A titular tafonomia consiste no estudo de
padrões de putrescência de organismos, desde a decomposição post-mortem até à ulterior fossilização
(quando ocorre), considerando, de igual modo, todos os fenómenos decorridos
sobre a matéria orgânica no período que é analisado (deslocamento, erosão,
acção de agentes biológicos, etc.). A disciplina e sua denominação foram criadas pelo paleontólogo russo
Ivan Yefremov, que, curiosamente, foi um dos nomes mais importantes e influentes do chamado
“renascimento” da ficção científica soviética, de pendor utópico-comunista [1]:
«I propose for this part of paleontology the name of “taphonomy”, the science of the laws of embedding. I find that this name will best reflect the chief direction of work in this new branch of paleontology».[2]
Procurando, pois, um
padrão de putrescência na prática pré-histórica da calcinação de ossos de
animais – pese a insuficiência de recursos que, de diversas formas, caracterizava
a vida humana nesses pretéritos períodos –, estes materiais orgânicos teriam
sido usados exclusivamente como combustíveis? O certo é que o tutano consistia
numa importante fonte de proteínas, que dificilmente seria desperdiçada; por
conseguinte, se foram usados ossos como combustível – nestes casos, como
espécie de maravalhas de manutenência – como se justifica a generalização desse
emprego, em detrimento do seu consumo?
«É um lugar comum afirmar que os seres humanos derivaram de criaturas semelhantes a macacos. Mas, provavelmente, nem sempre se compreende a magnitude deste processo, a distância evolutiva entre, por um lado, os antepassados comuns dos macacos e dos seres humanos e, por outro lado, os seres humanos. Podemos ter uma noção muito clara sobre o terminus ab quo e o terminus ad quem e temos uma noção razoavelmente clara sobre as características estruturais dos macacos e de alguns dos nossos antepassados mais semelhantes aos macacos. Mas sabemos muito pouco acerca do caminho que foi deles até aos seres humanos. Não é muito difícil registar alguns dos aspectos que distinguem os seres humanos e os animais. Mas, para além dos mecanismos gerais apresentados como as alavancas da mudança, tal como a luta pela sobrevivência ou a sobrevivência do mais apto e a operação selectiva destas condições com base em mutações aleatórias, sabemos muito pouco sobre as condições específicas que transformaram criaturas pré-humanas e mais próximas dos macacos, comunicando sobretudo através de sinais específicos à espécie, em seres humanos cujo meio principal de comunicação é a linguagem. É fácil ignorar o facto de que o uso da linguagem e, num sentido mais amplo, o uso, a manipulação e o armazenamento de um grande número de símbolos pressupõe um equipamento biológico específico.» [3]
Esta
citação do sociólogo alemão Norbert Elias desempenha, aqui, um papel de
consciência: lembra-nos a importância do simbólico na construção da cultura
humana. Hoje, mercê dos avanços neurobiológicos nos campos da biopsicologia e
da ciência comportamental, sabe-se que a distância entre o homem e o animal de
que nos fala a citação de Elias não é um abismo sem ponte: esse espaço, ainda
assim, intransponível, está preenchido por pequenas ilhotas que se erguem,
pontualmente, e sobre as quais é possível ir-se saltando para passar de um lado
ao outro; ou seja, animal e homem continuam apartados, mas mais próximos do que
se pensava há poucas décadas.
O principal contributo para essa distância é oferecido pela capacidade humana do pensamento abstracto, de transplantar o significado de uma coisa em outra. O nascimento da cultura seria impossível sem a formulação incipiente do pensamento simbólico, manancial da linguagem, do respeito pelos mortos e da reverência ao sagrado, pois que serão as línguas e as religiões se não conjuntos de símbolos usados para nos entendermos e para compreender o mundo? Para recriá-lo à nossa imagem.
«What sets humans apart from all other species is not just their numbers, but their capacity for symbolic behavior, and its material expression in terms of structures and artifacts. The evidence for material expression begins with the first stone tools, and grows steadily more complex during the later stages of the Paleolithic period. (…) It is with the appearance of symbolic behavior during the past 100,000 years, however, in the form of burials, personal ornaments, and "art", that we begin to see evidence of fully modern humans that were not only anatomically like ourselves but were also for the first time behaving in ways similar to ourselves» [4]
O
fenómeno dos ossos queimados de animais examinado à luz do pensamento simbólico suscita-me
uma resposta de carácter cultista
(sem distinção entre mágico ou religioso), se bem que «magical beings and magical
things notably include the souls of the dead and everything associated
with death.» [5]
Desde
ossadas e armações de animais usadas como decoração de sepulturas paleolíticas,
passando pelas oferendas de ossos de animais aos mortos, em principal depois do
banquete funéreo realizado pelos membros dessas comunidades, que, cada vez
mais, surge como conceito antropológico-histórico apreciável [6], é evidente que o papel
mágico – apotropaico ou outro – dos ossos de animais ganhou profundidade à
medida que as sociedades pré-históricas foram aperfeiçoando e complexificando os
seus sistemas simbólicos de crenças; desde o animismo mais elementar à criação
de deuses zoomórficos e fantásticas feras teriomórficas. O acto de queimar os seus
ossos também poderá ter sido, seguramente, um acto simbólico, relacionado com
um aspecto cultista.
Na
verdade, a imagem que se me afigura com mais força na mente é a do costume de humilhar
e castigar as relíquias religiosas quando estas (ou a personagem cultista com
elas directamente inventariada) falhava em corresponder às necessidades ou aos
desejos de uma comunidade:
«The relationship between saints in particular and the communities in which their bodies or relics lay was perceived as reciprocal: the saint was the protector and patron of the human community that responded to this protection, and in fact earned the right to it, through the veneration it accorded to the saint»; «The rites of clamor and humiliation are extremely rich in fundamental symbolic juxtapositions and gestures (…)»; «Finally, not only are the relics and other sacred objects humiliated; they are punished.» [7]
Estes
castigos assumiam contornos ritualísticos bem reconhecidos e ensaiados por
clérigos e populares: consistiam, por exemplo, em espalhar espinhos e cinzas
sobre as relíquias, insultá-las e bater-lhes [8]. Esta prática foi
perecendo por finais do século XIII [9], mas ainda hoje, em
determinados contextos, subsiste o hábito de virar as imagens religiosas para a
parede quando as súplicas feitas anteriormente não medraram efeito – são ecos
da consuetudinária e antiquíssima lei da reciprocidade que, como vemos, afectou
profundamente a piedade popular. Escreveu
ainda Geary que «medieval religion was neither magic nor religion in the
modern sense of these terms» [10]. De
facto, este sistema ambíguo, misto entre a religião e a magia, mas sem ser uma
ou outra, com que Geary classifica a espiritualidade medieval, assemelha-se
muitíssimo ao que se conjectura ser a matriz dos primitivos sistemas de crenças [11].
Não
será despiciendo observar uma mecânica da mesma ordem no caso das calcinações
de ossos queimados de animais [12]: uma cerimónia cultista catártica, concertada, é claro, com
preceitos sobrenaturais, relacionados com a observância da natureza ou com sortilégios
de abundância – semeia-se no fogo
aquilo que se quer colher nos dias
seguintes? Ou purifica-se na pira aquilo que se considera contagiado pelo
injusto ou pelo nefasto? Castigo ou esperança? Entre estas duas bitolas, pulsa (ainda?)
toda uma sociedade. Elemento importante, aqui, é o próprio fogo – que, convém
recordar, não foi, de todo, observado à nossa maneira pelas comunidades
primitivas. Durante muitíssimo tempo, o fogo foi uma entidade:
«Fire rivals breath as imagery for life. When we die, the fire of life goes out. Our ancestors who first tamed it probably thought fire a living thing, a god even. Staring into flames or embers, especially at night when the campfire warmed and protected them, did they commune in imagination with a glowing, dancing soul? Fire stays alive as long as you feed it. Fire breathes air; you can suffocate it by cutting off its oxygen supply, you can drown it with water. Wild fire devours the forest, driving animal prey before it with the speed and ruthlessness of a pack of wolves in (literally) hot pursuit. As with wolves, our ancestors could capture a fire cub as a useful pet, tame it, feed it regularly and clear away its ashy excreta. Perhaps a live scion of the home fire was carried in a pot for barter to a neighbouring group whose own fire had unfortunately died.» [13]
Mas
o fogo, notadamente, também fala. A sua voz são as sombras projectadas nas
paredes de pedra; uma voz simbólica que contava estranhas histórias, desde que
os ouvintes a alimentassem. Assim, essa dieta de ossos é, no fundo, uma dieta de sombras: entre o alimento do
fogo e o seu umbroso discurso tem de existir uma correlação, uma proximidade, que, para a psique pré-histórica,
faria todo o sentido.
Infelizmente para
nós, exegetas contemporâneos, «human prehistory is an almost unimaginably vast
period, and it is easy for the dead to go missing.» [14]
[1] STABLEFORD, Brian; GAKOV, Vladimir,
“Yefremov, Ivan (Antonovich) (1907-1972)”, in CLUTE,
John.; NICHOLS, Peter. (eds.), The Encyclopedia
of Science Fiction, Londres,
Orbit, 1993, p. 1358.
[2] YEFREMOV, Ivan, "Taphonomy:
a new branch of paleontology", The Pan-American
Geologist, vol. 74,
nº1, Des Moines, Geological Pub. Co., 1940, pp. 81-93.
[3] ELIAS,
Norbert, Teoria Simbólica, Oeiras, Celta
Editora, 2002, p. 46. Sublinhado meu. A partir daqui, todos os sublinhados são meus.
[4] SCARRE, Chris,
“Introduction: the study of the human past”, in IDEM (ed.), The Human Past. World Prehistory & the
Development of Human Societies, Londres, Thames & Hudson, Ltd., 2003,
pp. 42-43.
[5] MAUSS, Marcel,
A General Theory of Magic, Abingdon,
Routledge, 2006, p. 147.
[6] «La
aparición de restos faunísticos en las sepulturas argáricas supone que, como
parte de ritual funerario, se procedió al sacrificio de bóvidos y ovicápridos,
fundamentalmente en edades jóvenes de los que una parte, habitualmente los
extremos distales, fueron introducidos en las tumbas. El resto de la
especie o especies sacrificadas serían consumidas como parte de los rituales
de comensalidad asociados a la muerte.» JIMÉNEZ, G. A.; GUERRERO,
J. A. E., “Ritual funerario y comensalidad en las sociedades de la edad del
bronce del sureste peninsular: la cultura de el argar”, Trabajos de Prehistoria, vol. 63, nº2, Madrid, Instituto de
Historia-Centro de Ciencias Humanas y Sociales, 2006, p. 129.
[7] GEARY, Patrick J., Living with the Dead in the Middle Ages,
Ithaca, Cornell University Press, 1994, pp. 95, 97, 105.
[8] «Sometimes a relic was ‘humiliated’ only in a minor fashion – taken
out of the reliquary at night, to the accompaniment of lamentations and psalms
of woe, before being replaced in the shrine the next morning. At other times,
when more important issues were at stake, the ritual humiliation was a great
public act. Thorns, sackcloth, briars and ashes could be laid on the saint’s
bones.» BENTLEY, James, Restless Bones:
The Story of Relics, Londres, Constable and Company Limited, 1985, pp.
73-74.
[9] GEARY, op. cit., p. 115.
[10] IDEM, ibidem, p. 124.
[11] Como exemplo paradigmático ler CAUVIN,
Jacques, The Birth
of the Gods and the Origins of Agriculture, Cambridge,
Cambridge University Press, 2000.
[12] «Natural conditions will regularly carbonise bones but will rarely
calcine them. When large proportions of the surface area of a bone are
calcined, one can safely infer (anthropogenic) prolonged fires under high
temperatures.» DAVID, B., “How was this bone burnt?”, in SOLOMON, Su; DAVIDSON, Iain; WATSON,
Di (eds.), Problem
Solving in Taphonomy: Archaeological and Paleontological Studies from Europe,
Africa and Oceania, vol. 2, St. Lucia, Anthropology Museum-University of
Queensland, 1990, p. 75.
[13] DAWKINS, Richard, The
Ancestor’s Tale: a Pilgrimage to the Dawn of Evolution, Nova Iorque, Houghton Mifflin
Company, 2004, p. 562.
[14] TAYLOR, Tim, The Buried Soul. How Humans Invented Death,
Londres, Fourth State, 2002, p. 22.