Essa regressão mental é, infelizmente, uma das causas do cada vez maior aviltamento do discurso científico, presente nos meios de comunicação e entre as opiniões populares, e também da elevação do emocional em detrimento do racional. Este emocional, claro, em nada se relaciona com as emoções verdadeiras, das quais, como já provou a neurociência, a razão é indissociável, mas com as emoções de pechisbeque que tornam os adultos em autênticas crianças, guiados por memórias atávicas de tempos mais simplórios, mais confortáveis e, qualidade superlativa, mais giros.
O giro é o grande predicado deste período histórico e orienta todas as áreas da vida, desde a moda, os produtos de entretenimento e, ao que parece, a intervenção cívica.
Neste sentido (circense), a intervenção gira, com pinturas, perucas, máscaras e acessórios estapafúrdios, não é diferente da popularucha festa stultorum, a festa dos parvos, em que os campónios se disfarçavam de grandes senhores e tinham o direito de apupá-los em público, enquanto estes se apresentavam em trajes humildes: importa reter o carácter grotesco e humorístico desta festa que, dadas as circunstâncias, poderia ter-se vertido num verdadeiro protesto social - com consequências. Quis sempre o modelo mental das sociedades coevas que ela se mantivesse no registo da paródia e que não se transformasse em revolução.
Ora, quer o nosso modelo mental - contemporâneo - que o giro seja o tom dominante de tudo, fazendo-nos esquecer que ele e a brincadeira são, por excelência, composições do mundo das crianças: elementos que apenas por desvio ou por acidente encontram lugar de nidificação no universo dos adultos. Em suma: hoje tudo tem que ser giro - tudo tem que ser reforçado com as simples expressões dos emoticons. Até as intervenções cívicas. Já passámos o período do camp, tão bem teorizado por Susan Sontag no livro Against Interpretation: hoje vivemos sob o triunfo total do giro. Um giro que nada tem de satírico, de mordaz ou até mesmo de caricatural. É, somente, um giro que comunica com a falta de inteligência e a falta de sentimentos sofisticados.
É nessa classe de giro que observo o fenómeno do ciclismo "nudista" que hoje pedalou pela íngreme Lisboa (de cima para baixo e com bom tempo, está claro). O argumento de que a nudez hoje em dia não aborrece ninguém desvirtua a escolha da própria nudez como gimmick, pois se ela não choca ou não atrai curiosidade para quê o seu uso? E em que modo ela se relaciona com a mensagem de que andar de bicicleta é melhor para a saúde dos indivíduos? Não se relaciona: é, ao estilo da festa stultorum, um arremedo de protesto que, ao fim e ao cabo, não tem como objectivo mudar o statu quo, mas folgar durante uns momentos. Quanto ao pensamento que lhe subjaz, de que andar de carro na cidade é «obsceno» [diziam alguns cartazes dos ciclistas que «obsceno é o trânsito»] e imoral, só tenho a dizer que ele se inclui no ecologismo de pechisbeque de quem se habituou a olhar para o planeta como sendo um berçário cheio de peluches engraçados e que não pensa, verdadeiramente, nas consequências de um retrocesso tecnológico. Um protesto credível seria pedalar no sentido inverso, de baixo para cima, e no Inverno. Mas esta patetice inscreve-se na visão diabolizada da intervenção humana e tecnológica no ambiente de que a nossa sociedade contemporânea padece. Uma sociedade que já sofre os efeitos da, também gira e verde, recusa de vacinar as crianças e dar-lhes medicamentos químicos, alegando que não são "práticas naturais".
Vacinas? Aspirinas? Xaropes? Essas invenções que só servem para nos pôr doentes e dar dinheiro às indústrias farmacêuticas? O sangramento é que é bom: com uma gamela e uma lanceta, flebotomize-se sempre que se começar a ter febre ou a espirrar.
Não é poluente e promove o contacto com os mecanismos secretos do corporal e do espiritual.