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quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Transcendência ou transposição?


Cronenberg não tem tido a atenção que merece no que concerne à antecipação de algumas atitudes que a sociedade contemporânea adoptou recentemente face à tecnologia digital; embora os seus filmes não sejam, per se, perfilháveis no género da ficção científica, eles encerram uma acutilante reflexão sobre a imprevisibilidade que essas tecnologias comportam.

Este cineasta canadiano foi o primeiro, quanto a mim, a antecipar através da metáfora televisiva o advento da Internet e o modo como a rede digital de informação se infiltraria na esfera privada, mudando comportamentos e pensamentos: a dada altura, no filme Videodrome, de 1983, o Professor Brian O’Blivion, Papa e testa de ferro, em simultâneo, do novo movimento videodrómico e que só pode ser visualizado num ecrã, declara numa das suas emissões piratas que «em breve, todos teremos nomes televisivos». Ou seja, em breve todos substituíriam as suas identidades por criações virtuais - avatarianas. Ora, esta é, digamos assim, a psicotoponomia do espaço virtual, da maleabilidade entre o corpo e o digital - prefigurada no slogan «vida longa à Nova Carne» que serve de senha aos apaniguados de O’Blivion. Por aqui ressoa o desiderato do movimento Trans-humanista e a sua cruzada cibernética de transpôr a actual condição humana (evito empregar a palavra “transcender”, porque o que esse movimento neo-escatológico propõe é, de facto, a transposição da carne, mas mantendo o repertório mental e emocional humano — algo que numa autêntica transcendência seria totalmente deixado para trás). Assim, no filme Videodrome, os esbirros da Nova Carne querem, de facto, transcender a Velha Carne. Cronenberg resgatará este conceito no filme eXistenZ, no qual, já perto do fim, é desvendado que a marca do jogo virtual de novas consolas orgânicas que o grupo de teste esteve a experimentar se chama Transcendenz.

O filme The Fly, de 1986, interpretado na altura como alegoria para a sida (o próprio Cronenberg disse várias vezes que o interpretava como uma alegoria do envelhecimento), aparece hoje como um aviso chocante contra a imprevisibilidade da tecnologia: recorde-se que o filme, para além do horror corporal, inicia numa toada tecnológica, sobre a possibilidade do teletransporte - tecnologia que, a este instante, volta a ser uma das mais faladas nos círculos dos ministérios de defesa e empresariais. O teletransporte de partículas já é, aparentemente, possível — inclusive para distâncias extraterrestres. Resta saber se teletransportar organismos vivos, entidades profundamente complexas, será, sequer, possível, posto que o teletransporte se sustenta numa espécie de clonagem; tal qual, para melhor se compreender, a cópia e envio de ficheiros pela Internet, em que se envia uma cópia do ficheiro e não o próprio ficheiro. Ora, The Fly atira-nos para o colo, ainda com o sangue fumegante, duas inquietações: 1) que riscos advirão de imprevisíveis erros na aplicação de uma nova tecnologia?; e 2) será que o indivíduo poderá conservar a sua identidade no contacto com a tecnologia ou será, inevitavelmente, metamorfoseado para além dos limites do reconhecível? No seu processo de metamorfose, o protagonista perde a forma humana, perde a voz humana e, no final, parece perder o pensamento humano, antes de pedir para ser abatido depois de fundir-se, mais uma vez acidentalmente, com parte da própria cabine de teletransporte, hibridizando o orgânico com o inorgânico. Em suma, todo o filme é, de facto, sobre o modo arrogante e frívolo com que se lida com uma tecnologia ainda desconhecida. Os gregos antigos chamar-lhe-iam hubris.

Em
eXistenZ, de 1999, são os jogos de consola a temática central da reflexão sobre como a virtualidade pode transformar o indivíduo, mas note-se que as consolas - que se conectam ao corpo do jogador através de uma mucosa aberta na coluna - são seres vivos, orgânicos, criados artificialmente para o efeito. O jogo aparenta ser, neste feitio, uma espécie de sonho construído entre a consola e o jogador — sugestão reforçada pela relação de dono e mascote que a personagem principal tem com a sua consola. Pode ver-se aqui uma crítica à dependência e antropomorfização do objecto da dependência, mas sem descartar essa perspectiva também vale a pena introduzir a ideia de que, já que falamos em realidades virtuais - viver uma verdadeira realidade alternativa: ou seja, experimentar ser Outro, em vez de passear-se num programa já definido -, só um ser vivo pode definir aquilo que é uma realidade em específico: ser humano, ser animal ou ser planta — sair de si para ser outra coisa que não visualizar um pacote já preparado pelos designers e programadores. Penso que esta é a chave para compreender a mensagem de eXistenZ — ou Transcendenz. No fundo, é, ao contrário do panfleto trans-humanista, a negação da escatologia: se há transcendência - e não mera transposição - não se pode falar em escatologia. Esta prevê sempre um melhoramento, um aperfeiçoamento de condições prévias, um fio de continuidade. A transcendência não quer saber disso para nada: é, para empregar a imagem entomológica de The Fly, uma mudança de estádio, de crisálida a novo organismo. Por momentos, no desfecho do filme, o monstruoso protagonista de The Fly parece ter alcançado esse patamar, demonstrando uma atitude e sentires que de humano já nada reservam. Mas sob uma segunda e mais radical transformação, o humano sobe à superfície e pede para morrer.

Clemência, comiseração ou, por outro lado, a busca de querer sentir-se novamente humano através dessa derradeira experiência que é o falecimento, momento em que, segundo diz a tradição, vemos as recordações da nossa vida. Será que o híbrido de homem, insecto e máquina, buscava essas recordações para se sentir humano novamente?

E quanto a nós, transformados de forma irremediável por uma qualquer nova tecnologia dominada displicentemente, quem se apiedará de nós com um último tiro na cabeça, de molde a nos sentirmos humanos outra vez?

terça-feira, 6 de novembro de 2018

A Ignota Ilha Digital; ou, O verdadeiro Fernão de Magalhães que se levante, por favor



Ontem, na abertura oficinal (não se trata de erro: quis, de facto, usar esta palavra, que melhor expressa o aspecto de receituário técnico exudado por esse protocolo), do Web Summit, o presidente da câmara municipal de Lisboa Fernado Medina comparou Paddy Cosgrave, criador do evento, a Fernão de Magalhães, assinalando-o com a oferta em palco de um retrato desse navegador português. Segundo as palavras de Medina, agora Lisboa abre fronteiras por mérito de Cosgrave.

A partir daqui, interessa-me uma observação mais rigorosa sobre o generalizado fenómeno da importância desmesurada que é atribuída às tecnologias digitais — sobretudo quando o seu poder é comparado a uma ruptura epistemológica que, na verdade, não precisou de Internet para coisa alguma: a da navegação astronómica dos seculos XV e XVI, desenvolvida, em principal, por navegantes portugueses, com o auxílio de ferramentas bastante simples. Com efeito, as técnicas e instrumentos que permitiram o descobrimento de novas rotas marítimas durante esse período da expansão portuguesa — e que serviram, de facto, para desencravar o mundo — estão em oposição às tecnologias digitais, que, por mais complexas que sejam as suas cabalísticas linguagens, somente compreendidas na totalidade por engenheiros informáticos e programadores especializados, se cifram em atalhos comunicacionais que, quase sempre, se tornam a si próprios obsoletos. Como se se operasse em smartphones e tablets uma senescência programada da mesma ordem que aquela que delimita a vida útil de outros electrodomésticos menos vistosos, como torradeiras e máquinas de lavar louça.

Em suma, a vantagem do uso das tecnologias digitais está em alcançar de modo mais veloz, imediato e, em alguns casos excepcionais, exacto, tarefas que, no fundo, poderiam perfeitamente continuar a ser realizadas de maneiras analógicas. Inversamente à ruptura epistemológica estreada com o advento da navegação astronómica (ao nivel do impacto que tiveram os desenvolvimentos das concomitantes artilharia móvel e imprensa de caracteres móveis), essa madrinha da Modernidade, o surgimento da Internet ainda não trouxe nenhum mundo novo ao Mundo. E se a estética digital se arroga, por vezes de modo precipitado, de tropos pertencentes a alguma cinemática ficção científica para se apresentar num jaez mais profético (Steve Jobs desempenhava muito bem esse papel de pajé, revelando no ecrã gigante as visões com que a Deusa Tecnologia o havia honrado), esse desiderato desaba no instante em que recordamos que para ir várias vezes à Lua a humanidade não precisou de Internet para nada: bastou-lhe utilizar com arte e coragem ferramentas relativamente simples, tal como bastou aos navegadores quinhentistas. Não há, bem vistas as coisas, um antes e um depois da Internet, do mesmo modo que houve um antes e um depois da roda, um antes e um depois da passagem do cabo Bojador ou um antes e depois de Gutenberg. Tudo o que há é a ágil reprodução de mecanismos que, até há pouco tempo, eram analógicos.

Assim, comparar Cosgrave a Magalhães, navegador que encetou a grande viagem de circum-navegação do planeta (descoberta que faz parte da supramencionada ruptura epistemológica) — e que morreu violentamente no decurso desse empreendimento (uma atitude que se caracteriza por aquilo a que o autor Nicholas Nassim Taleb chamou no seu livro mais recente de skin in the game) — pode consistir numa manobra de marketing que dá nas vistas (o que é completamente legítimo, note-se...), mas falha em estabelecer um verdadeiro vínculo entre uma actividade e outra.

Não é de espantar que assim seja: Magalhães e outros seus próximos orientaram-se por estrelas; estes epígonos hodiernos são orientados pelo estrelato — que até soa parecido, mas é algo muitíssimo diferente.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Um desmentido

Escrevo este desmentido em relação a algo que me foi dado a conhecer hoje.

Um dos meus amigos escritores, pertencente ao meio do Fantástico português, enviou-me por email uma ligação para uma resenha ao evento Fórum Fantástico 2013, escrita por um leitor, na qual é descrito que

«Das sessões a que fui, achei todas muito boas, em particular as Conversas de Horror, com David Soares, António Monteiro, Pedro Santasmarinas e José Pedro Lopes. O escritor, o académico e os realizadores, reunidos numa conversa semi-informal, marcada pelo tom algo agressivo do David Soares, que não esteve nos seus melhores momentos de argumentação, mas que teve também momentos bastante interessantes, como quando falou da diferença entre horror (nojo, repulsa) e o terror (no sentido de ficar assustado), num diálogo bastante interessante com António Monteiro» [sublinhado meu].

O meu amigo que me enviou esta ligação não esteve presente no Fórum Fantástico 2013, não assistiu à mesa-redonda Conversas de Horror e, como tal, perguntou-me, com espanto, que espécie de «tom algo agressivo» é que eu exibi durante o debate e qual a razão para que isso tivesse acontecido. Na resposta que lhe enviei, manifestei a minha completa estupefacção diante deste relato, que em nada corresponde à realidade: pelo contrário, se algo marcou as Conversas de Horror não foi um fictício «tom algo agressivo» que este leitor inventou para me atribuir, mas sim os aplausos espontâneos e entusiasmados de toda a assistência no final de uma das minhas intervenções sobre o tema do horror. Aplausos que dificilmente se explicariam no caso de, como inventou o leitor, eu não ter estado nos meus «melhores momentos de argumentação».

Por conseguinte, o desmentido que aqui publico tem como objectivo perspectivar de modo correcto os acontecimentos:

1) não existiu nenhum «tom algo agressivo» da minha parte durante a mesa-redonda Conversas de Horror no Fórum Fantástico 2013;

2) é falso que eu não tenha estado nos meus melhores momentos de argumentação, porque tive a surpresa e a satisfação de ter sido aplaudido de modo espontâneo por toda a assistência (menos o leitor que escreveu a supramencionada resenha do evento, provavelmente);

3) os participantes no debate ficaram em animada conversa informal uns com os outros (sobre livros e filmes) depois da mesa-redonda ter terminado, o que, só por si, deveria servir para afastar fantasmas (estamos a falar de horror, afinal de contas...) de tons algo agressivos e quejandos durante o debate.

De maneira geral, não dou importância ao que se escreve na Internet, mas achei que valia a pena publicar este desmentido, porque, com efeito, a distância que vai desta resenha à realidade é tão grande que se houvesse um vampiro em cada uma não se ouviriam berrar um ao outro. Em suma: a informação descrita na resenha é falsa e aproxima-se perigosamente do assassínio de carácter, porque quem não esteve presente no evento poderá ficar com uma ideia errada sobre a minha conduta no mesmo. 
Nesse sentido, apelo a quem possa ter filmado o evento na íntegra que entre em contacto comigo para que eu possa divulgar esse registo e demonstrar que tudo o que aqui escrevo é verdade. O meu endereço de email encontra-se na coluna do lado direito deste weblog. Obrigado.