
Sobre o Garum
«Os romanos nunca foram, verdadeiramente, um povo inovador e, no seu ultra-pragmatismo, primaram por uma certa preguiça imaginativa; mas foram um povo extraordinariamente renovador: ou seja, foram mestres a absorver tecnologias e culturas das populações que iam subjugando e a examiná-las com minúcia para refinarem-lhes as possibilidades a inéditos níveis de eficiência. Nesse sentido, a indústria da conserva e salga de peixe por eles reformulada não foi nenhuma excepção e a diversidade de produtos que conceberam chegou até nós em nomes cuja interpretação é o pesadelo dos etimologistas; como Isidoro de Sevilha, que, no final do terceiro capítulo do Livro XX das suas Etimologias, discorreu sobre o assunto: muria, allec, liquamen, e, em destaque, garum.
Garum: nome que, foneticamente, bem podia ser algo ronronado por um delambido gato a esfregar-se nos tornozelos do dono, evoca, logo à partida, uma imagem de algo aquoso e antracítico – uma versão orgânica do basalto, pedra usada na “típica” calçada portuguesa. Que produto foi este, confeccionado nas cetárias revestidas de opus signinum (argamassa feita de areia, cal e calcário britado) que se encontram no subsolo dos nossos hodiernos edifícios, como a sede do banco Millennium BCP, mas também da Casa dos Bicos/Fundação José Saramago, na Rua dos Bacalhoeiros, e da loja Napoleão, na Rua dos Fanqueiros – a topologia é destino e esta casa, vendedora de finos azeites, vinhos e queijos portugueses, parece prosseguir a tradição gastronómica de que a Baixa foi o efervescente cadinho, porque o garum, desde o início, cifrou-se como produto gourmet: o principal molho salgado de peixe.
Era transportado em ânforas (...) as de transporte de azeite e vinho eram delgadas, enquanto que esta é gorda. Se há objecto universalmente identificável com a cultura romana é a ânfora, mas, mais uma vez, não foram eles que a inventaram e o nome, que é grego, significa com dois transportadores (os “transportadores” são as pegas laterais): projectadas para serem usadas apenas uma vez, foram a louça de plástico da época. Com mais de trinta metros de altura, o verdejante Monte Testaccio, em Roma, parece ser uma elevação natural, mas é totalmente artificial, formado por sedimentos sucessivos de cacos de mais de cinquenta milhões de ânforas: terra tornada barro, tornado terra; há rebeldia, aqui, nesta fímbria cosmopolita, porque não basta aos homens moverem montanhas, mas têm de ser capazes de construi-las. Este é o único Olimpo que vale a pena idolatrar.
(…)
É provável que algumas das receitas romanas mais “herméticas” sejam exageros literários, mas, mesmo assim, de acordo com as fontes mais credíveis, é inegável que os romanos adoravam iguarias extravagantes e não poupavam esforços e despesas para confeccioná-las – até inventaram uma palavra para isso: abligurire, que significa, em bom português, “gastar rios de dinheiro em comes-e-bebes”. Todavia, também adoravam sal; tanto que até salgavam o vinho – e eles bebiam imenso vinho – com um molho salgado chamado defrutum, feito de propósito para o efeito.
Que se esconde detrás desta obsessão com molhos salgados, como o defrutum e o garum?
A resposta reside no facto de que os romanos não usavam pedrinhas de sal para cozinhar ou temperar os pratos. Hoje, quando queremos salgar a comida, agarramos num saleiro e polvilhamos a gosto; ora, os romanos também tinham saleiros, mas, praticamente, não os usavam, porque preferiam salgar a comida com molhos salgados. Molhos salgados de peixe, neste caso; foram, em simultâneo, condimentos e remédios, porque os físicos coevos achavam que eles continham todas as propriedades medicinais do sal, mais as do peixe. Tomava-se garum contra a ciática, contra as enxaquecas e até contra problemas respiratórios ainda por diagnosticar convenientemente, como a asma e a tuberculose. Deste modo, não é surpreendente que a indústria de produtos piscícolas tenha transformado Lisboa na segunda capital da Lusitânia. Tão bem temperado era o sentido do negócio dos romanos que até vendiam uma versão kosher do garum para o mercado israelita, chamado garum castimoniale, feita em exclusivo com peixes escamados; de qualquer forma, o garum feito em Lisboa era kosher por excelência, feito de carapau e, principalmente, de sardinha (conhece-se esse facto, graças às análises feitas às espinhas e aos resíduos do preparativo, encontrados nas cetárias e nas ânforas).»