sexta-feira, 24 de outubro de 2008

From cat to (cash) cow

«Que influência pode um animal ter?» Esta é a pergunta para a qual o livro Dewey, o Gato Que Comoveu o Mundo tem a resposta.
Não conhecia Dewey e a sua história. A primeira vez que vi este gato, de olhar melífluo, foi num dos posters de divulgação da edição portuguesa do livro escrito por Vicki Myron, publicado pela Editora Leya, que se encontram espalhados pelo centro de Lisboa. Não tenho vergonha nenhuma em admitir que fiquei logo com vontade de agarrar no gato e andar com ele ao colo – sempre existem bons técnicos de marketing… Com esse aviso em mente, achei que seria melhor saber mais coisas sobre a criatura, antes de me dispor a ficar cheio de pulgas, e desvendar o significado do título da biografia dela.
Afinal de contas, o que é que Dewey poderia ter feito para comover o mundo?
Teria doado medula óssea a um dono em necessidade?
Descobri que se tratou de um gato abandonado na caixa de devolução de livros de uma biblioteca pública na cidade norte-americana de Spencer, no estado do Iowa; adoptado pela bibliotecária que o encontrou, a já citada Vicki Myron, o tareco tornou-se no tóteme da comunidade (qual anjo benfazejo, à la Michael Landon na mítica série Highway to Heaven), insuflando de amor os corações dos indivíduos que comungavam com ele: incluindo dois sem-abrigo que se deslocavam diariamente à biblioteca para conversar com ele durante vinte minutos. Também operou o “Milagre da Literacia” (© Dewey) porque, de acordo com as fontes que consultei sobre a vida de Dewey (como esta notícia, de onde extirpei a informação sobre os tais dois sem-abrigo), os números de utentes da biblioteca em Spencer passaram de uns famélicos sessenta mil para cem mil: o que é mais extraordinário é que isso ocorreu num período de crise económica – que, como podemos decalcar de exemplos do passado, são temporadas hostis à divulgação da cultura.
Ontem compreendi a sincronicidade que consistiu na minha descoberta da história de Dewey.
À tarde, desloquei-me à biblioteca pública Orlando Ribeiro, em Telheiras, para assistir a uma mesa redonda sobre questões relacionadas com a edição de banda desenhada em Portugal e o modo como as bibliotecas podem ser instituições úteis na sua promoção; a conversa entre diversas pessoalidades do círculo bedéfilo português, interessante que foi, terminou sem se ter chegado a conclusões consensuais. Ainda deve ser precisa mais maturação de raciocínio para perceber qual o modo mais elegante de mostrar aos potenciais leitores as vantagens que a prática da leitura – mesmo de BD, acreditem – lhes poderão facultar, não é? Hum... Talvez não.
Na realidade, não é preciso argumentar com os leitores em potência sobre os poderes libertários do conhecimento adquirido pela leitura. Era só o que faltava!...
Nem sequer dar-lhes a entender que ler pode ser divertido. O quê? Até o Diabo se ria.
Basta que cada biblioteca de Lisboa adopte um gato parecido com Dewey: a acreditar no exemplo da cidade de Spencer, o número de leitores aumentará num ápice. (Não se esqueçam que, tal como os habitantes do Iowa, também atravessamos um período de crise económica: tempo em que se costuma, enfim, caçar com gato.)

Dewey puxa do cachimbo e relata as memórias à dona adoptiva e futura biógrafa:
«Cabrita, hoje vou-te falar de...»

Não me interpretem mal: eu sou uma cat person. Adoro gatos e confesso que a foto de Dewey me deu vontade de ir procurar o livro. Mas… Milhões de livros vendidos no mundo inteiro sobre um gato vadio que, sabe-se lá como, caiu no goto de uma cidade inteira? Equipas de jornalistas que viajaram milhares de quilómetros, desde a Europa e o Japão, para ouvir essa história in loco? Perdemos o juízo? De vez?



Ia concluir este artigo com a argumentação que 1) este episódio é mais uma manifestação da crescente infantilização da sociedade ocidental, 2) que é uma demonstração cabal do modo como a nossa pieguice pode ser manipulada para se vender seja o que for, 3) que existem milhões de gatos iguais ao Dewey, e outros muito mais giros, a procurar alimento nos caixotes do lixo de todas as cidades, mas acho que não vale a pena.

Vá… Vão lá comprar o livro do Dewey, pronto.
Pelo menos, leiam-no.