sexta-feira, 7 de março de 2014

Apontamentos sobre Arte #1


Objectos de arte e objectos artísticos 

Um dos problemas que obstaculiza a apreciação daquilo que constitui arte e daquilo que não constitui arte encontra-se na convivência, muitas vezes forçada, entre objectos de arte e objectos artísticos.

Um filme (para usar como exemplo uma linguagem - a cinematográfica - que, para o bem e para o mal, tornou-se no grande medidor universal da cultura contemporânea) pode ser culturalmente e esteticamente significante para ser classificado como obra de arte, mas serão arte, por mérito próprio, os seus cenários e guarda-roupa? Um bolo faz-se de ovos, farinha e açúcar, mas estes ingredientes não são o bolo.

A diferença reside no facto de que cenários e guarda-roupa são criados para servir um filme, enquanto que um filme é criado como um fim em si mesmo. Um dos axiomas mais discutidos sobre arte é, precisamente, se esta é algo que existe enquanto um fim em si mesmo, livre de quaisquer critérios utilitários; sendo que, muitas vezes, é o carácter utilitário dos objectos, muito mais do que a sua harmonia ou desarmonia, que os impede de candidatarem-se a objectos de arte. Pode considerar-se que, neste exemplo, o guarda-roupa e os cenários são objectos artísticos, porque existem valores estéticos elevados e saberes técnicos rigorosos nas suas confecções, mas não são objectos de arte, porque estão ao serviço do filme - e estando ao serviço significa que são usados, logo não são arte. Mormente são, até, destruídos quando deixam de ser necessários para as filmagens. A arte não tem como finalidade a instrumentalização - nem a mais refinada, nem a mais brutal - e, ainda menos, a efemeridade. Toda a arte tenta ter a eternidade por horizonte.

Em certos casos, as peças ou os componentes de um objecto de arte precisam de ser recuperados, restaurados, substituídos, mas nenhuma dessas operações lhe irá confiscar o título de objecto de arte, porque este possui uma espécie de corpo astral que transcende a matéria: a arte faz-se sempre de uma idealização e de uma corporização. Uma vez terminado, o objecto de arte imprime essa configuração híbrida na cultura que o vê nascer e essa impressão servirá tanto de bilhete de identidade como de passaporte.

Se assim não fosse, a falsificação seria impossivel, porque só o mimetismo mais perfeito consiste em falsificação: não existem falsificações falhadas. As tentativas vãs mostram-se tão distantes do objecto de arte a imitar que se tornam objectos distintos. Exemplos há de tentativas desse tipo que se tornaram obras célebres - por vezes, feitas pelos próprios artistas que autoraram os objectos de arte originais. Aqui, insere-se outro axioma discutido sobre o objecto de arte: o de que é, por natureza, único e irrepetível. Quando o objecto de arte original serve de molde a manufacturas idênticas, seja uma ou múltiplas, não se fala mais de arte, mas de artesanato; algo que é semelhante, mas desigual à reprodução seriada de um objecto artístico, também com fito comercial, como, por exemplo, as centenas ou milhares de exemplares impressos de um livro. Com efeito, uma pintura, em tela ou em painel, tem de ser vista, presenciada, para que a pintura possa existir enquanto arte. Ora, a tela da literatura, entenda-se, é o livro e a literatura só é arte se for lida; mas como a leitura é um acto individual, a lógica é a de que tem de imprimir-se o maior número possível de livros de uma obra literária, porque de outra forma ela nunca chegaria a fruir: não pode expor-se a literatura do mesmo modo que a pintura, observada por milhares de pessoas ao mesmo tempo numa sala de um museu. Diferentes artes têm diferentes estratégias de chegar às pessoas para criarem o seu público, para transmitirem as suas mensagens e, se for o caso, para comunicarem. Neste sentido, o livro é um objecto artístico, enquanto que o texto é um objecto de arte.



Um olhar crítico sobre alguma crítica de arte

A avaliação crítica de um objecto contemporâneo de arte é muitíssimas vezes baseada na mais elementar salvaguarda da reputação intelectual e social do crítico que sobre aquele discorre (com os valores económicos e culturais vigentes nesse período em mente), em vez de ser baseada, verdadeiramente, no valor artístico que possua. Daí que o tempo, tantas vezes, se encarregue de resgatar e valorizar objectos de arte que foram votados à invisibilidade nos seus momentos originais de apresentação, mas que, uma vez dissipados ou desvalorizados os padrões económicos e culturais que os censuraram, poderão usufruir de uma vida nova, junto de um público novo, que, livre de antigos preconceitos, agendas e compromissos, se regozijará com eles.

Em suma, quanto mais um objecto contemporâneo de arte estiver encastrado num escalão social e artístico elevado, mais o factor economicista pesará na sua avaliação crítica, mas, de maneira geral, esse juízo crítico tem como autêntico objectivo a pura conservação do próprio crítico no estrato social ao qual pertence - ou ao qual pretende pertencer: nesse sentido, a avaliação crítica do objecto contemporâneo de arte é, somente, uma prosaica plataforma para se criar um discurso confortável que vá ao encontro dos padrões estéticos e intelectuais e de linguagem endémicos dos indivíduos que são reconhecidos nessas comunidades restritas como sendo os seus mais importantes representantes - e sem os quais essas comunidades nem sequer existiriam, provavelmente. No entanto, como é árduo, se não impossível, criar um discurso desse feitio, porque não existe, como é natural, uma linguagem simultaneamente sofisticada e sicofante (existem as linguagens da publicidade e da propaganda, que são intoleravelmente vulgares - mesmo para um crítico desesperado - mas que, ainda assim, são, por vezes, desavergonhadamente, utilizadas), esse texto invisível, digamos assim, tem de ser formulado, em exclusivo, com o recurso ao cânone histórico e estético tradicional - que, nestes casos, para o efeito pretendido, tem de ser tornado críptico, obscuro ou, pelo inverso, totalmente superficial, inócuo e desvinculado em relação ao objecto contemporâneo de arte enunciado, porque esse, em si, não interessa absolutamente nada para a inscrição do crítico num determinado bioma; ou seja, não interessa se o discurso crítico artístico se relaciona com o objecto contemporâneo de arte, mais as interrogações que este poderia suscitar, porque os autênticos destinatários do discurso só estão interessados em perceber se o crítico lauda e promove os padrões estéticos e intelectuais da comunidade à qual pertence - por motivos largamente economicistas ou até por motivos de simples coesão de grupo - do que em perceber quais são os méritos artísticos do objecto. Embora se apresentem nos espaços públicos de opinião, estes são, maioritariamente, discursos pensados e preparados para as expectativas de consumidores internos e inflexíveis muito específicos.

Na realidade, quantos críticos de arte gostariam de falar sobre certos objectos contemporâneos de arte e não podem fazê-lo, porque estes encontram-se além da fronteira daquilo que é aceite (por várias razões, desde o preconceito de classe, o preconceito voltado contra certas instituições de ensino artístico, os ódios e as preferências de estimação, as tendências do mercado, etc.) pelos seus grupos de pertença? Aqui, entende-se, perfeitamente, que o problema da crítica contemporânea de arte, como o velho problema do snobismo, é sempre - e será sempre, calcula-se - um problema de pertença.
"Será seguro falar sobre isto?", "será que irei ser posto de parte pelos meus pares por falar sobre isto?", "até gostaria de falar sobre isto, mas será que me deixarão?", "gostaria de falar muito bem disto, mas pediram-me que falasse menos bem". Neste domínio, como em tantos outros, o preço a pagar pela independência - até pela independência intelectual, que, se calhar, é a única que poderá existir verdadeiramente e, assim, é aquela que interessa conservar - é o isolamento.