(O ensaio que se segue foi escrito em 2005, a convite da Bedeteca de Lisboa, para integrar o catálogo da exposição de banda desenhada e ilustração Salão Lisboa 2005, que, nessa edição, teve como tema o fenómeno da Entropia.)
O universo cabotino
Nos meus momentos mais delirantes penso que o próprio universo é uma estrela pop e nós, pobres criaturas, somos elementos que conformam o clube de fãs dele, enfeitiçados pelo magnetismo da unidade do seu eu.
A vida é a obra de arte do Todo, e, como todas as obras de arte, ganhou uma dimensionalidade insciente às intenções do "criador". Proteínas animadas por um fenómeno de natureza eléctrica, tornadas células e amoldadas em organismos que emergiram do mar para fumar às escondidas do Pai, acabaram por desenvolver mãos desembaraçadas o bastante para embaraçar tudo em seu redor. Pensem em nós, eucariotas, como personagens secundárias, associadas a um drama interpretado por um único actor principal. Os nossos papéis resumem-se a ideias irresolvidas, infinitamente, e é fácil compreender a razão pela qual complicar assuntos é o lema da família: porque queremos influir significados nas coisas.
O cosmos sofre de um death wish e a sua agenda autista esconde um plano megalomaníaco, digno de uma personagem de Shakespeare: terminar a actuação com um grande rasgo! Na sua ambição, o universo é demasiado gigante para caminhar para a entropia.
Essa desordem destruidora, mas de pechisbeque, está reservada para nós, underdogs.
Enter entropia
O que é a entropia?
O étimo desse substantivo é o vocábulo grego entrope, que siginifica mudança. A menção a Shakespeare não foi inocente, porque desconhecer a segunda lei da termodinâmica é o equivalente científico à ignorância sobre a existência desse escritor nos círculos literários.
Cunhada em 1865, pelo físico Rudolf Clausius, a entropia é vulgarmente definida como uma grandeza física que expressa o estado de qualquer sistema termodinâmico reversível. É a razão entre a variação da quantidade de calor nessa espécie de sistemas e a temperatura absoluta à qual se operou a mudança. Em síntese, podemos aceitar a significação de que a segunda lei da termodinâmica expressa que a entropia total de um sistema fechado aumenta sempre. Mas o que é um sistema fechado? Se fecharmos os olhos à troca de energia que pactua com o Sol, o nosso planeta pode ser observado como sendo um sistema fechado na grandeza do universo; provavelmente, trata-se do único exemplo credível de um sistema dessa natureza porque, na prática, um verdadeiro sistema fechado, que não troque energia e matéria com o espaço que lhe é vizinho, não existe. Por seu mérito, estabeleceu-se que o valor de uma grandeza física associada a um sistema fechado permanece imutável ao longo da evolução temporal desse sistema, desde que ele não invista numa cooperação com outro.
É esta adiabaticidade que vem à memória quando se contempla o problema da velocidade da luz, constante de acordo com Einstein, mas variável segundo João Magueijo que no livro Mais Rápido Que a Luz coloca a hipótese dela ter sido maior no início da formação do universo.
Esta premissa, alcunhada de Teoria da Velocidade da Luz Variável, apresenta soluções para três paradoxos pertencentes às especulações académicas sobre a origem do cosmos: a homogeneidade do universo; a sua morfologia; e a força gravitacional.
O primeiro paradoxo apresentado relaciona-se com a teoria da expansão do universo, desde o primeiro momento, após o Big Bang, até este preciso momento. Se a velocidade da luz é constante, o que obrigaria a pensar no universo como sendo um espaço adiabático, no qual é impossível intercambiar energia com o exterior (imperativo para que a velocidade da luz se atrasasse), a homogeneidade do cosmos não é uma hipótese correcta porque as zonas limítrofes do seu crescimento ainda não foram iluminadas; não em virtude dessas fronteiras se deslocarem a uma velocidade superior à da luz — o que é fisicamente impossível —, mas pela condição de criarem vácuo entre elas a uma velocidade superlativa.
Ou seja: múltiplas regiões do cosmos estão às escuras em prejuízo de outras, derrubando a ideia de um universo isotrópico? Contudo, se a velocidade da luz não é constante, e foi superior à velocidade de inflação do universo no início da "criação", todas as áreas poderão estar em contacto.
Novíssimas descobertas sobre um novo tipo de energia chamada energia escura obrigam a pensar sobre o fim de todas as coisas de outra maneira. Um epíteto que parece decalcado de um episódio da série televisiva The Outer Limits, mas que é muito importante para, mais à frente, expor a ideia principal que conduz este ensaio.
Black nº 1
O físico alemão Christiaan Huygens, nascido e falecido no século XVII, foi o primeiro cientista a colocar a hipótese de que o espaço não é vazio. De acordo com a sua intuição, o universo encontrava-se preenchido com um médium chamado éter luminoso, fluente inspirado pelo aeter que os gregos da idade clássica imaginavam ser o constituinte das estrelas. No final da segunda metade do século XIX, foram as célebres experiências de Abraham Michelson e Edward Morley sobre a velocidade da luz que influenciaram a comunidade científica a observar o fenómeno desse fluido com algumas reservas e a duvidar da sua veracidade. Porém, apenas no século XX a existência do éter foi sendo lentamente rasurada a partir da publicação da teoria da relatividade de Einstein. Não obstante a falsidade do conceito de éter, o astrónomo suíço Fritz Zwicky descobriu, em 1933, a presença de uma matéria náufraga na imensidão do cosmos: a matéria escura.
Superior em quantidade à matéria comum numa relação de 10 para 1 (o que significa, aproximadamente, que 90% dos constituintes de uma galáxia são invisíveis), a matéria escura pode ser entendida como o equivalente científico da Qliphoth da mitologia cabalística hebraica: essa matéria negra e densa, antagonista da vida, com a qual a sefira Daäth é constituida.
Aleister Crowley definiu essa substância como sendo excrementos das ideias e no livro The Golden Dawn, um manual sobre essa sociedade hermética inglesa escrito por Israel Regardie, antigo aluno do Mestre Therion, Qliphoth é mencionada sob a designação de matéria escura; ou conchas dos mortos. Transcrevo a explicação oferecida por Bill Whitcomb em The Magician’s Companion:
De todas as partículas infinitesimais que constituem a matéria escura as mais conhecidas serão certamente os neutrinos, que atravessam o espaço vazio nos nossos corpos a toda a hora, mas existem outras, mais insondáveis ainda, como axiomas ou neutralinos. Seguramente, a matéria escura é confusa o suficiente para desafiar catalogações, todavia a energia escura é muito mais misteriosa.
No início dos anos 90, estudos astronómicos sobre a formação de supernovas levaram à conclusão de que a expansão do universo está a acelerar, invês de abrandar, o que contraria de maneira directa a teoria da gravidade. Ao agente responsável por essa força de aceleração chamou-se energia escura.
É uma força que preenche todo o universo, inferindo pressões negativas descomunais. O efeito que essas pressões violentíssimas, agindo no sentido inverso ao da gravidade, irão influir será o grande rasgo que citei no início: o universo vai rasgar-se pelas costuras num prazo estimado entre 100 a 300 biliões de anos.
Um bilião de anos antes da catástrofe as galáxias estarão tão afastadas umas das outras que não poderão ser observadas através de um telescópio. O acto final da peça será exibido para uma sala vazia, pois é improvável que a vida na Terra sobreviva à morte do Sol; mesmo assim, se precisávamos de uma única razão para aceitar o facto de que somos personagens secundárias neste teatro imaginado para o universo brilhar é esta.
Enter Antropia
Talvez o conceito de entropia, no sentido da crescente desordem num determinado sistema reversível, não faça sentido quando se pensa no universo... O mesmo não se pode dizer da entropia presente nas actividades dos organismos - e, em particular, na vida humana. Nós somos viciados em entropia e não conseguimos realizar as tarefas mais simples sem as transformar em casos federais.
Vou expor algumas considerações sobre o fenómeno entrópico nas nossas relações com indivíduos e coisas, mas usarei um neologismo cunhado por mim para diferenciar esta entropia "humanista" daquela que alude, em exclusivo, à física: vou chamar-lhe antropia (anthropos + entrope) e servir-me dela para nominar fenomenologias desta espécie nos campos sociais, filosóficos ou metafísicos.
Apresento-vos a história Cão Capacho Bósnio, de Max Anderson e Lass Sjunnesson, uma banda desenhada que usarei como blueprint para a maioria dos meus argumentos e que foi publicada no número seis da revista Quadrado, uma edição da Bedeteca de Lisboa.
Esta pequena história tem início num portentoso pavilhão, no qual se procede a uma cerimónia de entrega de prémios de banda desenhada no âmbito de um festival. Max Anderson surge como principal protagonista entre a multidão de figurantes. O leitor compreende desde o início que a ambiência de afastamento de perigo que se experimenta no interior do salão possui qualquer coisa de artificial e é precisamente no momento em que uma quadrilha de aviões militares sobrevoa o edifício que Max (chamemos-lhe Max 2, posto que o 1 é o autor da banda desenhada) é chamado para atender um misterioso telefonema.
A voz que comunica com Max é a de Stefan Skeldar, um antigo colega de universidade que ele usara como imagem para uma personagem numa banda desenhada satírica. Skeldar exige uma recompensa pelo uso do nome e Anderson coagido pelo seu contacto e acompanhado pelos amigos abandona o salão para se encontrar com ele. Concentrado em volta do ponto de encontro acertado ao telefone, o grupo é imediatamente atacado por um bando de guerrilheiros que conduz uma carrinha de gelados. O acidente não deixa feridos e dá-lhes oportunidade para acharem o diário de Skeldar, oculto numa papeleira, assim como uma enigmática granada encriptada que os renegados deixaram cair.
Assumam que o interior do salão é um fluido meta-estável, o que significa que tem a faculdade de conservar as suas propriedades físicas originais infinitamente até ser perturbado por qualquer reacção imprevista. Pensem na água meta-estável que se mantém líquida muitos graus abaixo do ponto de refrigeração até que um dos seus átomos toma acidentalmente uma posição diferente na formatura do conjunto e dá início a uma espécie de efeito de dominó que termina com a instantânea congelação do fluido. Neste exemplo, a chegada dos aviões militares ocupa o papel dessa mudança revolucionária e a partir daí tudo o que tem lugar no interior do salão é transformado: Max recebe o telefonema e emociona-se; alguns dos convidados quebram a imobilidade e levantam-se dos seus lugares para passear pelo recinto ou para falar com pessoas sentadas noutras mesas. A mudança introduzida foi tão violenta como um qualquer choque de partículas.
O enredo volta a complicar-se com a descoberta do diário de Skeldar e a granada. Mas porquê essa confusão? Por que motivo não pode Max esquecer o telefonema e retornar à cerimónia? É que a civilidade festiva para que foi convidado desapareceu. Na verdade, Max 2 desapareceu e quem nós iremos acompanhar daqui em diante é Max 3, que não está interessado em contactar Skeldar e só pensa em chegar a Sarajevo, inspirado pela imagem que se encontra gravada na superfície da granada. Vale a pena citar Philip Ball, que escreveu no seu livro Critical Mass: How One Thing Leads To Another:
Volto a citar Ball para comentar a crescente desordem vivida pelas personagens depois da saída do edifício:
Então e a antropia? Por que razões indíviduos se comportam como átomos de tinta mergulhados em água? Simplesmente porque também se encontram imergidos em elementos alienígenas: os media, a cultura e, no caso das figuras públicas, a fama.
Todos estes novos e enérgicos elementos exercem acções de várias ordens nas nossas pessoalidades, influenciando movimentos e escolhas, prestigiando umas condutas em prejuízo de outras.
(Continua.)
O universo cabotino
Nós somos poeira estelar animada.
Descendentes adolescentes da matéria cósmica.
Howard Bloom, Global Brain
Descendentes adolescentes da matéria cósmica.
Howard Bloom, Global Brain
Nos meus momentos mais delirantes penso que o próprio universo é uma estrela pop e nós, pobres criaturas, somos elementos que conformam o clube de fãs dele, enfeitiçados pelo magnetismo da unidade do seu eu.
A vida é a obra de arte do Todo, e, como todas as obras de arte, ganhou uma dimensionalidade insciente às intenções do "criador". Proteínas animadas por um fenómeno de natureza eléctrica, tornadas células e amoldadas em organismos que emergiram do mar para fumar às escondidas do Pai, acabaram por desenvolver mãos desembaraçadas o bastante para embaraçar tudo em seu redor. Pensem em nós, eucariotas, como personagens secundárias, associadas a um drama interpretado por um único actor principal. Os nossos papéis resumem-se a ideias irresolvidas, infinitamente, e é fácil compreender a razão pela qual complicar assuntos é o lema da família: porque queremos influir significados nas coisas.
O cosmos sofre de um death wish e a sua agenda autista esconde um plano megalomaníaco, digno de uma personagem de Shakespeare: terminar a actuação com um grande rasgo! Na sua ambição, o universo é demasiado gigante para caminhar para a entropia.
Essa desordem destruidora, mas de pechisbeque, está reservada para nós, underdogs.
Enter entropia
E de uma forma que eu achei extremamente confusa,
ele começou a falar sobre uma coisa chamada entropia.
Thomas Pynchon, The Crying of Lot 49
ele começou a falar sobre uma coisa chamada entropia.
Thomas Pynchon, The Crying of Lot 49
O que é a entropia?
O étimo desse substantivo é o vocábulo grego entrope, que siginifica mudança. A menção a Shakespeare não foi inocente, porque desconhecer a segunda lei da termodinâmica é o equivalente científico à ignorância sobre a existência desse escritor nos círculos literários.
Cunhada em 1865, pelo físico Rudolf Clausius, a entropia é vulgarmente definida como uma grandeza física que expressa o estado de qualquer sistema termodinâmico reversível. É a razão entre a variação da quantidade de calor nessa espécie de sistemas e a temperatura absoluta à qual se operou a mudança. Em síntese, podemos aceitar a significação de que a segunda lei da termodinâmica expressa que a entropia total de um sistema fechado aumenta sempre. Mas o que é um sistema fechado? Se fecharmos os olhos à troca de energia que pactua com o Sol, o nosso planeta pode ser observado como sendo um sistema fechado na grandeza do universo; provavelmente, trata-se do único exemplo credível de um sistema dessa natureza porque, na prática, um verdadeiro sistema fechado, que não troque energia e matéria com o espaço que lhe é vizinho, não existe. Por seu mérito, estabeleceu-se que o valor de uma grandeza física associada a um sistema fechado permanece imutável ao longo da evolução temporal desse sistema, desde que ele não invista numa cooperação com outro.
É esta adiabaticidade que vem à memória quando se contempla o problema da velocidade da luz, constante de acordo com Einstein, mas variável segundo João Magueijo que no livro Mais Rápido Que a Luz coloca a hipótese dela ter sido maior no início da formação do universo.
Esta premissa, alcunhada de Teoria da Velocidade da Luz Variável, apresenta soluções para três paradoxos pertencentes às especulações académicas sobre a origem do cosmos: a homogeneidade do universo; a sua morfologia; e a força gravitacional.
O primeiro paradoxo apresentado relaciona-se com a teoria da expansão do universo, desde o primeiro momento, após o Big Bang, até este preciso momento. Se a velocidade da luz é constante, o que obrigaria a pensar no universo como sendo um espaço adiabático, no qual é impossível intercambiar energia com o exterior (imperativo para que a velocidade da luz se atrasasse), a homogeneidade do cosmos não é uma hipótese correcta porque as zonas limítrofes do seu crescimento ainda não foram iluminadas; não em virtude dessas fronteiras se deslocarem a uma velocidade superior à da luz — o que é fisicamente impossível —, mas pela condição de criarem vácuo entre elas a uma velocidade superlativa.
Ou seja: múltiplas regiões do cosmos estão às escuras em prejuízo de outras, derrubando a ideia de um universo isotrópico? Contudo, se a velocidade da luz não é constante, e foi superior à velocidade de inflação do universo no início da "criação", todas as áreas poderão estar em contacto.
Novíssimas descobertas sobre um novo tipo de energia chamada energia escura obrigam a pensar sobre o fim de todas as coisas de outra maneira. Um epíteto que parece decalcado de um episódio da série televisiva The Outer Limits, mas que é muito importante para, mais à frente, expor a ideia principal que conduz este ensaio.
Black nº 1
No que diz respeito à sua constituição,
suponho que a matéria que Ammi observou
seria uma espécie de gás.
Mas um gás que obedece a leis que não pertencem a este universo.
H.P.Lovecraft, The Colour Out of Space
- Que faço com isto?
- Aduba as tuas florzinhas, Greg.
Diálogo entre Greg Feely e Mother Dirt, in The Filth (Grant Morrison, Chris Weston)
suponho que a matéria que Ammi observou
seria uma espécie de gás.
Mas um gás que obedece a leis que não pertencem a este universo.
H.P.Lovecraft, The Colour Out of Space
- Que faço com isto?
- Aduba as tuas florzinhas, Greg.
Diálogo entre Greg Feely e Mother Dirt, in The Filth (Grant Morrison, Chris Weston)
O físico alemão Christiaan Huygens, nascido e falecido no século XVII, foi o primeiro cientista a colocar a hipótese de que o espaço não é vazio. De acordo com a sua intuição, o universo encontrava-se preenchido com um médium chamado éter luminoso, fluente inspirado pelo aeter que os gregos da idade clássica imaginavam ser o constituinte das estrelas. No final da segunda metade do século XIX, foram as célebres experiências de Abraham Michelson e Edward Morley sobre a velocidade da luz que influenciaram a comunidade científica a observar o fenómeno desse fluido com algumas reservas e a duvidar da sua veracidade. Porém, apenas no século XX a existência do éter foi sendo lentamente rasurada a partir da publicação da teoria da relatividade de Einstein. Não obstante a falsidade do conceito de éter, o astrónomo suíço Fritz Zwicky descobriu, em 1933, a presença de uma matéria náufraga na imensidão do cosmos: a matéria escura.
Superior em quantidade à matéria comum numa relação de 10 para 1 (o que significa, aproximadamente, que 90% dos constituintes de uma galáxia são invisíveis), a matéria escura pode ser entendida como o equivalente científico da Qliphoth da mitologia cabalística hebraica: essa matéria negra e densa, antagonista da vida, com a qual a sefira Daäth é constituida.
Onze maldições ecoaram do monte Ebal, onze os senhores da Qliphoth, e nas suas cabeças viviam as duas forças adversárias.
(Cântico retirado do ritual “Portal Da Câmara do Adepto”, da Ordem Hermética Golden Dawn.)
(Cântico retirado do ritual “Portal Da Câmara do Adepto”, da Ordem Hermética Golden Dawn.)
Aleister Crowley definiu essa substância como sendo excrementos das ideias e no livro The Golden Dawn, um manual sobre essa sociedade hermética inglesa escrito por Israel Regardie, antigo aluno do Mestre Therion, Qliphoth é mencionada sob a designação de matéria escura; ou conchas dos mortos. Transcrevo a explicação oferecida por Bill Whitcomb em The Magician’s Companion:
Qliphoth (heb.): Literalmente, concha; invólucro. Usado para descrever planos extraterrenos habitados por demónios, forças negativas e destrutivas e as cascas dos mortos em decomposição. (…) Pode ser vista como o negativo da Sephiroth, a Árvore da Vida. Assim como a Sephiroth traduz progresso, evolução e reunião com o divino, a Qliphoth encerra degeneração, putrefacção e entropia. (…)
É, com efeito, a lixeira do universo.
É, com efeito, a lixeira do universo.
De todas as partículas infinitesimais que constituem a matéria escura as mais conhecidas serão certamente os neutrinos, que atravessam o espaço vazio nos nossos corpos a toda a hora, mas existem outras, mais insondáveis ainda, como axiomas ou neutralinos. Seguramente, a matéria escura é confusa o suficiente para desafiar catalogações, todavia a energia escura é muito mais misteriosa.
No início dos anos 90, estudos astronómicos sobre a formação de supernovas levaram à conclusão de que a expansão do universo está a acelerar, invês de abrandar, o que contraria de maneira directa a teoria da gravidade. Ao agente responsável por essa força de aceleração chamou-se energia escura.
É uma força que preenche todo o universo, inferindo pressões negativas descomunais. O efeito que essas pressões violentíssimas, agindo no sentido inverso ao da gravidade, irão influir será o grande rasgo que citei no início: o universo vai rasgar-se pelas costuras num prazo estimado entre 100 a 300 biliões de anos.
Um bilião de anos antes da catástrofe as galáxias estarão tão afastadas umas das outras que não poderão ser observadas através de um telescópio. O acto final da peça será exibido para uma sala vazia, pois é improvável que a vida na Terra sobreviva à morte do Sol; mesmo assim, se precisávamos de uma única razão para aceitar o facto de que somos personagens secundárias neste teatro imaginado para o universo brilhar é esta.
Enter Antropia
Tem poesia.
A poesia que um engenheiro aprecia.
Thomas Pynchon, Gravity's Rainbow
Naturalmente, o Acaso interveio.
Luke Rhinehart, The Dice Man
A poesia que um engenheiro aprecia.
Thomas Pynchon, Gravity's Rainbow
Naturalmente, o Acaso interveio.
Luke Rhinehart, The Dice Man
Talvez o conceito de entropia, no sentido da crescente desordem num determinado sistema reversível, não faça sentido quando se pensa no universo... O mesmo não se pode dizer da entropia presente nas actividades dos organismos - e, em particular, na vida humana. Nós somos viciados em entropia e não conseguimos realizar as tarefas mais simples sem as transformar em casos federais.
Vou expor algumas considerações sobre o fenómeno entrópico nas nossas relações com indivíduos e coisas, mas usarei um neologismo cunhado por mim para diferenciar esta entropia "humanista" daquela que alude, em exclusivo, à física: vou chamar-lhe antropia (anthropos + entrope) e servir-me dela para nominar fenomenologias desta espécie nos campos sociais, filosóficos ou metafísicos.
Apresento-vos a história Cão Capacho Bósnio, de Max Anderson e Lass Sjunnesson, uma banda desenhada que usarei como blueprint para a maioria dos meus argumentos e que foi publicada no número seis da revista Quadrado, uma edição da Bedeteca de Lisboa.
Esta pequena história tem início num portentoso pavilhão, no qual se procede a uma cerimónia de entrega de prémios de banda desenhada no âmbito de um festival. Max Anderson surge como principal protagonista entre a multidão de figurantes. O leitor compreende desde o início que a ambiência de afastamento de perigo que se experimenta no interior do salão possui qualquer coisa de artificial e é precisamente no momento em que uma quadrilha de aviões militares sobrevoa o edifício que Max (chamemos-lhe Max 2, posto que o 1 é o autor da banda desenhada) é chamado para atender um misterioso telefonema.
A voz que comunica com Max é a de Stefan Skeldar, um antigo colega de universidade que ele usara como imagem para uma personagem numa banda desenhada satírica. Skeldar exige uma recompensa pelo uso do nome e Anderson coagido pelo seu contacto e acompanhado pelos amigos abandona o salão para se encontrar com ele. Concentrado em volta do ponto de encontro acertado ao telefone, o grupo é imediatamente atacado por um bando de guerrilheiros que conduz uma carrinha de gelados. O acidente não deixa feridos e dá-lhes oportunidade para acharem o diário de Skeldar, oculto numa papeleira, assim como uma enigmática granada encriptada que os renegados deixaram cair.
Assumam que o interior do salão é um fluido meta-estável, o que significa que tem a faculdade de conservar as suas propriedades físicas originais infinitamente até ser perturbado por qualquer reacção imprevista. Pensem na água meta-estável que se mantém líquida muitos graus abaixo do ponto de refrigeração até que um dos seus átomos toma acidentalmente uma posição diferente na formatura do conjunto e dá início a uma espécie de efeito de dominó que termina com a instantânea congelação do fluido. Neste exemplo, a chegada dos aviões militares ocupa o papel dessa mudança revolucionária e a partir daí tudo o que tem lugar no interior do salão é transformado: Max recebe o telefonema e emociona-se; alguns dos convidados quebram a imobilidade e levantam-se dos seus lugares para passear pelo recinto ou para falar com pessoas sentadas noutras mesas. A mudança introduzida foi tão violenta como um qualquer choque de partículas.
O enredo volta a complicar-se com a descoberta do diário de Skeldar e a granada. Mas porquê essa confusão? Por que motivo não pode Max esquecer o telefonema e retornar à cerimónia? É que a civilidade festiva para que foi convidado desapareceu. Na verdade, Max 2 desapareceu e quem nós iremos acompanhar daqui em diante é Max 3, que não está interessado em contactar Skeldar e só pensa em chegar a Sarajevo, inspirado pela imagem que se encontra gravada na superfície da granada. Vale a pena citar Philip Ball, que escreveu no seu livro Critical Mass: How One Thing Leads To Another:
A água nunca corre para cima e, em sentido figurado, nem o calor. Este argumento aparentemente inofensivo é o verdadeiro segredo que se esconde em cada mudança. Pois se existem processos irreversíveis, o tempo tem uma direcção precisa definida por esses mesmos processos. A Segunda Lei comunica com a nossa percepção de progresso que nos indica que o tempo avança e não recua.
Volto a citar Ball para comentar a crescente desordem vivida pelas personagens depois da saída do edifício:
A entropia aumenta num sistema quando ocorre qualquer mudança porque um agrupamento inédito das partículas constituintes é mais provável que uma repetição da formação anterior. Por outras palavras, o sentido seguido pelo tempo é determinado por probabilidades. Uma gota de tinta espalha-se na água porque é muito mais provável que os movimentos aleatórios das partículas que a constituem as afastem cada vez mais do seu ponto de origem, numa série de direcções diferentes, que conspirem no sentido de se condensarem numa esfera compacta que possa rolar até ao fundo ou encolher. Esta é uma contingência da existência de um grande número de probabilidades na mecânica de determinados processos. A entropia não aumenta para obedecer a um dogma cósmico: ela aumenta porque as probabilidades disso acontecer são impossíveis de numerar.
Então e a antropia? Por que razões indíviduos se comportam como átomos de tinta mergulhados em água? Simplesmente porque também se encontram imergidos em elementos alienígenas: os media, a cultura e, no caso das figuras públicas, a fama.
Todos estes novos e enérgicos elementos exercem acções de várias ordens nas nossas pessoalidades, influenciando movimentos e escolhas, prestigiando umas condutas em prejuízo de outras.
(Continua.)