sábado, 22 de março de 2014

Fábulas de Veneza #2




Inicio esta segunda parte dos meus apontamentos venezianos recordando com respeito o escritor inglês Frederick Rolfe, conhecido pelos seus admiradores (grupo a que pertenço) pelo pseudónimo Barão Corvo. No dia 25 de Outubro de 1913, com cinquenta e três anos de idade, Rolfe morreu de paragem cardíaca num quarto do hotel Palazzo Marcello, em Veneza; nos seus últimos anos lutou de modo messiânico contra um mundo que sempre foi padrasto para os espíritos mais sensíveis, experimentando as acritudes de viver numa gôndola e de dormir ao relento, perturbado pela fome, pelo frio e pelas ratazanas. Nesse período, encontrou força para ir escrevendo o seu último livro, intitulado The Desire and Pursuit of the Whole (legenda decalcada do discurso de Aristófanes sobre o amor, pronunciado em O Banquete de Platão).
Com acção situada em Veneza, esse romance recupera um dos mais complexos alter-egos corvinos, chamado Nicholas Crabbe: personagem que se estreou no romance homónimo, escrito entre 1900 e 1904, mas só publicado postumamente em 1958. Em conjunção com New Grub Street, de George Gissing (1891), Nicholas Crabbe oferece-nos um dos mais pungentes relatos (autobiográficos) sobre a vida de um escritor, equilibrando porções idênticas de desespero e expectativa para, finalmente, adurir com um desfecho terrível. Iniciado em 1909 e publicado postumamente em 1934, The Desire and Pursuit of the Whole patenteia uma imagem invertida desse mundo, com uma narrativa mais negativista que, de maneira surpreendente, finda cheia de luz. Conhecendo as circunstâncias da duríssima vida de Rolfe nesse período, o final optimista do seu último livro provoca mais calafrios que a injustiça que conclui Nicholas Crabbe, simplesmente porque assoma como escapismo exasperado de um homem aflito, procurando no seu universo autoral um fulgor de esperança, de dignidade, de humanismo. Escreveu Rolfe no final do primeiro parágrafo do capítulo XXV de The Desire and Pursuit of the Whole que «so much the better, he told God: I’m sick of this life which is just one damned thing after another». Honestidade sem afectações – desarmante.
Rolfe, o Corvo, cognome que, em italiano, é atribuído aos autores de vitupérios anónimos, está sepultado no cemitério da Ilha de San Michel, em Veneza; local que descreveu com sentimento no angustiante capítulo XXVI de The Desire and Pursuit of the Whole – quem sabe imaginando que, pouco tempo depois, iria tornar-se um dos seus residentes permanentes. Infelizmente não consegui prestar-lhe uma homenagem merecida junto da sua morada de repouso, porque o cemitério encontrava-se em obras de ampliação e a área em que Corvo foi tumulado, à saída no lado exterior, estava coberta com andaimes e outros materiais de construção que impediam a passagem. Assim, o meu pequeno tributo nestas crónicas venezianas que vou publicando são estas linhas, com as quais mantenho o seu nome vivo na memória dos meus leitores, convidando-os a descobrir com urgência a sua obra singular, porque enquanto os livros forem lidos um escritor nunca morre. A esse respeito, transcrevo um trecho do capítulo XX: «just as the physical cosmos is composed of the dust of innumerable milliards of corpses, so the psychical cosmos teems with the infinite shades of defunct ideas and creeds, the spirits of the tenets and fancies of extinct generations».
É preciso celebrar o facto de que o Big Bang, além da gravidade e do electromagnetismo, já continha a literatura: um universo que deu à luz a palavra não será, no fundo, assim tão horrendo.


  
Usanças de Veneza

  
A latebrosidade de Veneza exige uma atenção tão aguçada que, por vezes, a observação in situ se aproxima mais da obsticidade do que da própria obstinação. De outra forma, poderia passar-se pela Calle della Madonna, na jurisdição de San Polo, sem ver um curioso manufacto de preparação urbana, imaginado para resolver um dos problemas mais comuns da urbanização medieval: a questão dos balcões sobre os passeios, principalmente nas ruas estreitas onde obturam a luz do Sol. Em Lisboa esta problemática preocupou reis como D. Afonso III e D. Manuel I, dois dos soberanos que mais intervieram no desenho da cidade pré-pombalina, imperiosos na regulação de várias leis com que definiram padrões de medidas de balcões, mas também larguras de novas ruas, dimensões dos pátios exteriores e interiores e alturas de novos edifícios (assim como ordenações para diversas demolições de domicílios que não convinham à sua visão), na maioria das vezes sem pesadas consequências para os desrespeitadores, aquilate a ameaça de autuações. Veneza procurou combater a umbrosidade característica de cidades antigas, como Toledo, Lisboa ou Jerusalém, determinando um tamanho fixo para os balcões, sob a forma de um cachorro uniformizado, universalmente usável. Em arquitectura, um cachorro (ou mísula) é uma viga ou bloco de suporte de quaisquer armações que se projectem para fora das paredes exteriores de uma construção. Por vezes, estes elementos estruturais são ricamente esculpidos para fruto decorativo, embora apresentem, de maneira geral, uma linha curva ascendente. A este exemplar de cachorro que pode observar-se nesta rua, situada a curtíssima distância da Ponte Rialto, os venezianos chamam barbacane, que em português significa barbacã. Ora, uma barbacã, propriamente dita, é uma espécie de muramento defensivo que circunda as muralhas de alguns castelos e de análogas fortificações medievais: imaginem uma muralha à frente de uma muralha. (Por vezes, também se chama barbacã a uma torre de sentinela.) O étimo da palavra barbacã permanece misterioso, conquanto o etimologista José Pedro Machado se inclinou para uma origem italiana ou até francesa, declinando a hipótese de origem árabe que, tantas vezes, é a preferida. Neste brevirrostrado bloco de pedra da Ístria (material vulgar em Veneza), pode ler-se a inscrição camarária «per la juridiciom de barbacani».

  
Ainda assim, mormente o zelo camarário em homogeneizar os seus confins ocorrem contingências que, anediadas pela calandragem das eras, tornam-se o sal da vida de uma cidade: tal como existem figuras citadinas típicas – indivíduos deformados ou excêntricos que vão marcar e, em certos casos, até mudar o curso da história dos locais onde moram –, também existem casas desfiguradas e extravagantes que oferecem uma expressão especialíssima à paisagem urbana. Pode ver-se um bom exemplo na Calle del Sansoni, na jurisdição de San Polo: um edifício fortemente inclinado que, sem dificuldade, podemos idealizar como tendo sido a casa de um vespilão na idade das éclogas virgilianas. Em forma de Pi, esta entrada arruinada por graffiti é, como essa constante matemática, irracional e arisca à repetição, porque é única em toda a cidade, mas empurrada constantemente pela gravidade ainda prova ser não-newtoniana, no sentido de que quanto mais a percutem mais imperturbável ela se preserva. Há uma lição a recolher desta imagem: quem for sagaz apreendê-la-á.

  
Para além da zona do Arsenal, que visitámos no primeiro capítulo destas reflexões, situa-se a área menos turística da jurisdição de Castello, zona que a incomensurável Viale Garibaldi rompe abruptamente, criando uma fronteira deliberada entre as mais ermas fímbrias do centro e uma mancha urbícola que se apresenta como sendo um híbrido comovente entre o bairro pitoresco e o alfoz anasarcado. Este dédalo dimana um desconforto difícil de dilucidar, mas talvez se relacione mais com a desarmonia que a sua visão provoca, quando posto em paralelo com a pulcritude medieval que se deixou para trás. É, pois, aqui, no coração combalido deste casalejo coraliário, chamado Campo Ruga, que se pode ver o Sottoportego Zurlin, o pórtico mais baixo de toda a Veneza. Mesmo iluminado, este lugar é, absolutamente, tenebroso: mostrando uma máscara espeleológica que apenas crianças, em fila indiana, à guisa de melânico milípede, são capazes de colocar sem baixarem a cabeça, o pórtico parece uma masmorra virada ao contrário – um sítio de suspiros, de sustos e mórbidas moltivolações. À entrada do Sottoportego Zurlin, cenário ideal de algumas histórias venezianas de fantasmas, lembrei-me do título de um dos meus livros de contos de ficção de horror: A Luz Miserável. O Campo Ruga e imediações são bastante iluminados, mas podem crer que o são por uma luz miserável que fortalece a treva, em vez de enxotá-la.

  
Longe deste território arrabaldino, na jurisdição de Dorsoduro, a Fondamenta dei Cereri reserva uma recordação de uma diversão cruel que, até ao início do século XIX, foi gáudio dos venezianos: as lutas de cães com touros. Na placa pode ler-se como o Conselho dos Dez, em 18 de Fevereiro de 1709, ordenou que se deixassem de atiçar cães aos touros no Corte San Rocco: este pátio já não existe e a placa só foi colocada no seu presente local em 1856, quando o desporto tauróctono ia a caminho de transformar-se numa memória distante. Hostis cães braquicéfalos, como o bulldog e o rottweiler, foram criados propositadamente, desde a era romana, para lutarem com touros e com ursos em arenas e praças; algumas raças extinguiram-se depois destes passatempos terem sido proibidos – como aconteceu com o bulldog inglês original e com o bulldog alemão (o bulldog inglês e o boxer alemão actuais são raças muito recentes, criadas com a pura nostalgia em mente e sem nenhum apuramento da vocação agressiva dos seus antepassados directos). Habitualmente, os touros eram amarrados a postes, de maneira a que os cães lhes fossem arrancando bocados, mas sem que lhes fosse retirada a capacidade de se defenderem, que fazia parte do espectáculo; ainda assim, por vezes, os touros eram cegados para reduzir-lhes a resistência. Esta ocupação selvática do tempo livre não substituía a tourada, constituindo-se num outro tipo de divertimento público. Vale a pena lembrar que a antiga tourada, tal como a descrevi no capítulo O Reino do Sol do meu romance Lisboa Triunfante, continha características que vão ao encontro das lutas de cães com touros – principalmente, das lutas entre animais nos circos romanos – e consistia num evento mais babelesco, caótico e imprevisível que as touradas modernas, muitíssimo estilizadas. Nos países do Norte da Europa, em principal na Inglaterra, foram muito populares as lutas de cães com ursos.


  
Falando em fereza canina, siga-se para leste, ao longo da Fondamenta Zattere al Ponte Longa, também na jurisdição de Dorsoduro, e com vista privilegiada para as ilhas Giudecca e San Giorgio, até que a Igreja de Santa Maria del Rosario nos surja no lado esquerdo: vire-se à esquina deste templo, conhecido pela designação de Igreja dos Gesuati, e repare-se em algo que poderá escapar ao exame de quem não está ajustado com o obscuro. Um arco ao nível do chão, tauxiado num canto da igreja, denuncia o Rio Terà dei Gesuati. Em terminologia veneziana, um rio terà é o nome que se dá a um canal aterrado – e este, dos Gesuati, consistia num anoso estreito que corria sob a igreja.
A iniciativa de aterrar alguns canais de Veneza, iniciada no final do século XVIII, é controversa, mas o factual é que cerca de 55% dos canais que existiram no início do século XVI já foram aterrados, o que, a longo prazo, tem contribuído para o problema da circulação dos barcos e seu estacionamento, assim como para atrapalhar o fluxo idiossincrásico das águas da lagoa adriática. Sobre o arco, vigiando com diligência o fantasma do velho curso de água, está um grotesco com o inconfundível cão dominicano; aquele que, segundo a hagiografia, Joana de Aza, mãe de São Domingos de Gusmão, sonhou que dava à luz, com uma tocha acesa entre as mandíbulas.
Este cão com a tocha acesa é o símbolo da ordem dos frades pregadores dominicanos, chamados pejorativamente de cães do Senhor (do trocadilho em latim domini canes), fundada por São Domingos de Gusmão em 1215. A Ordem dos Pregadores, ou dos Dominicanos, depressa adquiriu junto do público uma fama desprezível pela impiedade insaciável com que perseguia os hereges, mas será injusto, de um ponto de vista histórico, colar o rótulo de maus-da-fita em exclusivo aos frades dominicanos, porque todas as ordens religiosas tiveram os seus episódios negros, em que foram responsáveis pelos piores crimes possíveis. Na verdade, dependendo dos lugares e dos contextos, os dominicanos até demonstraram maior tolerância e solidariedade para com aqueles que eram acossados, como, por exemplo, as etnias mesoamericanas, entre elas a asteca.
A presença do cão dominicano no flanco desta igreja justifica-se pelo facto de que ela é, hoje, a sede de uma fundação dominicana, embora nunca tenha sido uma igreja jesuíta, como o nome Gesuati poderá induzir em erro: a Ordem dos Gesuati (Jesuatos) foi fundada entre 1355 e 1360 pelo italiano Giovanni Colombini, inspirado pelas vidas de Santa Maria Egipcíaca e São Jerónimo a tratar dos enfermos, especialmente dos afectados pela peste bubónica. Esta congregação religiosa de irmãos leigos foi dissolvida pelo Papa Clemente IX, em 1668, por culpa de alguns melindres relacionados com a destilação e venda de bebidas espirituosas.


 
Mantendo a menção às bebidas espirituosas, revelo que um dos sinais mais curiosos que encontrei em Veneza foi o que proíbe os indivíduos de beberem em cima das pontes, de modo a que não caiam, ébrios, aos canais. Este foi fotografado a poucos passos da Ponte Santa Fosca, na jurisdição de Cannaregio, local predilecto para as lutas entre os gangues rivais Nicolotti (os pretos) e Castellani (os vermelhos). A lembrar essas antigas altercações entre pescadores e operários do Arsenal estão quatro silhuetas de solas de sapatos sobre a ponte, talhadas em pedra da Ístria. Este costume generalizado de lutas de várias facções numerosas de cidadãos em algumas pontes foi tolerado – quando não foi até encorajado – pelas autoridades de Veneza, pois consistia numa forma do povo libertar vapor sem se lembrar de criar problemas aos governantes, além de tratar-se de uma excelente metodologia de preservar a desunião da populaça, segundo o lema divide ut regnes (divide e reina) de Maquiavel. Armados com cacetes, ferramentas, facas e pedras, mas, maioritariamente, apenas com os punhos, os gangues digladiavam-se, segundo regras tradicionais, em escaramuças violentíssimas que acabavam no fundo dos canais ou nas enfermarias. Estas grosseiras lutas populares foram, finalmente, proibidas pelo Conselho Maior, no início do século XVIII, na sequência de uma autêntica guerra civil, ocorrida na Ponte dei Pugni (Ponte dos Socos), ao Campo de San Barnaba, na jurisdição de Dorsoduro.


  
É verosímil que alguns dos magoados em batalha nessas rixas procurassem restabelecer-se com o remédio regional mais famoso de Veneza: a Teríaca.
Este nome vem directamente da palavra grega theriakê, que significa antídoto. A teríaca – ou teriaga – era um fármaco afamado por curar envenenamentos de diversas ordens, mas, também, por ser uma espécie de panaceia. Veneza, cidade de infindos apotecários, possuía apenas cerca de trinta a quarenta farmácias autorizadas a produzir teríaca. Para o efeito, os boticários precisavam de capturar víboras, ingrediente principal da concatenação milagreira – e para indicar que elas eram de boa cepa, exibiam-nas vivas, durante uns dias, à entrada das lojas. A preparação deste efectuário semilendário fazia-se na rua, à vista do público e das autoridades, de molde que ainda é possível encontrar alguns buracos que os farmacêuticos de outrora escavaram no chão, defronte dos seus estabelecimentos, para colocar a base dos almofarizes em que moíam os compostos. Um dos mais bem conservados está diante da farmácia Alle Due Colonne, na jurisdição de Cannaregio, de que já falámos no primeiro capítulo destas fábulas venezianas e que pode ver-se na imagem acima. É fácil imaginar os mestres apotecários a lengalengarem, enquanto batiam com o pilão no gral, triturando carne seca de víbora, mais a peçonha venefícua, rodeados de espectadores. Aqui, unia-se, certamente, uma protofarmacopeia com o sentido apotrópico das mezinhas e dos amuletos, ou seja, assistia-se a uma transição – sem dúvida, um sobre posicionamento – da magia e da medicina (voltaremos a este ponto na segunda parte deste artigo). A produção veneziana de teríaca terminou, em definitivo, no século XIX.


Veneza grotesca

 
A mesma índole apotropaica de tisanas, amuletos e ladainhas encontra-se nas concepções de vários grotescos e restante estatuária que decora uma cidade e lhe assinala a personalidade. Aqui, remeto os leitores para o meu ensaio sobre as oitocentistas quimeras da catedral de Notre-Dame, publicado no meu livro Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes, que explora com pormenor essas intenções salvíficas por trás das realizações, ao longo das eras, de esculturas desse tipo. Raras vezes, por via ingénua, desvinculada de quaisquer ortodoxias ou tradições, o mundo contemporâneo cria quimeras, grotescos e imagens que possuem fortíssima ressonância mítica (de um ponto de vista unicamente histórico – reitero a minha absoluta descrença em qualquer tipo de manifestação ou energia sobrenatural).
Uma quimera veneziana surpreendente (tanto que me esqueci, por completo, de anotar o nome da rua em que a encontrei) é este rinoceronte “de Sant’Iago”, com vieira colada, para que não se alcem incertezas. Jean Julien Champagne, que escreveu os prestigiosos livros O Mistério das Catedrais e As Mansões Filosofais sob o pseudónimo de Fulcanelli, especulou extensamente sobre as ligações entre a alquimia e a romagem a Santiago de Compostela e, nessa perspectiva representativa, eu poderia discorrer sobre os simbolismos separados do rinoceronte e da vieira, mas tal parece-me desapropriado neste contexto, porque, evidentemente, esta imagem foi criada por pura acidência, sem nenhuma intenção suplementar ao efeito artístico mais básico; dando isso de barato, não deixa de ser uma concretização intrigante, cujo resultado final, de facto, possui a tal repercussão mítica de que falei há poucas linhas. De certeza que muitíssimas imagens do passado foram assim criadas, entretanto credibilizadas por séculos de antiguidade e de balastro filosófico-simbólico inventado para justificá-las. O mito – a ficção – é, sempre, a pedra-basilar sobre a qual o homem tenta justificar a sua existência – ainda hoje isso acontece, embora os mitos e ficções contemporâneos sejam de um tipo totalmente novo, um que nos faz esquecer que não deixam de ser menos ilusórios que os mitos e ficções de ontem: este é um assunto que me magnetiza e sobre o qual eu prometo escrever com maior pormenor num artigo futuro.


  
Os livros de Fulcanelli alcançaram uma respeitabilidade insuspeita, mesmo em círculos académicos, porque, de facto, são muito bem escritos e corpulentos no que concerne à erudição: encerram um registo simultaneamente professoral e pragmático, embora orientados por um certo chauvinismo francês que, hoje, dificilmente pode ser levado a sério, mas que, no cômputo, não macula a sua importância para o estudo factual do esoterismo ocidental. Segundo a tradição, Fulcanelli terá apelidado o seiscentista Palazzo Lezze, na Fondamenta della Misericórdia, na jurisdição de Cannaregio, como sendo a «mansão filosofal de Veneza», em virtude da iconografia aparentemente alquímica que apresenta no exterior; em principal, num dos costados, cortesia de misteriosos baixos-relevos da autoria do arquitecto Baldassare Longhena (criador da Basilica della Salute, na jurisdição de Dorsoduro, insigne por conotações supostamente cabalísticas, inspiradas pelo livro Hypnerotomachia Poliphili, do veneziano Francesco Colonna, impresso em Veneza pelo tipógrafo Aldus Manutius, inventor do livro de bolso).
Veneza serviu de palco a movimentações interessantes no que concerne ao desenvolvimento da prática da alquimia. O alquimista seiscentista veneziano Otto Tackenius terá criado uma fabulosa e imbatível panaceia, feita de partes de víboras e partes de metais – recordo a prática protofarmacópica da produção de teríaca, explanada com maior detalhe na primeira parte deste artigo. Todavia, mais pertinente é observar que Veneza foi crisol de algumas “heresias” alquímicas, como a publicação em 1530 do livro Voarchadumia Contra Alchimiam de Giovanni Agostino Pantheus: tratado que traça uma distinção entre aquilo que Pantheus chamou de arquimia, a verdadeira arte esotérica transmutatória, herdada desde os tempos veterotestamentários, e a vulgar alquimia, o trabalho trivial de falsificar metais preciosos. Com esse objectivo, cunhou o neologismo voarchadumia, nome críptico que significará algo como criação de ouro. À parte do anti-alquimismo, o livro de Pantheus foi-se tornando numa fonte influente para os alquimistas mais rigorosos que desejavam desvincular-se dos inúmeros impostores que ludibriavam o público sob a nomenclatura de alquimistas – ao ponto desta palavra, em muitos locais, se ter tornado sinónimo de vigarista. Mesmo assim, Pantheus e o seu livro não marcaram em relevo a história da alquimia e, provavelmente, até passariam despercebidos se não fosse o facto do astrólogo inglês John Dee ser um fã de Voarchadumia Contra Alchimiam. No entanto, a ideia de que a famosa linguagem angélica ou adâmica (Dee nunca lhe chamou enochiana) foi inspirada pelo dialecto angélico contido no livro de Pantheus é excessiva: nem Dee, nem Pantheus inventaram os chamados dialectos adâmicos ou celestiais, empregados para comunicar-se com inteligências preternaturais ou ultraterrestres e que, à distância, podem ser interpretados como uma espécie de resquício das invocações nigromânticas e goéticas que a Idade Média herdou da época clássica. Na verdade, dialectos e gramáticas desta natureza, nem sempre arquitectados de modo prolixo, diga-se, foram populares na cultura mágica pós-renascentista.

 
Uma personagem à qual, por curiosidade, Fulcanelli devotou alguma atenção nos seus escritos é o chamado Homem Verde ou Homem da Floresta, figura momentosa em quase toda a iconografia ocidental, quase sempre representada como sendo um híbrido do humano com o vegetal. As aparências mais populares de Silvano, deus romano dos bosques, serão as representações mais imitadas deste mito, mas existem ecos nas fisionomias dos primeiros anacoretas cristãos, como São Paulo de Tebas ou São Onofre, eremitas nus, vestidos somente com os longos cabelos e barbas, à semelhança dos longos pêlos ou abundante pele herbácea de Silvano: são, em síntese, símbolos de sabedoria e de rejeição da ordem e das leis imaginadas pelos homens, em simbiose com o mundo natural e divino. A imagem de Silvano que pode ver-se acima, disposta na fachada do Palazzo Bembo-Boldù, na jurisdição de Cannaregio, é provocativa pelo pormenor dessa personagem agarrar uma espécie de escudo ou salva decorada com o Sol. Uma das minhas versões do mito do Homem Verde é a personagem Pedranceiro: gigante que faz parte do bestiário do meu romance Batalha, mas feito de pedra de ançã, em vez de matéria orgânica. Descrevo-o como sendo vagamente antropomórfico, mas retendo toda a rudeza e imperfeição da pedra em bruto. É uma alegoria da busca pela perfeição.


  
No lado leste da cidade, na jurisdição de San Polo, pode visitar-se a Pescheria Nuova: o novo mercado do peixe, inaugurado em 1907. Este mercado, desenhado pelo pintor Cesare Laurenti e pelo arquitecto Domenico Rupolo, contém inúmeras quimeras ictióides e de inspiração talássica incrustadas nos capitéis das suas múltiplas colunas. É um dos melhores exemplos da arquitectura neogótica veneziana, num estilo que faz lembrar, entre outras edificações, o interior do restaurante neogótico Abadia, na cave do Palácio Foz, em Lisboa, da autoria do arquitecto Rosendo Carvalheira e dos escultores José Neto e Costa Mota – mas sem apresentar a riqueza iconográfica e simbólica deste espaço. Ainda assim, vale a pena visitá-lo, porque as suas quimeras, emproadas sobre o rebotalho de escamas que atapeta as lajes do piso voltado para o Grande Canal, têm um aspecto ameaçador que parece despropositado num local tão costumeiro. Pode dar-se o caso delas parecerem sinistras a posteriori, aos nossos olhos: as gentes da altura poderiam ter outra ideia acerca delas.


(Fotos: Gisela Monteiro.)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Jogo do Rato e do Gato


Entretanto, Plutão, o meu gato, está enfiado numa das minhas estantes a caçar o livro Rats de Robert Sullivan.

terça-feira, 18 de março de 2014

Fábulas de Veneza #1


Em Veneza, a minha imaginação entusiasmou-se com a dédala visão de longas ruas apertadas que, talvez como em nenhum outro lugar, dão uma ideia aproximadíssima de como seria o centro de Lisboa antes de ter sido devastado pelo grande terramoto de 1755: pode-se andar por ruas tão estreitas que os ombros quase tocam nas paredes dos edifícios elevados e, no entanto, a treva ausenta-se dessas intermitências medievas graças à inexistência de balcões inimigos do Sol, que, acrescente-se, precipita aqui uma luz holometabólica. Os pinázios nos quais essas ruas se encaixam com graciosidade detonante são os infindos canais – alegoria que me é acrescida pelos reflexos xantogénicos na água adriática: a maioria apenas observada por borboletas, gaivotas e conventiculares memórias do passado, porque Veneza foi construída nas frequências mais altas do espectro visível. Procurando, também, ver para além da superfície, redigi uns apontamentos sobre certos aspectos, sítios e personagens que encontrei nas minhas incursões psicogeográficas pela cidade.



Leões em Veneza
 

O leão alado veneziano é um símbolo do evangelista São Marcos, cujas relíquias, segundo a tradição, foram roubadas de Alexandria por dois mercadores venezianos, Buono da Malamocco e Rustico da Torcello. Estes terão convencido os sacerdotes coptas da velha igreja de São Marcos a deixá-los esconder “temporariamente” o santo, de molde a evitar que fosse destruído pelo califado fatímida, que, nessa altura, tinha intenções de demolir aquele templo para enviar os mármores e o recheio para o Próximo Oriente: assim, os dois mercadores substituíram as ossadas de São Marcos pelas de Santa Cláudia (infelizmente, a tradição nada discorre sobre o modo como estas foram trazidas à colação) e levaram com eles as primeiras dentro de um cesto, cobertas com pedaços desmanchados de porco para desmotivar a curiosidade das autoridades muçulmanas.
De um ponto de vista histórico, a figuração simbólica dos quatro evangelistas - São Mateus (um homem), São Lucas (um touro), São Marcos (um leão) e São João (uma águia) - poderá estar directamente relacionada com o episódio veterotestamentário da visão de Ezequiel (Ezequiel, 1:5) e até com a passagem apocalíptica que descreve o trono de Deus (Apocalipse, 4:6), mas, provavelmente, foi Ireneu de Lyon que, no seu influente tratado antignóstico (em cinco volumes), intitulado Contra as Heresias, deu maior expressão a estas concepções e as popularizou. Curiosamente, a igreja ortodoxa rejeita-as - ironia que cresce em dimensão quando se pensa que o modelo espiritual e secular para a criação de Veneza foi Constantinopla, da qual foi roubado, no âmbito da Quarta Cruzada (1202-1204), o leão que se encontra na Piazzetta de São Marcos.
Mesmo para efeito de contextualização, seria um desvio demasiado grande descrever com algum pormenor a história da Quarta Cruzada, mas ao serviço destas linhas chega o esclarecimento de que esta ofereceu uma oportunidade a Veneza, em principal a Enrico Dandolo, o cego e nonagenário doge (autoridade máxima de Veneza), para que se saldassem contas pendentes com a capital do Império Bizantino. Na sequência das invasões lombardas, de meados do século VI, projectara-se que Veneza seria um centro administrativo desse império, mas as relações com Constantinopla nunca foram boas, deteriorando-se velozmente à medida que esta perdia a dignidade de outrora. Em suma, o saque veneziano a Constantinopla foi o gérmen de instabilidades paroquiais e internacionais que assumiram algumas formas previstas e outras imprevistas. Um exemplo elementar foi a emergência do Império Otomano, declarado com a conquista de Constantinopla em 1453; outro, difícil de prever, diga-se assim, deflagrou muito mais tarde com a decadência desse império (o chamado “Homem Doente da Europa”, designação satírica criada pelo czar Nicolau I) e com o advento da Primeira Grande Guerra – sob esta perspectiva, o doge Enrico Dandolo pode ser olhado como sendo o “avô” da Primeira Grande Guerra.
 

Entre os tesouros que os venezianos roubaram no saque de Constantinopla encontravam-se dois ícones que se tornaram paradigmáticos de Veneza: o leão alado e a estátua de São Teodoro, ambos dispostos no topo de altivas colunas de granito da Numídia (também roubadas no saque) na Praça de São Marcos. Essas imagens foram, de facto, construídas com restos de estatuária de bronze e de pedra trazidos ao trouxe-mouxe no espólio do saque: soldou-se as asas de um anjo num corpo de leão para produzir o símbolo de São Marcos, o Evangelista, e, em seguida, aplicou-se uma cabeça num tronco couraçado de uma estátua de um oficial romano desconhecido e colocou-se essa configuração sobre uma escultura de um crocodilo para fabricar a figura de São Teodoro – o santo caçador de dragões original, anterior à invenção mais recente do mito herpetocida de São Jorge.
Ecos dessa operação inaugural reverberam por toda a cidade e escolho um exemplo interessantíssimo de sincretismo para ilustrá-los. No relvado da entrada da Faculdade de Literatura e Filosofia da Universidade de Ca’ Foscari, na meridional sestiere (jurisdição) de Dorsoduro, encontra-se uma composição surpreendente, feita com fragmentos de uma coluna de um templo grego dedicado a Posídon no Cabo Sounion no século V a. C. Esta minicoluna é rematada por um oitocentista leão de São Marcos, apetrechado com asas que, manifestamente, não lhe pertencem, porque possuem uma cor e um corte totalmente distintos. A tradição de fabricar leões de São Marcos com asas roubadas a anjos continua.



No lado oriental da cidade, na jurisdição de Castello, em frente ao portão do Arsenal (fundado em 1104), núcleo do poderio marítimo-militar da antiga república veneziana, pode ver-se um monumental leão de mármore, com três metros de altura, trazido como espólio do porto ateniense de Pireu pelo doge Francesco Moresini, o Peloponesiano, em 1687 - ano em que este explodiu propositadamente o Pártenon na guerra contra os otomanos. A fortíssima explosão só foi possível, porque os turcos tinham transformado parte do Pártenon num paiol. (Acrescento a informação de que quem tiver vontade de saber como era o Pártenon antes da sua destruição, e posterior reconstrução oitocentista, não pode escolher melhor do que ver os desenhos feitos em 1674 pelo artista francês Jacques Carrey.) Este leão de semblante sorumbático mostra marcas reveladoras de que já foi uma fonte, mas esses não são os sinais singulares que o distinguem como criatura de excelência. Em ambos os flancos, este vigilante que, visto de longe, parece feito de sumaúma, exibe uma porção de intrigantes inscrições em feitio de dragões linnormr: motivo decorativo que é típico da arte escandinava. Hoje, esses petroglifos estão perigosamente perto da invisibilidade, mas em meados do século XIX o historiador dinamarquês Carl Christian Rafn foi capaz de lê-los com algum detalhe para os traduzir: concluiu-se que consistem numa mensagem relacionada com uma missão militar executada em Atenas pela tropa pessoal dos imperadores bizantinos: a Guarda Varegue (neste caso foi, presumivelmente, destacada para extirpar uma rebelião). Criada por Basílio II no final do século X (988), essa milícia especial foi composta, quase em exclusivo, por mercenários escandinavos. Em 1914, o linguista sueco Erik Brate propôs uma nova tradução e esta sugere, com elevada probabilidade, que as inscrições foram produzidas em meados do século XI por soldados de naturalidade sueca, invés de dinamarquesa, como se pensava.


Poderia eleger outros exemplos pitorescos e historicamente significativos para concluir estas breves observações sobre os vários leões de Veneza que encontrei nas minhas perambulações, mas penso que nada seria mais adequado do que assinalar a estranheza e unicidade do leão que está sobre uma porta da Calle Diedo, na jurisdição de Cannaregio, num dos flancos do setecentista Palazzo Diedo. É um leão de São Marcos, mas coroado e com asas de morcego (ou dragão) - contrastando totalmente com o semblante benfazejo da mansa mascote marcolina. (Por coincidência, o Palazzo Diedo é a sede do Tribunal de Vigilância de Veneza.) O arquitecto do palácio foi Andrea Tirali, responsável pelo enigmático padrão geométrico que cobre o chão da Praça de São Marcos e cuja litognosia só pode ser alcançada convenientemente de um ponto de vista elevado.

Esta menção à geometria e à arquitectura dá o mote para olhar outro aspecto desta Veneza inesperada: referências maçónicas. O maçon veneziano mais famoso para o grande público é, sem dúvida, Giacomo Casanova, que, em 31 de Outubro, conseguiu fugir da cadeia I Piombi (Os Chumbos): conjunto de celas exíguas situadas no sótão da labiríntica ala este do palácio do doge, sob o telhado revestido com placas de chumbo, e reservadas para prisioneiros políticos e figuras de relevo. (Na verdade, Casanova foi preso por maçonismo.) Do ponto de vista desta temática, Veneza apresenta algumas sugestões interessantes para interrogarmos.
    

Veneza maçónica e templária

 
É admissível que a instituição da maçonaria em Veneza esteja ligada à visita, em 1729, de Thomas Howard, grão-mestre da Grande Loja de Londres, que terá, para o resultado, fundado uma inaugural loja chamada União, maioritariamente composta por ingleses (mais ou menos à semelhança da primeira loja maçónica portuguesa, fundada pelo proprietário inglês William Dugood, que ficou conhecida pelo nome de Loja dos Hereges Mercadores, porque só tinha britânicos protestantes como membros), mas aquela que é apontada como tendo sido a primeira loja maçónica de Veneza foi a francófila La Fidelité, fundada na jurisdição de Santa Croce e que operou até 1785 no Palazzo Contarini, ao Rio Marin, com o objectivo de desenvolver ideais iluministas franceses.



Pela cidade, existem alguns elementos intrigantes, em relação à mitologia maçónica. Na jurisdição de São Marco, no lado oeste da cidade, uma placa anódina (datada de 1482) passa despercebida à maioria dos visitantes e dos residentes: entre as duas janelas frontais de um segundo andar, ela consiste no emblema da antiga Scuola dei Mureri (Confraria dos Pedreiros), fundada no século XIII.
As confrarias de trabalhos manuais (pedreiros, sapateiros, carpinteiros, tanoeiros, calafates, etc.) eram consideradas menores, em relação às confrarias de índole penitencial (religiosas), mas, ainda assim, os seus membros estavam socialmente acima dos trabalhadores não-especializados, embora ocupassem, também, um lugar inferior na hierarquia veneziana, cujos altos níveis eram preenchidos por (em ordem descendente) magistrados (doge, conselho dos dez, conselho maior, senado), pela nobreza e a alta burguesia e pelos burocratas.


Na jurisdição de San Polo (mais perto do centro da cidade), pode ver-se na parede de um edifício anexo à Igreja de Sant’Aponal (Calle del Campaniel), novamente ao nível do segundo andar, uma placa em baixo-relevo (datada de 1652) que revela ao observador atento os quatro mártires padroeiros dos ofícios de pedreiro, canteiro e escultor: os chamados Quatro Mártires Coroados. É uma imagem que assinala a Scuola dei Tagliapietra (Confraria dos Talhadores de Pedra) que se mudou para esse local em 1515. O hagiológio não é consensual quanto ao número e às identidades dos Quatro Mártires Coroados, nem no que concerne às circunstâncias em que foram cruciados, mas, em simplificação, exponho a versão mais consentânea com o tema destas linhas, que se resume ao relato de como quatro escultores romanos, convertidos ao cristianismo, se recusaram a fazer uma estátua daquilo que consideraram ser um falso deus e foram martirizados por culpa disso pelo imperador Diocleciano. Nebulosa, a lenda dos Quatro Mártires Coroados dá o nome a uma das instituições que mais tem contribuído para iluminar a história maçónica de um ponto de vista factual: a Quatuor Coronati Lodge nº2076, uma loja de pesquisa, fundada em Londres no ano de 1886, que edita a importante publicação anual Ars Quatuor Coronatorum.



Apesar de todos os indícios de ligações entre a maçonaria operativa (guildas de pedreiros e canteiros) e a especulativa (obediências maçónicas contemporâneas), as origens do Ofício ainda não foram apuradas; em rigor, no que diz respeito às origens da maçonaria como hoje é entendida, não se pode recuar mais do que o último quartel do século XVII. Nesse sentido, muita simbologia considerada maçónica tem de ser contextualizada no tempo e interpretada de acordo com a cronologia. Um bom exemplo é a Igreja de la Maddalena, no Campo della Maddalena, na jurisdição de Cannaregio. Manifestamente, transmite a ideia de ser um templo maçónico, com a sua estrutura cilíndrica e um monumental Olho da Providência sobre a porta principal, mas sabe-se que o símbolo do olho dentro do triângulo é cristão e antecede em muitos séculos a sua adopção pela maçonaria (assim como a estrutura cilíndrica do templo). Neste caso, a igreja é ou não de inspiração maçónica? O contexto histórico inclina-nos para uma aclaração: este templo foi construído entre 1763 e 1790, logo é plausível que seja de inspiração maçónica e que o símbolo do Olho da Providência sobre a porta para ela remeta. Outros indícios que fortalecem esta suspeita são os seguintes: no interior, encontra-se o túmulo do seu arquitecto, Tommaso Temanza, decorado com o símbolo do compasso e do esquadro; e sob o grande Olho da Providência pode ler-se uma inscrição que diz «a própria sabedoria construiu esta casa» - mote demasiado secular para uma igreja tradicional, mas harmonizado com o espírito maçónico continental do período iluminista.


O túmulo de uma personalidade associada ao círculo social frequentado por Temanza apresenta uma configuração igualmente ambígua, mas, somados todos os elementos constituintes, de fortíssima inspiração maçónica. Encontra-se no interior da Basilica dei Frari, no Campo dei Frari, na jurisdição de San Polo, e consiste no mausoléu do escultor Antonio Canova: uma colossal pirâmide que em conjunção com o busto de Canova, amparado por duas imagens angelicais, compõe o símbolo do Olho da Providência – aqui, iluminado de modo admirável por duas janelas que se lhe sobrepõem. No entanto, o modelo que serviu de inspiração a esta composição foi desenhado por Canova para ser o túmulo do pintor Ticiano (situado à sua frente na mesma igreja), tendo sido adaptado posteriormente pelos seus discípulos para ser seu mausoléu (embora apenas o coração e a mão direita se encontrem no interior, porque Canova está sepultado no magnífico templo que projectou para a vila de Possagno, onde nasceu – a sessenta quilómetros de distância de Veneza).
No cemitério dos Prazeres, em Lisboa, pode visitar-se o mausoléu dos Palmela – o maior jazigo privado da Europa. Uma construção piramidal, da autoria de Giuseppe Cinátti, que conserva no seu interior uma das melhores obras de Canova: o cenotáfio de Pedro de Holstein, primeiro duque de Palmela, sepultado na Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma.


 

Outro exemplo de iconografia ambígua é o símbolo da farmácia Alla Colonna e Mezza (A Coluna e Meia), no Campo San Polo, que apresenta duas colunas: uma inteira e uma quebrada. Em maçonaria, um dos significados que o símbolo da coluna quebrada encerra é o de que o trabalho nunca fica completo, mas, em última análise, a adopção maçónica deste símbolo data das primeiras décadas do século XIX, sendo que já era usado, entre outras conjunturas, para assinalar a morte – é, assim, um símbolo muito comum em cemitérios (em maçonaria também pode ter este significado). As colunas maçónicas são várias, mas as mais conhecidas são as salomónicas que se erguem à entrada dos templos maçónicos: Bo’Az (à esquerda segundo o Rito Escocês Antigo e Aceite e à direita segundo o Rito Francês) e Iakin (à direita segundo o Rito Escocês Antigo e Aceite e à esquerda segundo o Rito Francês). Contudo, o símbolo desta antiga farmácia veneziana tem outra origem, de carácter muito diferente.
Aparentemente, a farmácia abriu em 1576 com o nome Alle Due Colonne (As Duas Colunas), mas na jurisdição de Cannaregio já existia uma farmácia com esse nome e, dez anos depois, aquela foi obrigada, finalmente, a mudar de nome: para o efeito, apenas cinzelou fora metade de uma das colunas do seu símbolo, transformando-se na farmácia A Coluna e Meia. Quanto às duas colunas da primeira farmácia, que visitaremos em outro capítulo destas fábulas venezianas, serão, certamente, as duas colunas da Piazzetta de São Marcos.



Para terminar a primeira parte deste passeio por Veneza vamos voltar atrás, até ao Campo de Sant’Aponal. A partir daí, entre-se na Calle del Perdon até que, logo à direita, desponte o Sottoportego della Madonna (Pórtico da Virgem). A palavra sottoportego, relacionada com a nossa palavra sótão (que já significou cave), deriva do nome em latim subtulu que tem o significado de debaixo de. Ora, um sottoportego é, pois, um pórtico que fica por baixo – neste caso, por baixo das casas. Neste sítio, encontram-se duas placas de madeira que compõem uma peça intrigante: uma imagem do Papa Alexandre III acompanhada por uma descrição de como este dormiu ali, ao relento, em Julho de 1177, quando viajou até Veneza para fechar o tratado de paz com Frederico Barba Ruiva, imperador do Sacro Império Romano-Germânico (na basílica de São Marcos, um losango de pórfiro assinala o local em que Frederico se terá ajoelhado diante do Papa). A decisão de dormir na rua naquela noite, protegido pela guarda pessoal, foi motivada pela ideia de que poderia ser assassinado na sua residência oficial; nesse feitio, para desorientar supostos sicários, fez o leito sob o Sottoportego della Madonna, sítio onde ninguém se lembraria de procurá-lo. Esta história não passa de uma lenda, mas, independentemente disso, tem atraído um culto heterodoxo.


A tradição celebra que a guarda pessoal do Papa era constituída por cavaleiros templários – a ligação próxima de Alexandre III aos templários tem sido muito debatida, até com o seu reconhecimento de D. Afonso Henriques como rei de Portugal (através da bula Manifestis Probatum de 1179) como sinal dessa proximidade, pois, em algumas leituras da nossa história, D. Afonso Henriques e a ordem templária terão sido aliados muitíssimo próximos (mais do que isso, a fundação de Portugal teria sido um empreendimento templário). Seja como for, o que é factual é que o Sottoportego della Madonna conserva um santuário singular: nele, sob uma imagem da Virgem, pode ver-se uma imagem de Alexandre III a dormir, vigiado por um cavaleiro templário, e, mais abaixo, incrustada em baixo-relevo, está uma cruz de tipo templário. No tecto do pórtico encontram-se pregadas inúmeras placas de madeira com inscrições entalhadas em latim, além de outras gravadas naquilo que se afigura como sendo sistemas de alfabeto maçónico. Vale a pena lembrar o discurso de Andrew Ramsay, de 1736, que deu origem à ideia de que a maçonaria procede da ordem do templo – pese Ramsay ter falado, sim, na Ordem dos Cavaleiros Hospitalários (ou Ordem de Malta).
Na verdade, a cruz que está no santuário também faz lembrar uma cruz de malta.


(Fotos: Gisela Monteiro.)