O escritor inglês Michael Moorcock voltou a exprimir numa entrevista uma
opinião pouco simpática sobre o autor inglês J. R. R. Tolkien, desta
vez chamando-lhe «criptofascista», porque, segundo Moorcock (transcrevo a
citação no inglês original para evitar ambiguidades de tradução): «in Tolkien, everyone’s in their place and happy to be there. We go there and back, to where we started. There’s no escape, nothing will ever change and nobody will ever break out of this well-ordered world».
Não sou um fã fervoroso da prosa de Tolkien, mas também não sou nenhum fã fervoroso da prosa de Moorcock, por isso o meu juízo sobre estas considerações dadas à estampa na entrevista não pende nem para um lado nem para o outro; somente acho desanimador que um escritor, como Moorcock, precise de andar constantemente na imprensa a caluniar outro -- que, ainda por cima, está morto e não pode defender-se daquilo que sobre ele é dito. Porém, aquilo que considero ainda mais desanimador é a utilização do rótulo de fascista (neste caso, criptofascista, ou seja "fascista de armário", digamos assim) para estigmatizar aquilo que se pensa ser o pensamento tradicionalista e conservador que pruma o texto tolkiano. Desanima-me, porque isso demostra 1) facilitismo e 2) um profundo desconhecimento sobre o que foi, de facto, o fascismo.
Dizer que o texto de Tolkien é fascista (ou criptofascista), porque apela ao conservadorismo é errado, pela mais simples razão de que o fascismo não foi um movimento conservador: foi, sim, um movimento revolucionário. A gente tem-se habituado a apelidar de revolucionários somente os movimentos de esquerda, mas, na verdade, tanto o fascismo, como o nacional-socialismo, foram movimentos revolucionários de direita. Foram revolucionários, porque aspiraram e tentaram aplicar um programa de reestruturação social e moral de índole inédita, com o objectivo de criar sociedades novas, desamarradas das grilhetas dos antigos regimes -- somente o quiseram fazer pela via da direita. Aliás, por essa razão foram combatidos tanto pela esquerda dita revolucionária, como pelos ultraconservadores.
A matriz intelectual do fascismo, concebida por nomes como Giovanni Gentile, entre outros, que eram estudantes da obra de Karl Marx (o próprio Mussolini foi comunista antes de tornar-se Duce), olha para o futuro, para um novo tipo de homem, para mudanças violentas no tecido social. Por conseguinte, dizer que um criptofascista coloca nos seus livros o desejo de que fique tudo na mesma é um disparate. Tal como existe nacionalismo de esquerda, também existem movimentos revolucionários de direita.
Assim, chamar fascista ou criptofascista a Tolkien não só não faz sentido à luz da obra que ele deixou, como sequer à luz da sua vida, que em nada se relacionou com percursos políticos fascistas e quejandos.
Sinceramente, não sei qual era a inclinação política de Tolkien -- e nem estou interessado em saber, confesso. Não escolho os livros e os autores que quero ler em função das suas inclinações ou inscrições políticas: escolho-os por escreverem bem e terem coisas interessantes para dizer. No entanto, sei que Tolkien não foi fascista.
Já era tempo de se deixar de usar o nome "fascista" a torto e a direito, sempre se quer caluniar ou assassinar o carácter de alguém de quem se desgosta, porque isso, no fundo, é prestar um péssimo serviço à história: desvaloriza o peso da palavra e contribui para branquear o verdadeiro fascismo, pois se velhinhos simpáticos como Tolkien são chamados de fascistas (corrijo, de criptofascistas) a malta mais nova ainda poderá pensar que ser fascista é uma coisa fixe. Só me lembro daquilo que disse o João Franco, já meio-velhote e retirado para o seu auto-exílio agricultural, quando descobriu que os netos andavam fascinados pelos escritos e ideário do fascismo italiano: «que se passa de errado com esta juventude? Agora são todos miguelistas?»
Vale a pena, pois, pensar com sobriedade no modo como nomes e epítetos são tão facilmente atirados e desvirtuados.