Não sou um fã fervoroso dos contos de H. P.
Lovecraft, mas não pertenço ao campo dos seus detractores literários,
nem tão-pouco ao dos seus assassinos de carácter, que, com odiosa
curiosidade, o querem reduzir à caricatura de racista virulento
(como o escritor francês Michel Houellebecq, autor da biografia H.P.
Lovecraft: Contre le monde, contre la vie, que, no mínimo, pode ser
caracterizada como carente de fontes fidedignas). Quero acreditar que a
maioria desta gente, de facto, não conhece a vida e a obra de Lovecraft
e, pela rama, escreve e fala sobre o que não sabe.
O racismo de
Lovecraft foi um racismo de pechisbeque: um arremedo adolescente de
alguém que, inserido num contexto muito provinciano, cresceu a pensar de
um modo tradicionalista e ultra-conservador. Orientado por um elitismo
de inspiração aristocrática, a que, em dada altura, quis almejar,
Lovecraft desgostava e desconfiava das massas, mas - o que tem piada! -
nunca rejeitou o indivíduo - fosse ele branco, negro ou de outra etina,
algo que a sua profusa correspondência pessoal demonstra com clareza.
Outra coisa que a sua obra (é numerosa e literariamente significante
para ser assim considerada) epistolar demonstra sem margem para dúvida é
que o escritor, ao longo dos anos, afastou-se da matriz ultramontana e
isolacionista da Direita norte-americana do seu tempo para tornar-se um
homem aberto, mais positivo, menos pessimista e, sobretudo, menos
precipitado nos seus julgamentos de sofá - até porque já se atrevia a
sair de casa, de quando em quando, para visitar alguns amigos
epistolares.
De facto, nas vésperas da morte, Lovecraft
tornou-se um simpatizante da Esquerda e escreveu com entusiasmo sobre a
democracia. Estamos, por conseguinte, muitíssimo longe dos textos
intolerantes que escreveu na juventude e nos primeiros anos da idade
adulta (como as histórias The Horror of Red Hook e He, por exemplo).
A sua ficção patenteia essa viragem. Se nos primeiros contos ele
observou com horror a proximidade do Outro - se desejarmos ler a obra
dessa forma (a obra permite mais do que uma leitura) -, nos contos finais
o contacto com o Outro - com o alienígena (em inglês, alien também
significa imigrante) - é procurado como uma hipótese transformadora e
até redentora: ao ponto de escrever, em At the Mountains of Madness,
que os Outros «radiates, vegetables, monstrosities, star spawn —
whatever they had been, they were men!». Quando o narrador de The
Shadow Over Innsmouth descobre que é um mestiço e que tem sangue do
Outro nas veias reage com maravilhamento, em vez de sentir repulsa: «the
tense extremes of horror are lessening, and I feel queerly drawn toward
the unknown sea-deeps instead or fearing them. I hear and do strange
things in sleep, and awake with a kind of exaltation instead of terror.
Stupendous and unheard of splendours await me below, and I shall seek
them soon. (...) in that lair of the Deep Ones, I shall dwell amidst
wonder and glory forever».
Dificilmente este será o ponto de vista de quem encara com repúdio uniões multiétnicas.
Sobre essa questão, acrescente-se o casamento de Lovecraft com Sonia
Greene, uma judia ucraniana, sete anos mais velha que ele. A união de
Lovecraft com Sonia fez-se de verdadeira cumplicidade e afeição, embora
esta se tenha dissolvido, de modo amigável, por culpa das
circunstâncias laborais de Greene, obrigada a viajar de um lado para o
outro, ficando Lovecraft muito tempo sozinho no pequeno apartamento que
ambos tinham alugado numa zona muito pobre de Brooklyn, em Nova Iorque.
Com efeito, em segredo, Lovecraft nunca assinou o documento do divórcio,
na sincera esperança de que ele e a mulher, em breve, voltassem a viver
juntos. Se este é o comportamento de um racista virulento, anti-semita e
misógino, então eu não sei qual é o comportamento de alguém de sinais
opostos.
Ainda assim, mesmo que Lovecraft correspondesse à
caricatura racista que dele alguns querem fazer (até existe um jogo na
Internet que o compara com Hitler), o que é que isso tem a ver com a
autêntica apreciação literária da sua obra? É óbvio que somos livres de
não querer ler obras de autores que não admiramos pelos mais variados
motivos (eu, por exemplo, recuso ler livros escritos por quem escreve
mal), mas recusarmos ver o valor literário que as obras têm, por culpa
do nosso desgosto ou preconceito sobre os autores, é totalmente errado.
Lovecraft viveu toda a vida como um indigente, que mal tinha dinheiro
para comer e, pese essas dificuldades, preferia gastá-lo em livros e em
papel de carta para se corresponder com os seus múltiplos amigos
epistolares - que, genuinamente, o admiravam e acarinhavam. Foi, em
suma, alguém que recusou uma vida normal, fácil, com um emprego banal,
das nove às cinco, para se entregar com toda a alma à criação literária
de mundos imaginários que, hoje, reverberam com uma força imensa. Quando
penso em Lovecraft, não é a imagem do racista a espumar da boca que
evoco, mas a do escritor esforçado - e culto - que se sacrificou
diariamente para deixar obra feita: a obra que ele quis e não aquela que
as modas do seu tempo poderiam ter ditado.
Hoje como ontem, o
preço a pagar pela integridade, pela ética e pelo sacrifício é sempre o
isolamento. Não direi sobre Lovecraft o que Pierre Klossowski disse
sobre Sade, mas posso dizer que, para mim, Lovecraft é um exemplo
luminoso: se eu, enquanto autor, me juntasse ao coro de detractores
lovecraftianos, rapidamente me vergaria até aos calcanhares sobre o peso
insuportável da vergonha mais desonrosa. Aviltar de modo tão cobarde
quem amou tanto as letras e o mundo imaginal que criou de maneira tão
especial é uma veleidade de homens pequenos.