinamarquês Hans Christian Andersen escreveu um fantástico conto que me obcecou na infância e que me sugere, neste instante, uma reflexão sobre essa ida idade dourada: em O Acendedor, um soldado regressado da guerra encontra num bosque uma bruxa que o contrata para descer a uma subterrânea câmara de tesouros com o objectivo de resgatar um acendedor que a sua avó lá deixara; em câmbio, o soldado pode trazer todas as moedas que desejar. No interior, depara-se com três portas, cada qual dando passagem para uma sala cheia de moedas; sobre os amontoados de dinheiro encontra, vigilantes, três grandes cães que a bruxa lhe ensinou a amansar: os olhos daquele que guarda as moedas de cobre têm o tamanho de pires de chá; os do que guarda as moedas de prata são enormes como noras; e os do que guarda as moedas de ouro têm o diâmetro de uma colossal torre. Mais à frente, depois de decapitar a bruxa para ficar com o acendedor, o soldado descobre por acidente que este tem o condão de chamar os cães da câmara de tesouros, bastando raspar o número de vezes necessário para recorrer ao animal pretendido: uma para chamar o cão mais pequeno; duas para o cão de tamanho médio; e às três, o maior cão. No decurso da história, o soldado cria laços com um único cão: o mais pequeno, de olhos do tamanho de pires de chá, que guarda as moedas de cobre. O que significará isto?

Outros três cães, igualmente expressivos, encontram-se em Ulysses, de James Joyce: retrovertidamente, eles são Garryowen, um velhaco irish setter, propriedade do velho Giltrap; um cão malhado, sem nome, pertencente a um casal que passeia na praia; e um cão meio-putrefacto, jazido na mesma praia. É Leopold Bloom que encontra Garryowen no bar de Barney Kiernan, dialogando em língua canina com o ultranacionalista Cidadão – de facto, é-nos narrado nesse momento que versos da autoria de Garryowen já foram traduzidos para inglês por um académico incógnito; e o exemplo escolhido pelo autor conta-nos as angústias do cão, que nunca tem nada de jeito para beber e para comer naquele bar malfadado. As qualidades coloquiais de Garryowen (que os bêbedos do bar chamam de Owen Garry) são sublinhadas algumas páginas à frente: «grandpapa Giltrap’s lovely dog Garryowen that almost talked, it was so human». Por outro lado, o cão observado a correr na praia por Stephen Dedalus, que parece ser mais pequeno que Garryowen, é-nos descrito como «trotting, sniffing on all sides. Looking for something lost in a past life». Com efeito, o cão fareja a carcaça inchada do cão morto, desprezada sobre as bodelhas: «He stopped, sniffed, stalked round it, brother, nosing closer, went round it, sniffling, rapidly like a dog all over the dead dog’s bedraggled fell. Dogskull, dogsniff, eyes on the ground, moves to one great goal. Ah, poor dogsbody. Here lies poor dogsbody’s body». Um cão maior, de capacidades comunicativas extraordinárias; um cão médio, de características comuns; e outro cão, reduzido a polpa pela decomposição: tríade que se assemelha a de Andersen, composta pelo maior cão do ouro, o médio cão da prata e o menor cão do cobre.

Três tamanhos distintos, três metais de desigual valor e três díspares estádios de desenvolvimento. São alegorias para a trilogia de idades ou tempos do mundo proposta pelo filósofo napolitano Giambattista Vico em Principi di Scienza Nuova: o tempo dos deuses, o tempo dos heróis e o tempo dos homens, num movimento contínuo de curso e recurso (corsi i ricorsi) – finado o terceiro tempo, o ciclo reinicia-se novamente com um novo tempo dos deuses.

Joyce conhecia a teoria de Vico, pois logo no início de Finnegans Wake escreveu: «riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, bring us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs». Não só esta frase inaugural é a sucessão da última frase do romance, «A way a lone a last a loved a long the», como o anunciado «commodius vicus of recirculation» é uma alusão à teoria viconiana de curso-recurso. Muito mais à frente, somos informados que «the Vico Road goes round and round to meet where term begin. Still onappealed to by the cycles and unappalled by the recoursers we feel all serene, never you fret, as regards our dutyful cask». Esta Vico Road existe, de facto, mas, aqui, trata-se de uma Estrada Viconiana mítica, intemporal, curso-recursiana, cujo refluxo nos devolve a um tempo incial. Incólume a este movimento, parece ser o narrador, indiferente aos ciclos e desassombrado pelos recurseuntes; sereno – que não nos preocupemos – no seu confiável caixão, à guisa de Christian Rosenkreutz no túmulo da falsa morte. O tema da viagem cursiva-recursiva é, explicitamente, referido num dos enigmáticos diálogos entre intérpretes polissemânticos: «-Hail him, heathen, heal him holystone! / Courser, Recourser, Changechild................. / Eld as endall, earth.................». Pode ser que a «changechild» – a fazer lembrar o bebé espacial do final de 2001: A Space Odyssey, de Stanley Kubrick – seja o titular gigante ultra-humano Finnegan, vazado num avatar de muitos nomes, mas sempre reconhecível pelo acrónimo HCE. No primeiro capítulo, é tentador ver o mitológico gigante Finnegan, derruído após uma queda iniciática, na iminência de ser consumido ou repartido pelos seus pares, antes de despertar e ver-se confrontado com a vontade destes em que permaneça entorpecido. Um dos trechos da Ciência Nova comunica directamente com esta imagem: «Em seguida, os gigantes pios, que estavam colocados nos montes, devem ter-se ressentido do fedor que exalavam os cadáveres dos seus antepassados, que apodreciam perto deles sobre a terra; pelo que se puseram a sepultá-los (dos quais foram encontrados e ainda se encontram muitos crânios e ossos, a maior parte das vezes no alto dos montes, que é um grande argumento de que, apodrecendo insepultos os cadáveres dos gigantes ímpios, dispersos por todo o lado pelas planuras e pelos vales, foram os crânios e os ossos ou levados para o mar por torrentes ou, por fim, macerados pelas chuvas) e espargiram os sepulcros com tanta religião, ou seja, divino pavor, que quedaram denominados pelos Latinos religiosa loca, por excelência, os lugares onde estivessem os sepulcros». Confronte-se com o excerto seguinte, quando Finnegan (denominado de Avô) é preparado pela sua consorte/sósia feminina (a Avó) para ser consumido/repartido: «Grampupus is fallen down but grinny sprids the boord. Whase on the joint of a desh? Finfoefom the Fush. Whase be his baken head? A loaf of Singpantry’s Kennedy bread. And whase hitched to the hop in his tayle? A glass of Danu U’Dunnel foamous olde Dobbelin ayle. But, lo, as you would quaffoff his fraudstuff and sink teeth through that pyth of a flowerwhite bodey behold of him as behemoth for he is noewhemoe.»

A neológica e propositadamente visual linguagem de Joyce em Finnegans Wake, somente compreensível pela leitura em voz, corresponde à linguagem hieroglífica do tempo dos deuses, delineado por Vico; seguir-se-iam a linguagem simbólica do tempo dos heróis e a linguagem vulgar do tempo dos homens. Ao mesmo tempo, a sublime eufonia do texto joyceano vai ao encontro da ideia viconiana de o verso anteceder a prosa: a primeira linguagem seria a poesia. Assim, o cão putrefeito na praia e o cão das moedas de cobre serão alegorias para o tempo dos homens: material, frágil, mortal. Garryowen, o cão eloquente, e o mastim das moedas de ouro serão, em contraposição, parémias para o tempo dos deuses – o tempo em que os animais falavam.

Enquanto intersecção dos dois planos aqui explanados: o do tempo dos deuses – em que os animais falavam – com o de um movimento histórico cursivo-recursivo, poucos exemplos se cifrarão com o primor dos diálogos iniciais de El Coloquio de los Perros, do escritor castelhano Miguel de Cervantes, integrado no livro de contos Novelas Ejemplares. No descerramento do diálogo, os cães Cipión e Berganza descobrem atónitos, certa noite, que são capazes de falar como os seres humanos; o segundo, inclusive, confessa que, desde que começou a roer ossos, sempre sonhou em falar. Por iniciativa de Cipión, contarão um ao outro as suas vidas – mas, o que é curioso e pertinente para esta análise, é que eles não têm a certeza se terão capacidade para falar na noite seguinte. Entre si, concordam que a súbita loquacidade é um portento, sem garantias que venha para ficar. Sem o saberem, Cipión e Berganza poderão ter dado início a um novo curso viconiano: de bestas brutas – cães do cobre ou carcaça canina despojada na praia – ascenderam, pela calandragem cíclica, a Garryowens ou cães do ouro, de verve desaçaimada. O início de um tempo dos deuses, aqui, revela-se não sob a alteração física da matéria, mas na mudança de mentalidades; tal como o tempo do caos representado no quadro de Tischbein.

No livro Viagem a Itália, 1786-1788, o escritor germânico Johann Wolfgang von Goethe descreve a viagem que fez pelos territórios italianos na companhia de Tischbein; a dada altura, na entrada referente a cinco de Março de 1787, escreve o seguinte: «Pouco depois, [Filangieri] apresentou-me a um escritor cuja insondável profundidade deleita e edifica estes novos amigos da lei italianos; chama-se Giovanni Battista Vico [falecido há quarenta e três anos], e eles preferem-no a Montesquieu. Uma leitura apressada do livro que me deram a conhecer como uma relíquia permitiu-me perceber que há aí pressentimentos sibilinos do que de bom e justo um dia virá ou deve vir, fundamentados na séria observação da tradição e da vida. É bonito ver que um povo tem um mentor como este (…)». O Romantismo não conheceu grande expressão nas letras italianas, mas talvez Goethe tenha pressentido que Vico tinha algo de proto-romântico; no mínimo, não se deixava iludir pela religião do progresso que se começava a desenhar. Vico sabia que a barbárie da razão – chamava-lhe barbárie da reflexão – seria tão feroz quanto a a barbárie irracional: «Mas, se os povos apodrecem naquele último mal-estar civil, que nem dentro consentem um monarca nativo, nem chegam de fora nações melhores para os conquistar e os conservar, então a providência, a este seu mal extremo aplica este extremo remédio: que – uma vez que tais povos, à maneira dos animais, se tenham acostumado a não pensar em mais nada senão nos seus próprios interesses particulares, e cada um tenha atingido o cume das comodidades ou, para melhor dizer, do orgulho, à maneira de feras que, ao serem minimamente contrariadas, se ressentem e se enfurecem, e assim, na maior celebridade ou loucura dos corpos, viveram como animais imanes numa suprema solidão de ânimos e vontades, acabando por não conseguirem pôr-se duas de acordo, cada uma das duas o seu próprio prazer ou capricho –, por tudo isto, com obstinadíssimas facções e deseperadas guerras civis, passam a fazer das cidades selvas e das selvas covis de homens; e, desse modo, ao longo de vários séculos de barbárie, vão-se enferrujar as grosseiras subtilezas dos engenhos maliciosos, que tinham feito deles feras mais imanes com a barbárie da reflexão do que tinham sido com a primeira barbárie do sentido».

O quadro de Tischbein retrata o nosso tempo: nem selvagem, nem civilizado; onde homens e animais sofrem, arbitrariamente, às mãos e patas uns dos outros. É o tempo da barbárie da reflexão.