quarta-feira, 30 de julho de 2014

Cinco sugestões de leitura (ficção)

Geralmente, não leio ficção, mas isso não significa que eu não goste de ficção. Na realidade, a única razão pela qual vale a pena escrever é a de passar-se uma temporada em excusivo retiro mental num mundo totalmente fictício - sobretudo quando o mundo real falha em alcançar padrões de excelência aceitáveis. Assim, deixo uma pequena lista com cinco livros de ficção, lidos durante os últimos quatro ou cinco anos, que me emocionaram. Neste momento, as escolhas são estas - em outro, seriam, certamente, diferentes. Não elenco estes títulos em nenhuma ordem preferencial ou parecida.


1) Stoner, de John Williams. Um livro extraordinário, escrito com uma subtileza surpreendente, sobre um filho de agricultores que se torna professor universtário. Grande parte da narrativa tem de ser percebida nas entrelinhas, porque não é descrita. Uma história sobre o valor redentor da cultura, da inteligência e da inexpugnável integridade de carácter. Um belo livro triste.



2) Nicholas Crabbe, de Frederick Rolfe (Barão Corvo). Terrível relato sobre as agruras de um escritor em início de carreira, mais angustiante ainda por ser, em maior espessura, autobiográfico. A linguagem é luxuriante e o final é castigador. Um livro essencial.


3) Sirius, de Olaf Stapledon. Excelente romance sobre um cão com inteligência humana, que consegue falar (de modo um pouco tosco, mas os donos entendem-no). Misto de noveleta de ficção científica e ensaio filosófico wittgensteiniano, provocante e pertinente, que nunca, em momento algum, escorrega para a caricatura ou para o artificialismo, o que, considerando o tema, é impressionante.


4) The Sot-Weed Factor, de John Barth. Romance (verdadeiramente) picaresco, escrito sem concessões ou facilitismos em linguagem seiscentista, sobre as graças e as desgraças de um pobre diabo a quem convenceram ser o poeta laureado da colónia de Maryland. Uma obra-prima que mistura, em partes iguais, comédia desbragada e uma fina sensibilidade. Em português, o título pode ser traduzido como O Contratador de Tabaco.


5) Ada, or Ardor, de Vladimir Nabokov. Na minha opinião, o melhor romance de Nabokov, escrito com a habitual prosa pirotécnica, mas em grau superlativo de delícia. Sátira filosófica ao chamado bildungsroman, com laivos de ficção fantástica. Um livro complexo e fascinante que, misteriosamente, passa sempre abaixo do radar, comparado com o (também genial, mas) mais famoso Lolita.


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Estrompa (1942-2014)

É com tristeza que informo que faleceu recentemente (na passada sexta-feira, dia 18 de Julho) João Estrompa, autor português de banda desenhada, conhecido, entre outros trabalhos, pela personagem Tornado. Foi criador e editor do importante fanzine Shock (publicado pela primeira vez em 1983), no qual colaboraram diversos autores portugueses de banda desenhada.

 (Capa do nº0 do fanzine Shock.)

Recordarei o seu entusiasmo, a simpatia, o optimismo e o humor. O mundo da BD portuguesa ficou mais pobre.
Segundo o weblog Divulgando BD, de Geraldes Lino, o velório de Estrompa terá lugar amanhã, a partir das 18H00, na Igreja de Arroios (Rua de Arroios), em Lisboa.


sábado, 19 de julho de 2014

«O Homem-Javali Vai Casar: ou, Leng Tch'e» de David Soares e Pedro Serpa


Eu e o Pedro Serpa começámos uma nova colaboração homicida em banda desenhada que sairá este ano pela Kingpin Books.
Ainda é cedo para revelar pormenores, mas posso avançar com a informação de que consistirá numa história (mais ou menos) curta, intitulada O Homem-Javali Vai Casar: ou, Leng Tch'e que, simplesmente, só posso definir como sendo um delírio que Buñuel arquitectaria se decidisse criar um híbrido de The Elephant Man de David Lynch e You've Got Mail de Nora Ephron. Aguardem...

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Sobre Lovecraft


Não sou um fã fervoroso dos contos de H. P. Lovecraft, mas não pertenço ao campo dos seus detractores literários, nem tão-pouco ao dos seus assassinos de carácter, que, com odiosa curiosidade, o querem reduzir à caricatura de racista virulento (como o escritor francês Michel Houellebecq, autor da biografia H.P. Lovecraft: Contre le monde, contre la vie, que, no mínimo, pode ser caracterizada como carente de fontes fidedignas). Quero acreditar que a maioria desta gente, de facto, não conhece a vida e a obra de Lovecraft e, pela rama, escreve e fala sobre o que não sabe.

O racismo de Lovecraft foi um racismo de pechisbeque: um arremedo adolescente de alguém que, inserido num contexto muito provinciano, cresceu a pensar de um modo tradicionalista e ultra-conservador. Orientado por um elitismo de inspiração aristocrática, a que, em dada altura, quis almejar, Lovecraft desgostava e desconfiava das massas, mas - o que tem piada! - nunca rejeitou o indivíduo - fosse ele branco, negro ou de outra etina, algo que a sua profusa correspondência pessoal demonstra com clareza.

Outra coisa que a sua obra (é numerosa e literariamente significante para ser assim considerada) epistolar demonstra sem margem para dúvida é que o escritor, ao longo dos anos, afastou-se da matriz ultramontana e isolacionista da Direita norte-americana do seu tempo para tornar-se um homem aberto, mais positivo, menos pessimista e, sobretudo, menos precipitado nos seus julgamentos de sofá - até porque já se atrevia a sair de casa, de quando em quando, para visitar alguns amigos epistolares.

De facto, nas vésperas da morte, Lovecraft tornou-se um simpatizante da Esquerda e escreveu com entusiasmo sobre a democracia. Estamos, por conseguinte, muitíssimo longe dos textos intolerantes que escreveu na juventude e nos primeiros anos da idade adulta (como as histórias The Horror of Red Hook e He, por exemplo). A sua ficção patenteia essa viragem. Se nos primeiros contos ele observou com horror a proximidade do Outro - se desejarmos ler a obra dessa forma (a obra permite mais do que uma leitura) -, nos contos finais o contacto com o Outro - com o alienígena (em inglês, alien também significa imigrante) - é procurado como uma hipótese transformadora e até redentora: ao ponto de escrever, em At the Mountains of Madness, que os Outros «radiates, vegetables, monstrosities, star spawn — whatever they had been, they were men!». Quando o narrador de The Shadow Over Innsmouth descobre que é um mestiço e que tem sangue do Outro nas veias reage com maravilhamento, em vez de sentir repulsa: «the tense extremes of horror are lessening, and I feel queerly drawn toward the unknown sea-deeps instead or fearing them. I hear and do strange things in sleep, and awake with a kind of exaltation instead of terror. Stupendous and unheard of splendours await me below, and I shall seek them soon. (...) in that lair of the Deep Ones, I shall dwell amidst wonder and glory forever».
Dificilmente este será o ponto de vista de quem encara com repúdio uniões multiétnicas.

Sobre essa questão, acrescente-se o casamento de Lovecraft com Sonia Greene, uma judia ucraniana, sete anos mais velha que ele. A união de Lovecraft com Sonia fez-se de verdadeira cumplicidade e afeição, embora esta se tenha dissolvido, de modo amigável, por culpa das circunstâncias laborais de Greene, obrigada a viajar de um lado para o outro, ficando Lovecraft muito tempo sozinho no pequeno apartamento que ambos tinham alugado numa zona muito pobre de Brooklyn, em Nova Iorque. Com efeito, em segredo, Lovecraft nunca assinou o documento do divórcio, na sincera esperança de que ele e a mulher, em breve, voltassem a viver juntos. Se este é o comportamento de um racista virulento, anti-semita e misógino, então eu não sei qual é o comportamento de alguém de sinais opostos.

Ainda assim, mesmo que Lovecraft correspondesse à caricatura racista que dele alguns querem fazer (até existe um jogo na Internet que o compara com Hitler), o que é que isso tem a ver com a autêntica apreciação literária da sua obra? É óbvio que somos livres de não querer ler obras de autores que não admiramos pelos mais variados motivos (eu, por exemplo, recuso ler livros escritos por quem escreve mal), mas recusarmos ver o valor literário que as obras têm, por culpa do nosso desgosto ou preconceito sobre os autores, é totalmente errado.

Lovecraft viveu toda a vida como um indigente, que mal tinha dinheiro para comer e, pese essas dificuldades, preferia gastá-lo em livros e em papel de carta para se corresponder com os seus múltiplos amigos epistolares - que, genuinamente, o admiravam e acarinhavam. Foi, em suma, alguém que recusou uma vida normal, fácil, com um emprego banal, das nove às cinco, para se entregar com toda a alma à criação literária de mundos imaginários que, hoje, reverberam com uma força imensa. Quando penso em Lovecraft, não é a imagem do racista a espumar da boca que evoco, mas a do escritor esforçado - e culto - que se sacrificou diariamente para deixar obra feita: a obra que ele quis e não aquela que as modas do seu tempo poderiam ter ditado.

Hoje como ontem, o preço a pagar pela integridade, pela ética e pelo sacrifício é sempre o isolamento. Não direi sobre Lovecraft o que Pierre Klossowski disse sobre Sade, mas posso dizer que, para mim, Lovecraft é um exemplo luminoso: se eu, enquanto autor, me juntasse ao coro de detractores lovecraftianos, rapidamente me vergaria até aos calcanhares sobre o peso insuportável da vergonha mais desonrosa. Aviltar de modo tão cobarde quem amou tanto as letras e o mundo imaginal que criou de maneira tão especial é uma veleidade de homens pequenos.


A bodega de Lisboa

Não há outra forma de dizê-lo e tentá-lo seria, ao mesmo tempo, uma hipocrisia e uma perda de tempo: este texto que o The New York Times publicou sobre Lisboa é uma bela bodega.

Aqui, pode ler-se a apologia de uma espécie de turismo rural olisiponense, no qual a cidade, longe de possuir uma história antiquíssima (Lisboa foi fundada em 1200 a.C.) que urge descobrir, irrompe como uma simples e simpática aldeiazinha alcandorada ao Tejo, que convida o turista - cansado da história e da cultura que encontra em outras cidades europeias mais interessantes - ao ócio desmiolado, em restaurantes e ostarias hipster que, ainda por cima, como Portugal atravessa uma crise economico-financeira, são muito mais baratos que os das restantes capitais. Ena, pá! Sobretudo, nesta visão miserabilista sobre Lisboa, a cidade é minúscula: adstrita ao Parque Eduardo VII - onde pululam cachorros amestrados (tão giro que isto é) -, às ruas da Baixa - onde pululam serventes amestrados (tão prático que isto é) - e à colina do Castelo - onde pulula a parenética amestrada sobre o território (tão conceptual que isto é) - , como se o resto não existisse. Aos olhos de Frank Bruni, antigo crítico de restauração do The New York Times, Lisboa é um diorama sem delínquio, simplesmente porque não exige nada ao visitante: segundo o cronista, não tem locais de relevo para visitar, não tem museus, não tem sítios com interesse artístico e histórico, não tem nada a não ser dois restaurantes do caraças e meia-dúzia de hotéis super-chiques (onde também pululam os serventes amestrados). O Rei Midas iria gostar da talha dourada da Igreja de São Miguel, escreve Bruni: aqui já se está no campo da alta literatura, pelos vistos. É comovente, assim como comove a abulia que, segundo Bruni, é o trunfo de Lisboa.

Lisboa é descrita como sendo o castelo da Fera do filme de animação Beauty and the Beast, dos estúdios Disney, durante o segmento musical «Be Our Guest»; é tão fácil imaginar o cronista sentado à sossega, ao entardecer, numa das esplanadas in dos hóteis que cita no artigo, enquanto a fauna mágica da criadagem lisboeta se desunha para o deslumbrar com as suas qualidades subservientes: «be our guest, be our guest, put our service to the test, tie your napkin round your neck, cherie, and we provide the rest». Eu acho isto digno de dó. Aliás, vou reformular o que escrevi no primeiro parágrafo: o artigo não é uma bela bodega. É uma grande merda.


E aqui está, como complemento, uma bucólica cena recente, observada pela manhãzinha no último Mega Picnic, na Avenida da Liberdade. (O The New York Times iria gostar.)

quinta-feira, 3 de julho de 2014

XII Troféus Central Comics: Nomeação Melhor Argumentista Nacional

O meu livro de banda desenhada Palmas Para o Esquilo (Kingpin Books, 2013), escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa, está nomeado para a categoria de Melhor Argumentista Nacional na décima segunda edição dos Troféus Central Comics: prémios anuais de banda desenhada, promovidos pelo site Central Comics, que têm a particularidade de ser escolhidos por votação dos leitores. Para esta edição, a votação dos leitores terminará no dia 10 de Julho.
A entrega dos prémios ocorrerá no dia 12 de Julho (sábado), às 17H30, no auditório principal do Hard Club do Porto (antigo Mercado Ferreira Borges): cerimónia inserida na programação do evento Central Comics Fest.

Caros leitores, Palmas Para o Esquilo é, neste momento, o meu livro de banda desenhada preferido - e se ele é tão especial para vocês como para mim ajudem-me a ganhar este prémio, porque o livro merece: podem votar até ao dia 10 de Julho nesta ligação (é a Categoria nº9). Para o efeito, só têm de preencher os campos de identificação indicados na página e votar, no mínimo, em cinco das categorias a concurso. Agradeço, em avanço, a vossa participação e a divulgação.



quarta-feira, 2 de julho de 2014

Coincidentia oppositorum

 
A gente vai envelhecendo e dá conta da fenomenicidade que é viver-se em tempo histórico e que, daqui a uma década ou duas, no mínimo, se irá ler sobre a actualidade do mesmo modo que, hoje, se lê sobre os meados do século XX. Quando somos jovens não nos apercebemos disso, porque o tempo demora muito a passar e tudo parece cristalizado num eterno presente - é um tempo de vista larga. Em oposição, quando o tempo passa mais depressa coarcta-nos o horizonte do visível; daí que as coisas terríveis e as coisas belas que, a esta altura, parecem ser produzidas por propulsões irreconciliáveis serão reunidas pela história do futuro próximo numa espécie de coincidentia oppositorum - menos mística que a boehmeana, mas, ainda assim, espera-se, liberta do ludíbrio.


terça-feira, 1 de julho de 2014

«Imundo Bizarro» em «Larvas» de Holocausto Canibal



Larvas, o novo disco (EP) dos Holocausto Canibal, já se encontra disponível. Chamo a atenção para mais uma colaboração lírica (em todos os significados da palavra), no feitio da letra da música Imundo Bizarro, que idealizei e escrevi, propositadamente, a convite da banda. Na ligação em anexo poderão ouvir a música, uma das estrelas do disco, com um solo de guitarra muitíssimo venenoso, e acompanhar a audição com a leitura da letra (integral) que publico no parágrafo seguinte. Aviso: só para estômagos fortes e mentes com sentido de humor (negro).

IMUNDO BIZARRO (música: Holocausto Canibal; letra: David Soares)

Repuxos vagais laríngicos – cessam as inibições.
Inalando matéria regurgitada – surgem alucinações.

Psicótico, desviante:
não estou só nesta parafilia.
Hipnótico, excitante:
o vicio da minha emetofilia.
O vómito inflama a fantasia.

Total fadiga epiglótica – depois da quietação orgástica.
Hidropisia pulmicórtica – efeitos da inspiração cáustica.

Perigoso, glorificante:
um epicurismo singular.
Asqueroso, exaltante:
ejaculo em lixo hospitalar.
Prazeres a não depreciar.

Delírio e desritmia – infecção bactérica do sistema.
Fibrilação ventricular – colapso cardíaco com edema.

Relapsa, a lascívia é activa: imagino uma delícia putrescina.
Fétida, a fecalidade é vomitiva: besunto-me com bilirrubina.

(Indignante –
a minha presença mete nojo.
Sevandijante –
não há outro verme tão sujo.)

Nódoas no corpo, nódoas na mente. Imundo bizarro!
Sexualidade misófila e indecente. Imundo bizarro!