quinta-feira, 11 de outubro de 2018

A Morte é sempre declarativa: uma meditação




A morte é um idioma universal.
Um desesperançado esperanto de pontos finais e verbos abreviados. Catacreses contidas em runas ocultas. Uma linguagem sequencial de presenças e ausências. Quadrículos sobre os quais são desenhados os destinos. A vida advém quando se pinta para fora das linhas.

A Prudência faz vista grossa.
Ébria no venéfico vinho da imaginação.

O sabor a sangue assombra sítios de sacrifício. Orlas onde, no vocabulário alquímico, se é devorado por dragões: o fogo dos seus ventres é uma coordenada que transcende o tempo.
Ainda morno, o xamanismo entalhado em algares cria ondas de calor. Saurópsides e artiodáctilos são tótemes frequentes em mitos fundacionais. Serpentes e cervídeos – cornos e cobras desbulham várias vezes a pele.
Nas oficinas dos alquimistas há sempre répteis pendurados nos tectos. Há répteis pendurados em igrejas. Crocodilos conspícuos: reptante fé que a repetência anediou e tornou invisível. Gnósticos ofitas acreditavam que Cristo e a Serpente eram o mesmo ser; e, com efeito, ecdise e crucificação são alegorias de ressurreição.

São sinais sabidos: escamíferas marcas de santidade – antídotos artesanais que são oferecidos.
Diz a esta pedra que se transforme em pão. Mas a qual pedra e que tipo de pão?...
O genoma da história é simétrico: ela rima e os mitos repetem-se. O profeta Daniel eliminou um dragão dando-lhe um bolo de breu, gordura e cabelos. Segundo Sérvio, as cobras habitam nas águas e as serpentes sobre a terra. Os dragões, todavia, vivem em templos. Num único templo nunca coexistirão dois dragões.
A pedra que o chamado Diabo e Satanás, o Grande Dragão, ofertou no deserto foi um bolo análogo ao de Daniel, feito para banir o dragão Cristo do templo de que o primeiro era príncipe: este mundo.


Porém, o templo de Cristo não era este mundo. A serpente desta terra equivocou-se: o reino não era daqui. O dragão de David obumbrava outro templo. Interrogações que, à laia de locais, ainda podem ser visitadas.   
Sai desse homem, espírito impuro. Qual é o teu nome?
Respostas estioladas como imagens expostas ao sol.
Derrubai este templo e em três dias o levantarei. O templo, afinal, era o corpo: antropomórfico ponto de fuga de um reino feito de verbo. Fármacos sacrificiais: carbunculoses no leito de um recendente rio de peçonha.
Em meu nome expulsarão demónios, apanharão serpentes com as mãos e se beberem veneno não morrerão.

Apanharão serpentes com as mãos. Ao toque, as serpentes são secas e duras; espécie de voltagem tornada carne, animais de vocação eléctrica, de visão termostática. Os seus silvos ardem como choques na pele. Há que confundi-las, descendo o catre do possesso por um único buraco que depois é tapado: Para demónios e espectros, a lei é esta: por onde entramos, somos extirpados. Livres de entrar e escravos para sair.
Será o homem como os demónios? Cativo da porta por onde entrou? Imobilizado no seu livre-arbítrio quanto um possuído decumbente num catre? A multidão é uma escultura viva, tão barroca no seu dinamismo quanto água ou estrelas em movimento.
Tornei-me um estranho para os meus irmãos.
Dois inequívocos sinais comprovam, a infecção de veneno espiritual que é a possessão demoníaca: glossolalia e a forense aptidão de revelar aquilo que está oculto.

Sangue que aliena o Diabo.
Mercúrio transudando da caldeira.
Vê o behemot que criei como a ti.
É a obra-prima de Deus.
Os animais do campo divertem-se à sua volta.
Acaso te dirigirá palavras ternas?
Algo orfeico e acre infiltra a quadricular moldura que nos cinge.
Quem lhe furaria as narinas para passar argolas?
Os seus ossos são como tubos de bronze, a sua estrutura como barras de ferro.
Põe-lhe a mão em cima.
Vais lembrar-te da luta e não repetirás.
Que luta é esta?
Que téssera se oculta nesta tapeçaria?
Que gramatical tenebrário?
Altivez argustica. Soberba algébrica - padrão opocéfalo que alucina e cheira a latim.
Este é, afinal de contas, o verdadeiro rosto. Caos. Um anti-jardim: prepóstero paraíso onde pastejam os porcos.
Reveste-te, pois, de glória e majestade.
E, então, também eu te louvarei, se triunfares pela força da tua mão.
Brincarás com ele como um pássaro?
Quando se atira uma pedra à agua, as ondas param longe nas margens. No horizonte.
O horizonte do peregrino está pejado de cruzes.
Sob o matiz submarino de lápis-lazúli, a coroa de espinhos parece feita de coral: argamassa aquática de agulhas e pólipos    
Pela força da tua mão.
Em cada mão um ponto final.
Dois pontos.
A morte é sempre declarativa.





(Imagens: detalhes de painéis de azulejos do Convento de São Paulo da Serra d'Ossa. Fotos do autor.)