A imagem que ilustra este artigo é uma alusão humorística ao extremo de irracionalidade a que os seguidores de teorias pseudo-arqueológicas podem chegar, quando, por ennui, ingenuidade ou ignorância, substituem a sua crença numa primordial e tecnologicamente avançada civilização-matriz pela crença na intervenção de Antigos Astronautas no desenvolvimento das sociedades primitivas. Vou descrever em poucas linhas estas crenças de maneira a informar os leitores que não estejam familiarizados com estes universos pseudo-históricos/arqueológicos.
A supra-enunciada primeira crença pode adquirir, em essência, duas formas: a do Difusionismo e a do Hiperdifusionismo. O Difusionismo consiste na crença de que as civilizações antigas, por mais afastadas geograficamente ou cronologicamente que tenham estado umas das outras, mantiveram, de alguma forma, contactos e permutaram comportamentos culturais e importantes segredos tecnológicos; alegadamente, segredos que, hoje, ainda não foram descobertos pelo homem contemporâneo. Por outro lado, o Hiperdifusionismo propõe a existência de uma primordial e tecnologicamente avançada civilização-matriz, da qual difundiram todas as sociedades existentes. Essa conjectural antiquíssima civilização-matriz (Atlântida, Lemúria, etc.) é sempre apresentada pelos pseudo-historiadores como tendo sido uma iluminada cultura superior que, subitamente, desapareceu por culpa de um cataclismo - um terramoto, um maremoto ou uma erupção vulcânica -, mas não sem que um punhado de sobreviventes se tenha dispersado no último momento para, nos milénios seguintes, instruir e guiar as remanescentes, mas grosseiras civilizações (descritas desse modo pelos pseudo-historiadores, porque, segundo eles, seriam civilizações pouco desenvolvidas espiritualmente - seja lá isso o que for, o certo é que a partir daqui está-se no território da pura charlatanice). Para os hiperdifusionistas, os mitos e as religiões existentes conservam, inequivocamente, memórias desses supostos antigos patriarcas desaparecidos, mas sob a forma de deuses e de outras personagens pseudo-epigráficas.
Neste ponto, coincide-se com a supra-enunciada segunda crença: a Teoria dos Antigos Astronautas, que defende que os protagonistas mitológicos das diversas culturas globais são configurações erróneas - ou codificadas - de visitantes extraterrestres que, em algum momento de um passado muitíssimo distante, desceram à Terra para instruir e guiar os povos primitivos. Em acrescento, quando esses fictícios visitantes extraterrestres são apresentados pelos pseudo-historiadores como tendo sido antepassados ou criadores da humanidade fala-se da Teoria da Génese Extraterrestre: crença que defende a criação do Homem em laboratório por engenheiros genéticos extraterrestres. Assim como no caso dos patriarcas desaparecidos, nos quais acreditam os hiperdifusionistas, os geneticistas extraterrestres também foram entendidos como deuses pelos povos primitivos.
Estas ideias (e outras do mesmo jaez) não são recentes - algumas provêm do final do século XVIII -, mas nos últimos anos têm crescido com uma popularidade que não conheciam desde meados dos anos setenta do século passado. Em principal, as teorias dos Antigos Astronautas e da Génese Extraterrestre beneficiam de uma exposição mediática constante que contamina as mentes dos espectadores mais influenciáveis e ingénuos. Séries "documentais" televisivas como
Ancient Aliens, transmitida pelo Canal História (cheia de deformações e ocultações de factos para efeitos espectaculares e sensacionalistas), ou os livros e as palestras de chicaneiros como Zecharia Sitchin (autor de, entre outros,
The Twelfth Planet) ou David Icke (
que muito antes de tornar-se a coqueluche dos adeptos das teorias das conspirações se apresentou ao público como sendo o filho de Deus), são, somente, alguns dos nomes mais populares, mas nem por isso menos danosos, de uma classe de gurus sem vergonha que ganha a vida manipulando emoções e expectativas e espalhando o evangelho da irracionalidade.
A pseudociência e a pseudo-história oferecem soluções simples para problemas intrincados e relacionados com assuntos que a maioria do público não é capaz de avaliar com precisão, porque, desde a segunda metade do século XX, os campos da ciência e da história têm-se especializado e compartimentalizado, enroupando-se em linguagens e preceitos técnicos complexos que os leigos não têm capacidade de acompanhar. Provavelmente, sentindo-se excluídos por uma elite académica que comunica de modo, aparentemente, indecifrável, muitos indivíduos sem conhecimentos científicos, históricos, arqueológicos ou etnológicos voltam-se para o pseudoconhecimento que é rejeitado pelo mundo académico. Esse pseudoconhecimento é sincrético, constituído por retalhos e leituras feitas pela rama de materiais mitológicos e esotéricos, e, muitas vezes, apenas serve de Cavalo de Tróia a doutrinas que se aproximam daquilo a que pode chamar-se novas religiões populares. Com efeito, as supracitadas teorias pseudo-históricas têm em comum a recusa do mundo real, apresentado como sendo um artificial plano de existência dominado pelo cientismo (uma espécie de concepção neognóstica, mas com a academia em jeito de Demiurgo), em benefício de mundos falsos, algo infantis, em que cada um pode ajudar a solucionar alguns dos mistérios. Os leitores não-versados nas temáticas pseudo-históricas ou pseudo-arqueológicas dificilmente terão ideia do superlativo grau de irracionalidade que permeia essas teorias alternativas, mas prometo escrever sobre elas num futuro próximo. Para já, o meu objectivo é, a partir desta introdução, comentar uma notícia recente que me despertou a atenção.
Foi com estupefacção que li a notícia de que se tinha descoberto cento e quarenta pirâmides na Ilha do Pico, no arquipélago dos Açores - construções que, alegadamente, antecedem em muitíssimos anos a chegada dos portugueses à ilha. A descoberta foi anunciada esta semana pelos arqueólogos
Nuno Ribeiro e
Anabela Joaquinito, da
Associação Portuguesa de Investigação Arqueológica (APIA), que estudaram essas estruturas, feitas de rocha basáltica e a que os populares chamam de maroiços, encontrando indícios de orientação espacial relacionada com as estações do ano e até de ritos funerários.
O arqueólogo Romeo Hristov, docente na universidade norte-americana do Novo México e que visitou essas pirâmides do Pico, terá declarado que nelas
«há uma orientação astronómica rigorosa, rampas de acesso e escadas associadas ao conceito de estrutura sagrada».
Só estive uma vez na Ilha do Pico, enquanto fazia o transbordo para outro avião que me levaria à Ilha Terceira, e, infelizmente, não tive tempo de deslocar-me ao concelho da Madalena para ver estas pirâmides - aliás, até há poucas horas, nem sabia que elas existiam. No entanto, depois de observar as fotos disponibilizadas na Internet, concluo que essas estruturas não me parecem pirâmides nenhumas, mas simples socalcos, feitos por muros de contenção. Os muros de contenção são erguidos para suster o deslizamento dos solos em terrenos que apresentam um grau elevado de inclinação. (Em relação ao que escrevi no quarto parágrafo, alguns dos mais impressionantes muros de contenção construídos pelos romanos, como o existente nas ruínas da cidade de Heliopólis, no Líbano, são descritos pelos teoristas dos Antigos Astronautas e da Génese Extraterrestre, como sendo antigas plataformas para a aterragem e descolagem de naves espaciais.)
Quando se fala em socalcos, vêm logo à memória os da região vinhateira do Douro - e, nem de propósito, a paisagem da Madalena, na Ilha do Pico, também tem servido para esse fim: aliás, em 2004 até foi considerada Património Mundial pela UNESCO em virtude da viticultura. Segundo a notícia do jornal Expresso, cuja ligação adicionei acima, o já citado Romeo Hristov disse
«sinto-me no México» ao observar as pirâmides do Pico.
De facto, as pirâmides do México foram todas consideradas Património Mundial pela UNESCO: por que razão é que a região da Madalena na Ilha do Pico foi considerada Património Mundial por mérito da viticultura e não por mérito das suas pirâmides que, segundo Hristov, até fazem lembrar as do México? Será porque não existem pirâmides nenhumas na Madalena, para começar? É uma interrogação que deixo para ser respondida por quem entenda de arqueologia.
Sobre a tentação de ver-se pirâmides onde elas não existem e de declarar que foram construídas por patriarcas desaparecidos, quiçá de Marte, gostava de recordar o logro das pirâmides bósnias (as do Sol, da Lua e do Dragão) inventado por
Semir Osmanagich, arqueólogo "amador" que
não só viu pirâmides onde elas nunca existiram, como ainda tentou fabricá-las: «Osmanagich said Visocica's conglomerate blocks were made of concrete that ancient builders had poured on-site. This theory was endorsed by Joseph Davidovits, a French materials scientist who, in 1982, advanced another controversial hypothesis—that the blocks making up the Egyptian pyramids were not carved, as nearly all experts believe, but cast in limestone concrete. Osmanagich dubbed Pljesevica's sandstone plates "paved terraces," and according to Schoch, workers carved the hillside between the layers—to create the impression of stepped sides on the Pyramid of the Moon. Particularly uniform blocks and tile sections were exposed for viewing by dignitaries, journalists and the many tourists who descended on the town».
É trágico que o público que diz não ter tempo para aprender ciência, história e arqueologia seja tão listo em decorar listas de desinformação pseudo-histórica e esotérica que, no fundo, o deixam indefeso diante dos perigos do pseudoconhecimento. Poderá não saber como as células metabolizam os hidratos de carbono, nem de que maneira a informação genética codificada no ADN se traduz em proteínas, tão-pouco como a selecção natural funciona, mas saberá que as pirâmides eram câmaras transdimensionais que enviavam os faraós ao encontro dos chefes extraterrestres, que esses extraterrestres criaram o ser humano e que, afinal de contas, tudo começou na Atlântida.