1 - Uma origem silogística
Foi em meados do século IV a. C., pela mão
do filósofo grego Aristóteles, que apareceu no mundo das letras a primeira
consubstanciação da palavra barroco:
no tratado de lógica intitulado Analytica
priora (Analíticos Anteriores, um
trabalho envolvido mais tarde no compêndio peripatético Organon), ela assinala sob a forma baroco uma das mnemónicas pelas quais o estudante de filosofia invocaria
facilmente distintos tipos de silogismos – neste caso, um dos ditos da segunda
figura (como os festino e camestres), que expressa o atributo
inferencial do quantificador “nem todos”: ofereço um exemplo improvisado, 1)
Toda a literatura é filosofia, 2) Nem todos os escritores são filósofos, 3) Nem
todos os escritores são literários.
Todavia, nesta acepção aristotélica, o
silogismo baroco, mera categoria intelectual,
não se liga à actuação semasiológica que a palavra comportará no decurso da
modernidade. Encontramos, ainda, requícios dessa origem silogística nos ensaios
do cortesão francês Michel de Montaigne, publicados em 1580: em “De
l'institution des enfants”, capítulo XXVI do primeiro livro dos Essais, lê-se «La plus expresse marque
de la sagesse, c’est une esjouïssance constante ; son état est comme des choses
au-dessus de la Lune : toujours serein.
C’est Barroco et Baralipton qui
rendent leurs suppôts crottés et enfumés, ce n’est paselle; ils ne la
connaissent [à sabedoria] que par ouï-dire.» (Atentem à grafia moderna com que
Montaigne escreveu barroco.)
De molde a caracterizar como obsoleta a filosofia
medieval, considerada falaciosa face à quinhentista racionalidade humanista de
pendor platónico, Montaigne resgata quase arbitrariamente duas mnemónicas
aristotélicas para fundar o argumento que os silogistas arreigados à
escolástica só chegarão a uma incompleta compreensão da sabedoria – e por
ouvido… –, pois aos seus raciocínios falta a serenidade. Umas linhas à frente
encontraremos novamente esta ideia da ausência de serenidade – de harmonia –
associada ao “barroco”, mas, para já, introduza-se um outro concomitante
sentido que a palavra detinha no período em que Montaigne escreveu e à qual ele
não terá sido distante.
2 - Quando as ostras temem tempestades
Dezassete anos antes da publicação dos Essais, o físico português Garcia de
Orta deu à estampa em Goa o primeiro tratado português sobre botânica,
intitulado Coloquios dos simples, e
drogas he cousas mediçinais da India […], no qual se funda as modernas
significação e grafia da palavra barroco,
aí utilizada como sinónimo de pérola imperfeita: no trigésimo quinto colóquio,
“Da margarita ou aljofar […]”, lemos «Tudo por ser verdade porque ho aljofare
que de cà vai, e as perolas he groso, e redondo, e em toda perfeiçam, e o que
della vem das indias sam huns barrocos mal afeiçoados, e não redondos, e
com agoas morras (…)» [Sublinhado meu.] Afigura-se-me plausível que Orta se
tenha inspirado nesta passagem da trigésima quinta parte do nono livro da Naturalis Historia do historiador romano
Plínio, o Velho, no qual se descreve a germinação de vários tipos de pérolas, inclusive
aquelas que coalescem em deformidade por culpa do temor que as tempestades
marítimas insuflam nas ostras: «Si tempestive satientur, grandescere et partus;
si fulguret, conprimi conchas ac pro ieiunii modo minui; si vero etiam
tonuerit, pavidas ac repente conpressas quae vocant physemata efficere,
specie modo inani inflata sine corpore; hos esse concharum abortus.»
[Sublinhados meus.]
É este o significado que o capelão e
etimologista castelhano Sebastián de Covarrubias anotará no ano de 1611 em dois
verbetes do seu Tesoro de la lengua
castellana: na entrada alusiva ao aljôfar pode ler-se «Otras [pérolas] ay
desproporcionadas; que no se acomodan à la forma redonda ; y a estas
llamáron barruecos, quasi berruecos, porque tienen forma de berrugas. Las
gruessas, redondas, lisas, y de color claro, llamaron comunmente perlas: los
Romanos las llamaron vniones , quod nulli duo reperiantur indiscreti : y dellas
haze Plinio vn capitulo bien notable (…)»; e na entrada própria encontramos o
seguinte: «BARRVECO, entre las perlas llamã barruecos vnas que son desiguales,
y dixerõse assi, quasi berruecos, por la semejança que tienen a las berrugas
que salen a la cara.» [Sublinhados meus.]
Em 1712, o padre teatino estrangeirado
Raphael Bluteau deu no segundo volume do seu Vocabulário Portuguez e Latino […] algumas definições
complementares no verbete correspondente a barroco
– e, em analogia com Covarrubias, ignora Orta e cita novamente Plínio:
«BARROCO. Barrôco. Perola tosca, & desigual, que nem he comprida, nem
redonda.»; poucas linhas em seguida, cita este excerto da História Natural de Plínio para corroborar uma familiaridade etimológica:
«Crassescunt etiam in senecta conchisque adhaerescunt nec his evelli queunt
nisi lima. Quibus una tantum est facies et ab ea rotunditas, aversis planities,
ob id tympania nominantur.» Porém, do nome tímpano
(ou tímbale, que vai dar ao mesmo),
aqui chamado por Plínio para designar uma conformação inchada (já que, conforme
o trecho, estas pérolas anormais possuem uma face convexa e uma base achatada),
nunca derivaria o nome barroco
empregue por Orta, nem este se encontra, aliás, sob nenhuma morfologia, no clássico
texto de Plínio.
a) Metamorfose ou metaplasmo?
Com efeito, a única passagem dessa parte
que incita a uma ligação entre ela e a proposta de Orta é esta, na qual o autor
descreve o torpe engelhamento das pérolas envelhecidas: «Quare praecipuum
custodiunt pelagiae, altius mersae quam ut penetrent radii. flavescunt tamen et
illae senecta rugisque torpescunt, nec nisi in iuventa constat ille qui
quaeritur vigor.» [Sublinhado meu.] A presença de «rugisque», do latim ruga, com o significado de prega ou sulco, credibiliza a hipótese etimológica covarrubiasiana de verruga, assomando até a habitual
metaplasmia entre o /v/ e o /b/ e entre o /g/ e o /c/ nas palavras em latim
vertidas em vernáculo peninsular. Com efeito, a palavra em latim verruca é empregue por Plínio como uma
das maleitas que o sangue vertido do pescoço de uma tartaruga decapitada é
capaz de curar: no décimo quarto capítulo do trigésimo segundo livro lê-se «Sunt
qui testudinum sanguinem cultro aereo supinarum capitibus praecisis excipi novo
fictili iubeant, ignem sacrum cuiuscumque generis sanguine inlini, item capitis
ulcera manantia, verrucas. Iidem promittunt testudinum omnium fimo panos
discuti; et, quod incredibile dictu sit, aliqui tradunt tardius ire navigia testudinis
pedem dextrum vehentia.» [Sublinhado meu.] Não custa, pois, a conceber que Orta, inspirado pelo
modelo de Plínio, baseasse o neologismo barroco na palavra em latim verruca
para desenhar na imaginação uma coisa inchada e engelhada, oposta à beleza esferetérea evocada por uma pérola perfeita.