terça-feira, 28 de abril de 2015

Teaser de «O Poema Morre»


Vinheta do meu próximo livro de banda desenhada O Poema Morre (Kingpin Books, 2015), escrito por mim e desenhado por Sónia Oliveira (www.facebook.com/cirandara). Consiste numa reflexão sobre a guerra e os seus efeitos no indivíduo e na sociedade, partindo do ponto de vista de um poeta maldito por todos os regimes políticos que vai atravessando. A guerra vai eclodir lá para os últimos meses do ano, portanto: poderão ir escavando os abrigos, porque a saraivada vai ser a mais violenta possível.

Sobre liberdade e sobre silêncio


1) A liberdade é uma dimensão, medida criptogenésica pela qual, com maior ou menor incorrecção, nos referenciamos: é o espaço que existe entre heurística e hermenêutica; espécie rarefacta de partícula, visível que nem poeira entre luz desenfeixada por frinchas de janelas, mas, rapidamente, esvaecida. Dessa sorte, idoneísta, não pode ser definida como definitiva - somente deixada em aberto.


2) Compreendo a razão pela qual os anacoretas se entregavam à vida contemplativa, despojando-se de todas as superfluidades, eremicolando-se em ermos eremitágios: à medida que se vai envelhecendo, reduz-se o número de coisas de que se gosta, restando, somente, uma paixão, uma adesão tremenda a uma única fonte maior de luz, ofuscante das menoridades. Assim, tornando-se ruído o remanescente, procura-se o silêncio: o silêncio geográfico e psicogeográfico. Nenhum deserto será tão árido e nenhum despovoado tão vazio se o indivíduo que os atravessa estiver cheio.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Sobre Gigantes Perdidos & Achados

 Talvez a melhor forma de iniciar esta breve (espero) publicação seja admitir que tenho uma tolerância incomum para com matérias bizarras e, à falta de palavra melhor, estúpidas; e que essa faculdade de, digamos de modo educado, invocar indulgência para com o estrambótico é, ao fim e ao cabo, uma ferramenta útil para os meus estudos e observações do lado mais desengonçado da experiência humana: é, de facto, difícil investigar e examinar, com rigor, certas matérias sem possuir estômago forte para engolir determinadas concepções arvoradas pelos pugnadores dos pseudoconhecimentos. No entanto, existem ideias marginais pertencentes a esses universos que consistem em verdadeiros testes de resistência à minha transigência, doutrinas e fantasias tão disparatadas -- e aborrecidas, o que, às vezes, é ainda pior -- que, com toda a sinceridade, escapa-me totalmente a força atractiva com a qual elas entusiasmam outros indivíduos: uma dessas ideias insensatas é a da pseudo-existência de antepassados gigantescos da espécie humana, um tropo familiar da pseudo-história e da pseudo-arqueologia, frequente em inúmeras teorias das conspirações.

Na Internet existirão milhares de fotomontagens, umas mais bem feitas que outras, sobre falsas escavações arqueológicas, nas quais pode observar-se técnicos minúsculos, ainda com as pás nas mãos, junto de ossadas inteiras de gigantes, desenterradas em perfeito estado de conservação, que nem conjuntos de porcelana Vista Alegre acabados de cobrir de terra. Com efeito, não compreendo, de todo, o fascínio sentido pelo gigantes. A maioria do público não terá um interesse mais profundo por esta ideia e, somente, lhe achará graça ou sentir-se-á entretida, mas, além dessa epiderme, os gigantes são um tema atractivo para muitos campos de pseudoconhecimentos: crentes na verdade literal dos textos bíblicos; evemeristas; crentes nas teorias dos Antigos Astronautas e da Génese Extraterrestre; autores mais ou menos racistas que têm como objectivo transmitir ao grande público a noção de que as culturas autóctones de certos locais, como a América do Norte, por exemplo, seriam incapazes de construir determinados monumentos megalíticos -- o catálogo de admiradores desta ideia, para os mais variados fins, é, na verdade, muito extenso.

Neste momento, o Canal História capitaliza o interesse pelos gigantes numa série televisiva intitulada Gigantes Perdidos: ao longo de seis episódios, o espectador é convidado a acompanhar as desventuras de Jim e Bill Vieira, dois irmãos, pedreiros, que debalde andam pela América do Norte à procura de vestígios e provas da existência dos gigantes de outrora. Quando escrevi que eles são pedreiros, não enfatizei de modo preconceituoso (para os pedreiros) a canhestrice destes pseudo-investigadores: eles são pedreiros de profissão -- são trolhas. Aparentemente, a série apoia-se no facto deles serem pedreiros de profissão para os apresentar como examinadores credíveis de monumentos megalíticos: são opiniões de especialista -- e, pelo que vi, os irmãos Vieira compõem sempre um ar espaventado pelo facto dos monumentos que vão examinando terem sido construídos sem argamassa. (Só gigantes poderiam ter sido capazes dessa heresia.)

É, em todos os sentidos, um paupérrimo espectáculo. É desanimador ver os Vieira armados em arqueólogos, saltitando de local em local, que nem gralhas em busca de ossos brilhantes de gigantes. É puro lixo televisivo, mas, lá está!, haverá quem encontre nestas personagens de pacotilha os seus campeões de charneira contra a grande conspiração engendrada pela academia para suprimir ao público as provas da existência de gigantes. O facto de, logo no primeiro episódio da série, os Vieira acharem que uma rede labiríntica de túneis com pouco mais de sessenta centímetros de altura ser um local sagrado para seres com mais de três metros de altura não consistiu em nenhum obstáculo para as suas indigentes explorações. É tão mau que nem sequer dá vontade de rir.

De um ponto de vista fisiológico, a existência de homens gigantes, como são apresentados pelos cultores dessa ideia -- ou seja, um esqueleto de proporções comuns, mas com um tamanho muito superior ao normal --, é impossível. Em primeiro lugar, os organismos maiores perdem calor lentamente (é por esse motivo que os povos do hemisfério norte, em regra, são mais altos e mais corpulentos que os do hemisfério sul: é uma defesa que a selecção natural encontrou para se conservarem quentes em climas frios), o que implicaria que um hipotético indivíduo gigante com, digamos, três ou quatro metros de altura, iria sobreaquecer e entrar rapidamente em colapso: dando de barato o facto do seu esqueleto gigante, proporcional ao de um tamanho normal, ser capaz de suportar o peso de um corpo desmesurado, sem que os ossos das pernas fossem muito mais espessos (como os dos elefantes) e, claro, que o coração não fosse, também, maior que o esperado, de modo a bombear com velocidade o sangue para todas as partes do organismo. As girafas, por exemplo, não têm corações assim tão grandes, quando comparados com o tamanho dos corpos, mas contornam esse problema possuindo uma tensão arterial altíssima (quase três vezes mais alta que a nossa) e uma pulsação elevada. Um hipotético gigante humano que quisesse manter um truque dessa natureza precisaria de uma dieta riquíssima em sódio (a verdade é que as dietas pobres em sal, tão em voga, provocam hipotensão e podem levar à morte) o que seria um problema, porque quanto maior é um organismo, mais alimento ele precisa ingerir para sobreviver: em suma, o gigante teria de passar o dia inteiro a comer. Os elefantes comem mais de trezentos quilos de alimentos por dia e as baleias ingerem toneladas. Os únicos verdadeiros gigantes na natureza, as árvores, são capazes de atingir alturas maciças, simplesmente porque fabricam o seu próprio alimento -- são autotróficas --, transformando dióxido de carbono em açúcar e oxigénio e não precisam de locomover-se para o efeito.

A testar os limites do crescimento do corpo humano, cite-se o caso do norte-americano Robert Wadlow: o homem mais alto de que há registo, com mais de dois metros e setenta centímetros de altura (e com um peso de duzentos quilos). Wadlow, que podem ver na imagem que ilustra este texto, morreu com vinte e dois anos de idade e, a essa altura, só se conseguia deslocar com o auxílio de bengalas e outros apetrechos similares, além de sofrer de má circulação e problemas neuropáticos nas pernas e nas mãos. À data da morte (15 de Julho de 1940), ainda continuava a crescer, pelo que pode especular-se sobre até que altura iria desenvolver-se sem que a sua vida, já muito limitada pelos problemas derivados do seu tamanho, fosse irremediavelmente prejudicada. Este gigante real prova, definitivamente, a impossibilidade dos cenários sonhados pelos cultistas da ideia dos Antigos Gigantes.
Termino com a curiosidade de Wadlow também ter sido pedreiro, mas pedreiro-livre: foi maçon e chegou ao terceiro grau simbólico de Mestre. Suspeito que este facto tem dado muitíssimo que falar aos teóricos das conspirações.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Vídeo da palestra «À Mercê da Medicina» em Sustos às Sextas

 
Na passada sexta-feira, dia 17, fui o palestrante convidado do ciclo de palestras sobre horror Sustos às Sextas, evento organizado pela associação cultural Thinkers e que ocorre mensalmente na sede da Fundação Marquês de Pombal, em Linda-a-Velha. A minha palestra teve como título À Mercê da Medicina: Farmacologia Canibal Europeia e Portuguesa na Prática e na Cultura e consistiu numa escalpelização rigorosa sobre o fenómeno da medicina canibal ocidental, contextualizada a partir das posições histórico-sociais das práticas canibalísticas rituais e apotropaicas. O vídeo que poderão ver nesta publicação consiste num excerto dessa exposição.



Em paralelo, nesse dia foi, também, o meu aniversário, razão pela qual fui surpreendido com uma celebração que teve no bolo negro que podem ver na foto, em baixo, o elemento ritual de despedaçamento e consumo.


segunda-feira, 13 de abril de 2015

Günter Grass (1927-2015)


Só agora soube da morte de Günter Grass: morreu um dos melhores escritores de sempre e uma das minhas mais ricas e queridas influências. A importância da obra de Grass na minha formação autoral foi enorme e são raros os meus livros em que não se encontra uma referência ou homenagem a passagens e personagens dos seus livros. A literatura ficou mais pobre e desinteressante: adeus, Grass. Vemo-nos, como habitual, na estante.
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PS: acabam de informar-me que hoje, 13 de Abril, também morreu o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), cujos livros admiro. Enfim, sem comentários.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Manoel de Oliveira (1908-2015)



A última longa-metragem de Manoel de Oliveira, O Gebo e a Sombra (2012), que adapta uma peça teatral de Raul Brandão, é uma súmula espantosa do seu cinema, com um engenhoso equilíbrio imagético e verbal e uma fotografia lindíssima. A melhor homenagem que podem dar a Manoel de Oliveira é ver, rever e descobrir sempre coisas novas nos seus filmes: filmes que, sublinhe-se, recusam o mimetismo naturalista, sob o qual a arte tem de aproximar-se da vida. Não existem âncoras, no sentido de peso e de fixação que a palavra comporta, no cinema de Oliveira. Pode gostar-se menos ou mais da estética especial que ele inaugurou, ou apreciar-se mais uns filmes do que outros, como é natural, mas é inegável que Oliveira é um caso singular no cinema português e internacional. Poucos cineastas evocam, à partida, uma ideia análoga de liberdade cinematográfica, porque o cinema de Oliveira é totalmente livre. Talvez Kiarostami ou Dryer, que são os nomes que, neste momento, me surgem na lembrança (outros haverá, certamente). Empatizo totalmente com a estética oliveiriana, diga-se assim, de recusar liminarmente a velocidade: não a velocidade do dinamismo e da compreensão arguta, que essa está lá, mas a velocidade distractiva e superficial do frenético êxtase das montagens ultra-rápidas que nem sequer nos deixam observar convenientemente aquilo que está a ser mostrado. Entrar num filme de Oliveira é sempre entrar num espaço de pensamento, como num museu ou num templo: entra-se e cala-se para deixar falar a voz da inteligência. Quando se assimila esse preceito, o cinema de Oliveira é uma enriquecedora experiência.