3 – O regresso do extravagante
Barroco,
o neologismo de Orta, difundiu-se pela res
publica letrada e científica, mercê do fulgurante êxito dos Colóquios […]; em finais de 1564, o
físico e botânico flamengo Carolus Clusius adquire um exemplar em Lisboa e
traduz o texto para latim, imprimindo-o três anos depois em Antuérpia, na
tipografia do humanista francês Christophe Plantin: intitula-o Aromatum et simplicium aliquot
medicamentorum apud Indios nascentium historia – e na esteira desse best-seller aparecerão rapidamente outras
edições, em castelhano, italiano e francês.
Com efeito, no último quartel de
Seiscentos, o Dictionaire universel […]
do lexicógrafo francês Antoine Furetière (publicado postumamente em 1690, dois
anos depois da morte do autor) estabelece a acepção ortaiana da palavra na
redacção desta entrada: «BAROQUE. Terme de Joiialillier, qui ne se dit que des
perles qui sont pas parfaitement rondes.» Quatro anos depois, o significado
conserva-se, pois a primeira edição completa do canónico Le Dictionnaire de
l'Académie françoise dedié au Roy contém
um verbete muito parecido: ««BAROQUE. Adj. Se dit seulement des perles
qui sont d’une rondeur fort imparfaite. Un
collier de perles baroques.» Aliás, o mesmo texto é reproduzido verbatim na segunda edição do
dicionário, o Nouveau Dictionnaire de l’Académie françoise dedié au Roy, publicado em 1718. Porém, no ano de
1740, na terceira edição do dicionário, de título abreviado para Dictionnaire
de l’Académie françoise, pode ler-se o seguinte: «BAROQUE. Adj. Terme qui n’a d’usage qu’en
parlant. Des perles qui sont d’une rondeur fort imparfaite. Un collier
de perles baroques. BAROQUE, se dit aussi au figuré, pour Irrégulier, Bizarre, Inégal.
Un esprit baroque. Une expression baroque. Une figure baroque.» [Sublinhado meu.] Ou
seja: é inventariado pela primeira vez o sinónimo alegórico de barroco, enquanto coisa
extravagante, fora do normal.
É um significado que, por via autónoma,
reconquista o sentido da “ausência de harmonia” que Montaigne aplicara na sua
crítica aos escolásticos [ver Parte I]. Que terá sucedido entre 1718 e 1740
para, em França, a interpretação da palavra barroco se ter transformado? A resposta é simples: um quinquagenário professor
de música francês começou a compor tragédias musicais.
4 – O excessivo senhor Rameau
Em 1722, Jean-Philippe Rameau
publicou um pioneiro livro de ciência musical intitulado Traité
de l'harmonie, ápice de uma
longa carreira como teórico musical: nesse trabalho, o autor pensava ter
encontrado uma espécie de “lei natural” da música – tropo que, acrescente-se, começava
ser um indelével ingrediente do espírito “matematizante” desse dealbar de
Setecentos, pois que outra coisa não eram os recentes livros de John Locke e
Isaac Newton senão tentativas de encontrar leis naturais – repetíveis e universalmente
aplicáveis – nos seus respectivos campos de estudo? Em poucas décadas
seguir-se-iam, subordinados ao mesmo objectivo, os livros de Adam Smith, David
Hume e Jean-Jacques Rousseau – este último, adversário de Rameau nas ideias e
nos gostos musicais, como veremos. O acolhimento positivo dado ao singular tratado
inspirou Rameau a escrever outro, publicado quatro anos depois, com um título
mais programático: Nouveau système de musique théorique – considero que
não é acidental o facto de a harmonia estar ausente no novo título e ser
substituída por um novo sistema. É que a música que Rameau irá compor e
apresentar ao público será radicalmente diferente.
Na verdade,
Rameau só se estabeleceu em Paris aos quarenta anos de idade e envolto num
certo noli me tangere de provinciano, trazendo uma reputação de
instrumentista competente, é certo, mas nada que se guindasse ao génio; ele foi,
aliás, um retrato inverso do prodígio que irrompe na infância, à guisa de um
Mozart – até exasperou os mestres jesuítas do seu colégio em Dijon, no coração
da Borgonha, por culpa da fraca aptidão para o estudo. Dz-se que passava as
aulas a cantarolar tolas melodias que inventava… Há, de facto, organismos raros
que passam por um período dilatado de estádio larvar; constantemente
consumindo, ruminando, aguardando, para, no final, às vezes já muito distantes
do fulgor fisico da juventude, romperem o casulo de modo esmagador.
Foi isso,
precisamente, que ocorreu a Rameau no dia 1 de Outubro de 1733, com a estreia
na Académie Royale de Musique, em Paris, da sua primeira ópera Hippolyte et
Aricie: tragédia musical em cinco actos com libreto de Simon-Joseph
Pellegrin (adaptação parcial da obra poética Phèdre, de Jean Racine,
publicada em 1677). Até esse momento, pouquíssimo – nada – na vida musical de
Rameau preparara o público parisiense para a polifónica complexidade e
intensidade dramática dessa ópera inicática. Rapidamente, se criou um septo
entre as massas agitadas, num lado com admiradores fervorosos de Rameau e o
outro eivado de ferinos detractores: estes, apelidados de Lullistes,
partidários do compositor Jean-Baptiste Lully (antigo colaborador de Molière) e
do estilo de tragédie en musique por ele desenvolvido, caracterizado
pela chamada “abertura à francesa” (admirada e glosada por Bach e Handel, por
exemplo); e os outros, imediatamente denominados de Ramoneurs – palavra
francesa que significa limpa-chaminés e apensa a este fim específico em
virtude da homofonia com o apelido Rameau. Só em meados de Setecentos,
Rameau principiou a ser valorizado, tornando-se, inclusive, compositor da corte,
adoptando a partir daí o título de Compositeur de la chambre du roy. Não
obstante, em 1733 e nos anos que depressa se seguiram não era fácil
prognosticar esse triunfo e Rameau, do alto dos seus cinquenta anos, poderia
facilmente ter-se dobrado às críticas e permanecido um obscuro teorista
musical, hoje talvez totalmente desconhecido.
5 - A invenção do Barroco
Aos nossos
ouvidos contemporâneos, Hippolyte et Aricie não parece, de facto, tão
diferente assim dos trabalhos de Lully, embora já apresente determinados elementos
que Rameau consolidará numa identidade própria em óperas posteriores – por
exemplo, Les fêtes d’Hébé, ou Les Talents lyriques, de 1739, Dardanus,
também de 1739, e Zoroastre, de 1749 – como o abandono total de um
prólogo à francesa (em Zoroastre) e a tónica colocada no carácter
dramático, “narrativo”, da representação, prefigurando a revolução realizada em
1767 por Gluck e Calzabigi com a versão original, em italiano, de Alceste,
que no meu entender é já uma ópera proto-romântica. A abertura de Les fêtes
d’Hébé […] afasta-se da matriz lullista, elevando-se até à quase
dissonância – um tipo de dissonância ainda harmónica quando comparada com o paradigma
contemporâneo, mas antecipando o tipo de difonia que, num registo diferente,
telúrico, tenebroso, distinguirá a ópera Tristan und Isolde de Wagner
(1865). Sobretudo, a primeira ópera de Rameau é um caleidoscópio de conceitos, riffs
e matizes que, às tantas, não podia deixar de confundir a assistência – e os
próprios músicos.
Prova disso é a
crítica impressa na edição de Outubro de 1733 da gazeta literária Mercure de
France, publicação que datava desde 1672 e que é uma das melhores varas de
vedor para se detectar as pulsões desta sociedade francesa de finais de
Seiscentos e inícios de Setecentos. Nesse texto, o crítico escreveu o seguinte:
«On a trouvé
la Musique de cet Opéra un peu difficile à executer, mais par l’habileté
des Simphonistes et des autres Musiciens, la difficulté n’en a pas empêché
l’exécution. (…)» [sublinhados meus]. É tentador cotejar esta crítica com o
que diz outro texto, também publicado no Mercure de France, mas na edição de Maio de
1734; nessas páginas, sob o título “Lettre de M. *** à Mlle. *** sur l’Origin
de la Musique”, um autor anónimo diz o seguinte: «(…) toujours de la tristesse
au lieu de tendresse, le singulier étoit du barocque, la fureurdu
tintamare [algaraviada, assuada]; au lieu de gayeté, du turbulant, et jamais de
gentillesse, ni rien qui put aller au couer; (…)» [sublinhado meu].
Para mim não é
claro que este texto de 1734 se cifre numa crítica directa à música de Hippolyte
et Aricie, chamando-lhe barroca, como alguns autores vêem, pois nem
ela, nem o seu compositor são chamados à colação numa redacção bastante
ambígua. Todavia, é verosímil que, aqui, o emprego de barroco enquanto desqualificativo
que carrega o significado de desarmónico se relacione com a estreia em 1733 da
obra inaugural de Rameau e com o impacto provocado pela sua música estimada
difícil e excessiva por parte do público e pela crítica.
Mais importante
é a revelação que esta é, provavelmente, a primeira vez que a palavra barroco
aparece publicada enquanto adjectivo (pejorativo) de uma obra artística – neste
caso, uma ópera. E sabemos que é assim, porque podemos ler também no Mercure
de France, na edição de Junho de 1728, uma adivinha em verso, intitulada
“Enigme (de A. B. C.)”, em que a palavra baroque aparece no sentido de “forma
imperfeita”, que é o sentido que circulava na altura e que era registado nos
dicionários: «(…) a
l'étranger je dois mon nom, / comme ma baroque figure (…)»
[sublinhado meu]. Novamente no Mercure de France, essa montra de
mentalidades de uma comunidade francesa em mudança, a palavra barroco,
enquanto depreciativo musical, continua a fazer escola: no primeiro tomo da
edição de Junho de 1738, lê-se «(…) et s’y défait du peu que la Musique
Italienne peur avoir de baroque, surtour à nos oreilles, a
contrebalance le Clerc en France (…)». Só posso concluir que a estreia de
Rameau em 1733 como compositor de óperas consistiu numa micro-revolução
epistemológica, porque entendo que foi a partir desse momento no tempo que
começou a materializar-se na mente do público o nítido nominalizante de uma nova
linguagem artística, que na música – mas não só – parecia pugnar pelo excesso,
pela desarmonia; em suma, pelo rompimento do cânone classicista. Pela primeira
vez existe um nome para denominar essas múltiplas aportações de uma nova
realidade artística que radicam nas quinhentistas determinações tridentinas fluindo
na música francesa do segundo quartel de Setecentos. Dir-se-á que é do estilo barroco.
É isso mesmo que fará o
conservador Jean-Baptiste Rousseau, numa carta que escreve a 17 de Novembro de
1739 a Louis Racine, filho de Jean Racine, o autor de Phèdre, a obra em verso parcialmente adaptada por Rameau e Pellegrin em 1733.
Nessa composição, redige um verrinoso poema em que ataca Rameau indirectamente:
«Distillateurs d’accords baroques. / Dont tant d’idiots sont férus, / Chez
les Thraces et les Iroques / Portez vos óperas bourrus. / Malgré votre art
étérogène / Lulli de la lyrique scène / Est toujours l’unique soutien. / Fuyes,
laissêz-luis son partage, / Et n’écorchez pas davantage / Les oreiiles des gens
de bien.» [Sublinhado meu.] Este poema também não é uma crítica à ópera Dardanus de Rameau, como alguns autores vêem, porque a carta data de 17 de
Novembro de 1739 e a ópera estreou em Paris dois dias depois, logo Jean-Baptiste
Rousseau não a poderia ter ouvido – é, evidentemente, uma crítica a Hippolyte
et Aricie, já que o destinatário da
missiva é o filho do poeta cuja obra estava agora associada a uma ópera que ambos
consideravam desprezível.
Assim, torna-se mais claro o
caminho que levou a que a palavra barroco fosse mimoseada
em 1740 na terceira edição do Dictionaire de l’Académie françoise com o significado novo de coisa irregular, bizarra, desarmoniosa – em
espírito, em expressão e em figura.
6 - Aqui jaz o deus da harmonia
Outro Rousseau, mas chamado
Jean-Jacques, tão revolucionário quanto o Jean-Baptiste era tradicionalista,
também criou um dicionário – de música – em que não deixou de censurar o estilo
pelo qual era cógnito o compositor de que desgostava: pode ler-se no seu Dictionnaire de
Musique, de 1768, «BAROQUE: Une
Musique Baroque est celle dont l’Harmonie est confuse, chargée de
Modulations & de Dissonnances, le Chant dur & peu naturel, l’Intonation
difficile, & le Mouvement contraint. Il y bien de l’apparence que ce
terme vient du Baroco des Logiciens.» [Sublinhados meus.] Afasta-se do âmbito
desta análise discorrer sobre as facções musicais que Rameau e Rousseau
representavam (questão que explodiu na chamada Querelle des bouffons, em meados de Setecentos, com a representação
em Paris no ano de 1752 da opera buffa
de Pergolesi La serva padrona), mas
pode resumir-se deste modo: para Rousseau, a música de Rameau era a música da
desordem, do irracional, da hipérbole, elementos disruptivos que obstaculizavam
a “boa razão”, a ortogonalidade e matematização do tal pensamento das leis
naturais repetíveis e universais, a parcimónia do homem civilizado em contraste
com a conduta desbragada de um bárbaro. Não é diferente da crítica que farão depois
os adversários dos românticos, defensores de valores caros ao classicismo.
No final do século XVIII,
a definição de barroco como antítese do classicismo – na música, nas letras e
em todas as artes – está plenamente estabelecida. No célebre Dizionario delle belle arti del disegno […],
de 1797, publicado pelo historiador de arte italiano Francesco Milizia, campeão
do neo-classicismo e incansável adversário de estilos artísticos considerados “barrocos”,
pode ler-se «BAROCCO è il superlativo del bizzarro, l’ eccesso del
ridicolo . Borromini diede in delirj, ma Guarini , Pozzi , Marchione nella
Sangrestia de S. Pietro ec. in barocco.» [Sublinhados meus.]
É vertiginoso pensar que,
apesar de tudo, Rameau participou do espírito positivista nos seus tratados de
ciência musical – e que o indefectível Mercure
de France, um ano depois da sua morte, o recordava ainda com este epitáfio publicado
no primeiro tomo de Abril de 1765: «Pour l’épitaphe de Rameau / Chacun exerce
son génie : / Un vers suffit : dans ce tombeau / Cy gît le Dieu de l’harmonie.»