Antes das Marchas Populares, existia o costume da chamada Marcha ao Flambó, aportuguesamento da francesa Marche aux Flambeaux: pequeno cortejo brejeiro, sem nenhuma encenação ou orientação temática que encarnasse as características ditas dos bairros lisboetas, como as marchas intentam. Especula-se que talvez tivesse sido um resíduo da passagem dos militares franceses no nosso país, aquando das invasões napoleónicas, que costumavam organizar essas coreografias "vadias", com tochas acesas nas mãos. Por outro lado, a Festa do Entrudo também era muitíssimo popular, e nos tempos da Primeira República os desfiles carnavalescos que tomavam de assalto o Rossio surpreendiam pela sofisticação dos carros e das máscaras. Até que ponto a Marcha ao Flambó e a Festa do Entrudo, festejadas com balões de papel, flores, arcos e fogos-de-artifício, influenciaram, realmente, a génese das Marchas Populares é conjectural, mas, com efeito, antecederam-lhes e possuem uma estética similar.
O pai das Marchas Populares foi o cineasta lisboeta José Leitão de Barros, que aproveitou a existente tradição popular da festa de Santo António - com os garridos arraiais, lá está! - para lhe adicionar uma espécie de selo folclórico. Uma das características das autocracias de direita (conservadoras), é, precisamente, a cristalização no presente de um passado romântico, rural e fictício, de modo a interromper o futuro, horizonte que é observado pela elite com a maior das desconfianças. Todavia, as Marchas Populares nunca se entrosaram com harmonia no sonho rural do regime que lhes esteve na génese, em virtude do carácter bairrista e cosmopolita que as anima: mais que um veículo propagandista, transformaram-se, em exclusivo, numa festa de toda a cidade.
Íntimo de António Ferro (o criador do Secretariado da Propaganda Nacional), Leitão de Barros imaginou as Marchas Populares como sendo a resposta a um desafio que lhe foi lançado por Campos Figueira, director do Parque Mayer, que também patrocinou a produção do evento. Na altura, Barros mantinha o cargo de director do Diário de Notícias, no qual trabalhava o jornalista e olissipógrafo Norberto de Araújo (co-fundador do grupo Amigos de Lisboa, do qual também foi sócio fundador o artista Almada Negreiros), que viria a ser autor das letras mais conhecidas das Marchas Populares (com músicas de Raul Ferrão), como Lá Vai Lisboa, Olha o Manjerico, Marcha dos Centenários e Noite de Santo António.
Enquanto escritor e leitor da história de Lisboa, acho que as Marchas Populares não comunicam com a Lisboa real, mas com a Lisboa que temos vindo a construir, com base em diversos produtos culturais e de entretenimento.
Com as devidas distâncias, acho que as Marchas Populares olham para Lisboa, tal como as quimeras de Notre-Dame olham para a Idade Média. Com efeito, pouquíssimos saberão que as magníficas quimeras da balustrada de Notre-Dame são uma invenção do século XIX, criadas pelo arquitecto Eugène Viollet-le-Duc. São, pois, tótemes oitocentistas que querem ser ainda mais medievais que as gárgulas e os santos esculpidos nos séculos XII e XIII; períodos em que a novíssima fachada da catedral não ostentava quimeras nenhumas. Em síntese, elas são a nossa imagem (contemporânea em absoluto) sobre aquilo que a Idade Média deveria ter sido, mas não são, nem comunicam sequer, com a verdadeira Idade Média. São assim, as Marchas Populares de Lisboa: uma quimera sobre aquilo que achamos que foi - ou achamos que ainda é - a tal Lisboa popular e castiça.
Imagem: Marcha Popular de Lisboa, em meados do século passado.