Montaigne
foi um individuador, disso não duvido; fresco que venho de mais uma releitura
dos seus ensaios, aos quais, brioso, retorno sempre que exequível. Foi, também,
um católico paradoxal – mas não no sentido translatício que, hoje, se poderia
empregar para designar um católico liberal (ou “não-praticante”). Com efeito, o
rigorismo de Montaigne aproxima-o, in limine, de determinadas atitudes
evangélicas; como, entre outras, a insistência na pureza de pensamento no acto
da oração, tropo que critica evocando um dos contos de Margarida de Navarra
sobre o cinismo de Francisco I, que, nessa narrativa, corta caminho pelo
interior de um mosteiro em direcção à casa da amante, não se coibindo de rezar
virado para o altar a cada ida e vinda (no Heptamerão, publicado postumamente
em 1558*). Todavia, em oposição aos pregadores protestantes, Montaigne desconfiava
das iniciativas de traduzir-se os textos sagrados para vernáculo; estratégia de
divulgação que considerava revogadora da subtil mensagem mistérica – até mesmo
iniciática – do corpus crístico.
A
esta altura, introduzo uma perspectiva singular que a recente releitura de
Montaigne me proporcionou: a de que ele é uma espécie de Cristo do estoicismo.
Na verdade, Montaigne é várias vezes seduzido pela ideia que defende uma
familiaridade intrínseca entre o cristianismo primitivo e a filosofia estóica;
todavia, o autor, de maneira um pouco desorientadora, talvez, em virtude da sua
reiterada austeridade, protege a inconstância** intelectual da criatura humana –
se o estoicismo defende que o homem sábio é aquele que foi capaz de alcançar o
estádio de desejar sempre a mesma coisa e rejeitar sempre a mesma coisa***,
Montaigne aconselha a não esperar outra coisa do ser humano, senão a
volubilidade. No fundo, é o assumir da improbabilidade do ideal estoicista,
provavelmente apenas conseguido pelos mais irredutíveis ascetas – ou pelos
santos, o que é quase traduzir no mesmo. Assim, sobre este assunto, sintetizo o
credo de Montaigne na seguinte fórmula: o estoicismo foi criado para o homem,
não foi o homem a ser criado para o estoicismo.
Não
duvido que se Montaigne tivesse, em concreto, enveredado pela sistemática escrita de filosofia teria operado uma mudança profunda nessa corrente filosófica – tão profunda
quanto as sismogenias que convulsionaram o universo teológico do seu tempo.
*
Penguin Books, 1986, dia III, conto 25, pp. 288-289.
**
Na França quinhentista, a palavra “inconstante” relacionava-se, com maior adequação,
com a noção de “diversidade” e não tanto com a de “instabilidade”. Porém, pode
perfeitamente aceitar-se que Montaigne se alcandora às duas.
*** Segundo Séneca em Cartas
a Lucílio (Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, carta XX, 5, p. 71).