Pense-se na câmara fotográfica digital, que funciona de modo totalmente
diferente da analógica. Com efeito, nada daquilo que faz uma câmara
fotográfica tradicional ser uma câmara fotográfica tradicional se
relaciona com o vero funcionamento de uma câmara fotográfica digital.
Num determinado aspecto, as possibilidades deixadas em aberto pela
miniaturização de componentes técnicos digitais, mais similares a
bairros citadinos ligados por estradas e travessas do que às engrenagens
mecânicas dos anteriores modelos exclusivamente manuais, que tinham
tudo a ver com a lógica de organicidade fabril, na qual diversos
componentes isolados concorriam, em harmonia, para criar um corpo
organizado - tanto no sentido de coerente, como no de provido de órgãos -
não libertaram o design industrial das amarras do funcionalismo: ou
seja, se uma câmara fotográfica digital funciona de um modo muito
diferente de uma analógica, então a sua forma não precisaria de
mimetizar a desta para justificar a sua existência ou, sequer, para
funcionar. Uma câmara fotográfica digital poderia ser-nos apresentada
segundo uma lógica de desenho e de utilização totalmente inédita;
todavia, as expectativas do público, em relação à imagem arquetípica que
uma câmara fotográfica deve ter para ser considerada, de facto, uma
câmara fotográfica, tolhe, liminarmente, quaisquer audácias prototípicas
com que um aparelho dessa natureza poderia consubstanciar-se nas
oficinas das grandes marcas. Uma câmara fotográfica digital comum,
daquelas que podemos comprar em qualquer loja de centro comercial ou
hipermercado, ainda arreigada ao fenótipo das analógicas, sem,
verdadeiramente, de precisá-lo, é, assim, um objecto de transição -
sendo que "transição", neste sentido específico, não envolve nenhum real
comprometimento com uma hipotética ligação entre um pretérito estado
analógico e uma actual maneira de ser digital, porque essa ligação não
existe, de todo. O que existe é mero disfarce. Um disfarce conveniente
às vendas, porque o público que se dirige às lojas para comprar uma
câmara fotográfica, seja digital ou analógica, não quer, em suma, ser
confrontado com surpresas ou ambiguidades.
Será, pois, útil
pensar nesta União Europeia, sobre a qual vemos e ouvimos na comunicação
social, como uma entidade equivalente: tal como a câmara fotográfica
digital somente se adapta por mimetismo à aparência da câmara
fotográfica analógica, para ir ao encontro das expectativas do público,
também esta União Europeia pouquíssimo ou nada terá a ver com aquela que
existia há umas décadas, dando a entender que somente vai imitando, de
maneira postiça, a aparência desta para ser capaz de manter-se operante
diante do público. Os seus componentes internos, a sua fisiologia de
funcionamento já mudou - como mudaram umas câmaras fotográficas para as
outras - e nós, pobres cidadãos europeus, em certa medida iludidos pela
carapaça benfazeja das fronteiras abertas e de todos os autênticos
progressos do passado recente, não nos apercebemos disso - a tempo útil,
pelo menos.
Assim, a poucos dias do referendo na Grécia, as horas são, em simultâneo, de perplexidade e de ansiedade. Portugal, por tudo o que se sabe, deveria estar muitíssimo atento aos próximos desenvolvimentos desta situação, mas, provavelmente, não valerá a pena manter ilusões nenhumas acerca da conjecturada camaradagem europeia, porque esta União Europeia, a destes indivíduos tão empáticos quanto torradeiras (e igualmente frios e automatizados) que nos entram em casa pelas televisões adentro, já demonstrou, activa e consecutivamente, que não é a da solidariedade e a da confiança e a da irmandade. Na verdade, tem demonstrado reiteradamente, e com timbre de torcionário, o contrário: que aquilo que continua a existir parece ser, afinal de contas, a mais prosaica e brutal razão de estado, prosseguida pelos estados-nações mais fortes nas mesmas fórmulas egoístas e desapaixonadas do passado, excepto o, vá lá!, avanço ético, diga-se assim, de não o procurarem fazer pela guerra, mas com armas também destrutivas e, demasiadas vezes, mortíferas (que o digam os gregos, cujo tecido social se encontra completamente esfarrapado pelas medidas austeras do chamado Consenso de Washington: camisa de forças, de medida única, fornecida pelo FMI, com a ajuda dos seus parceiros, que não se compadece com as idiossincrasias e fragilidades de cada país em que é aplicada).
Enquanto Portugal faz figura de Pobre Diabo no palco do teatro internacional, cujos críticos não lhe perdoarão a interpretação miserável que está a desempenhar, a Grécia prepara-se para, sem muito tempo para reflexão, servir de exemplo histórico àqueles que ousarem enfrentar o Leviatã. Continuo a acreditar num projecto europeu e continuo a ser, como é óbvio, um europeísta, mas tenho cada vez mais dificuldades em reconhecer-me nesta desgraçada União Europeia na qual as políticas, manifestamente, são as da profunda hipocrisia e as da exploração - física e moral - dos países fracos. Algo de novo - e mais justo - é necessário, com total urgência.
Assim, a poucos dias do referendo na Grécia, as horas são, em simultâneo, de perplexidade e de ansiedade. Portugal, por tudo o que se sabe, deveria estar muitíssimo atento aos próximos desenvolvimentos desta situação, mas, provavelmente, não valerá a pena manter ilusões nenhumas acerca da conjecturada camaradagem europeia, porque esta União Europeia, a destes indivíduos tão empáticos quanto torradeiras (e igualmente frios e automatizados) que nos entram em casa pelas televisões adentro, já demonstrou, activa e consecutivamente, que não é a da solidariedade e a da confiança e a da irmandade. Na verdade, tem demonstrado reiteradamente, e com timbre de torcionário, o contrário: que aquilo que continua a existir parece ser, afinal de contas, a mais prosaica e brutal razão de estado, prosseguida pelos estados-nações mais fortes nas mesmas fórmulas egoístas e desapaixonadas do passado, excepto o, vá lá!, avanço ético, diga-se assim, de não o procurarem fazer pela guerra, mas com armas também destrutivas e, demasiadas vezes, mortíferas (que o digam os gregos, cujo tecido social se encontra completamente esfarrapado pelas medidas austeras do chamado Consenso de Washington: camisa de forças, de medida única, fornecida pelo FMI, com a ajuda dos seus parceiros, que não se compadece com as idiossincrasias e fragilidades de cada país em que é aplicada).
Enquanto Portugal faz figura de Pobre Diabo no palco do teatro internacional, cujos críticos não lhe perdoarão a interpretação miserável que está a desempenhar, a Grécia prepara-se para, sem muito tempo para reflexão, servir de exemplo histórico àqueles que ousarem enfrentar o Leviatã. Continuo a acreditar num projecto europeu e continuo a ser, como é óbvio, um europeísta, mas tenho cada vez mais dificuldades em reconhecer-me nesta desgraçada União Europeia na qual as políticas, manifestamente, são as da profunda hipocrisia e as da exploração - física e moral - dos países fracos. Algo de novo - e mais justo - é necessário, com total urgência.