Enquanto espécie, não nos podemos desentrelaçar da cidade (e das suas versões beta, claro - a aldeia e a vila).
Por isso é com alguma estupefacção que vejo aquilo que só posso apelidar de beato deslumbramento diante da terceira edição do evento Mega Piquenique Modelo que teve lugar no centro de Lisboa, e que transformou a Avenida de Liberdade numa quinta, com animais, legumes e frutos. A iniciativa, em si, não me aquece, nem arrefece, mas penso que, de modo indirecto, fortalece uma ideia popular, e errada, de que a cidade é intrinsecamente imoral, enquanto que o campo, por estar mais perto de uma concepção "disneyesca" da Natureza, é profundamente moral - e o estado dourado que perdemos com a queda citadina da graça. Qualquer indivíduo que seja um leitor mediano de História é capaz de perceber o quanto essa criação provinciana está errada. Não só o nosso habitat natural é a cidade, como sem ela não seríamos capazes de viver: desde que nos erguemos para caminhar em marcha bípede, e aprendemos a usar ferramentas, que modificamos o mundo à nossa volta para garantir a nossa sobrevivência e isso, na verdade, não é nenhuma desgraça, mas o comportamento natural da nossa espécie. A cidade é uma das nossas estratégias mais antigas - e aquela que, ao contrário do campo, nos deu mais frutos.
Até a agricultura biológica, que é servida hoje nos meios de comunicação como panaceia para os diabolismos do mundo industrializado, é um mito: a agricultura é, sempre foi e sempre será artificial.
Nenhumas das espécies vegetais cultivadas pelo homem se assemelham minimamente às versões selvagens das quais descendem e foram transformadas por tentativa e erro pelos nossos primitivos antepassados de maneira a darem mais grãos, mais frutos e medrarem em solos desnutridos. Na realidade, nenhum cereal da nossa dieta é capaz de sobreviver sem a mão humana - e nenhuma espécie de cereal contemporânea, consumida hoje (seja trigo, milho ou arroz), tem mais de sessenta ou setenta anos: são versões desenvolvidas por cruzamentos genéticos, inventadas em laboratório para serem mais férteis, mais rentáveis, mais adaptáveis a condições adversas e, também, mais nutritivas. Sem o processo Haber-Bosch, inventado em meados do primeiro decénio do século passado, e usado para criar os constituintes essenciais aos fertilizantes contemporâneos, como nitrogénio e sais amoniacais, não haveria agricultura - "biológica" ou outra!... - que sustentasse a nossa população, já que são esses fertilizantes que permitem rentabilizar o espaço cultivado: menos espaço que dá mais colheitas por ano. Se revertêssemos para a agricultura "biológica" (primitiva) precisaríamos do dobro ou do triplo do espaço para colher as mesmas quantidades - e isso, sim, é que seria uma ameaça para as áreas florestais e para as espécies animais que nelas habitam.
A cidade é Natureza: é tão natural quanto uma floresta, porque o homem é uma criatura natural. É, também, tal como a própria Natureza, algo que continua a evoluir. Precisamos de optimizar ainda mais as nossas cidades, que são o nosso repositório de memórias, de cultura. Mas isso não se fará revertendo a cidade para um Ilídio rural, para uma eutopia pastoril, sem carros e sem habitantes, que nunca existiu a não ser nos produtos de entretenimento.