domingo, 26 de junho de 2011

A Era do Giro


O costume contemporâneo de montar um circo cada vez que se pretende protestar contra aquilo que se acha ser incorrecto é uma prova de que a nossa sociedade, de maneira geral, está cada vez mais infantil e sofre de uma incapacidade crónica de discutir com seriedade seja que assunto for.

Essa regressão mental é, infelizmente, uma das causas do cada vez maior aviltamento do discurso científico, presente nos meios de comunicação e entre as opiniões populares, e também da elevação do emocional em detrimento do racional. Este emocional, claro, em nada se relaciona com as emoções verdadeiras, das quais, como já provou a neurociência, a razão é indissociável, mas com as emoções de pechisbeque que tornam os adultos em autênticas crianças, guiados por memórias atávicas de tempos mais simplórios, mais confortáveis e, qualidade superlativa, mais giros.

O giro é o grande predicado deste período histórico e orienta todas as áreas da vida, desde a moda, os produtos de entretenimento e, ao que parece, a intervenção cívica.

Neste sentido (circense), a intervenção gira, com pinturas, perucas, máscaras e acessórios estapafúrdios, não é diferente da popularucha festa stultorum, a festa dos parvos, em que os campónios se disfarçavam de grandes senhores e tinham o direito de apupá-los em público, enquanto estes se apresentavam em trajes humildes: importa reter o carácter grotesco e humorístico desta festa que, dadas as circunstâncias, poderia ter-se vertido num verdadeiro protesto social - com consequências. Quis sempre o modelo mental das sociedades coevas que ela se mantivesse no registo da paródia e que não se transformasse em revolução.

Ora, quer o nosso modelo mental - contemporâneo - que o giro seja o tom dominante de tudo, fazendo-nos esquecer que ele e a brincadeira são, por excelência, composições do mundo das crianças: elementos que apenas por desvio ou por acidente encontram lugar de nidificação no universo dos adultos. Em suma: hoje tudo tem que ser giro - tudo tem que ser reforçado com as simples expressões dos emoticons. Até as intervenções cívicas. Já passámos o período do camp, tão bem teorizado por Susan Sontag no livro Against Interpretation: hoje vivemos sob o triunfo total do giro. Um giro que nada tem de satírico, de mordaz ou até mesmo de caricatural. É, somente, um giro que comunica com a falta de inteligência e a falta de sentimentos sofisticados.

É nessa classe de giro que observo o fenómeno do ciclismo "nudista" que hoje pedalou pela íngreme Lisboa (de cima para baixo e com bom tempo, está claro). O argumento de que a nudez hoje em dia não aborrece ninguém desvirtua a escolha da própria nudez como gimmick, pois se ela não choca ou não atrai curiosidade para quê o seu uso? E em que modo ela se relaciona com a mensagem de que andar de bicicleta é melhor para a saúde dos indivíduos? Não se relaciona: é, ao estilo da festa stultorum, um arremedo de protesto que, ao fim e ao cabo, não tem como objectivo mudar o statu quo, mas folgar durante uns momentos. Quanto ao pensamento que lhe subjaz, de que andar de carro na cidade é «obsceno» [diziam alguns cartazes dos ciclistas que «obsceno é o trânsito»] e imoral, só tenho a dizer que ele se inclui no ecologismo de pechisbeque de quem se habituou a olhar para o planeta como sendo um berçário cheio de peluches engraçados e que não pensa, verdadeiramente, nas consequências de um retrocesso tecnológico. Um protesto credível seria pedalar no sentido inverso, de baixo para cima, e no Inverno. Mas esta patetice inscreve-se na visão diabolizada da intervenção humana e tecnológica no ambiente de que a nossa sociedade contemporânea padece. Uma sociedade que já sofre os efeitos da, também gira e verde, recusa de vacinar as crianças e dar-lhes medicamentos químicos, alegando que não são "práticas naturais".

Vacinas? Aspirinas? Xaropes? Essas invenções que só servem para nos pôr doentes e dar dinheiro às indústrias farmacêuticas? O sangramento é que é bom: com uma gamela e uma lanceta, flebotomize-se sempre que se começar a ter febre ou a espirrar.

Não é poluente e promove o contacto com os mecanismos secretos do corporal e do espiritual.