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sábado, 29 de junho de 2019

Tendes alguma coisa que se coma?


Não consiste em nenhuma capciosa conclusão a de que o humanismo de Quinhentos sintetizou a cultura clássica com o cristianismo, porque este, com efeito, dirige-se à dimensão somática do indivíduo, na completa acepção da corporalidade.


Em dois trechos dos evangelhos radica essa obvenção: em Mateus 4,4, a célebre expressão «nem só de pão vive o homem» comporta uma resignificância que intima a pensar que para a restante criação o pão é o suficiente, enquanto que o ser humano, criatura catabática, somente se sacia quando se anula a consciência da falibilidade, quando este, através da cultura, se projecta para além da sombra meramente existencial; o outro excerto, enantiomorfologicamente iterável com o primeiro, pode ler-se em Lucas 24,41, quando Cristo recém-ressuscitado aparece aos espaventados apóstolos e lhes pergunta «tendes alguma coisa que se coma?» — este simbionte antropalelopático do espírito com a carnalidade regressa com fome do além-túmulo, recompondo os seus elementos etéreos com o bocado de peixe assado dado pelos discípulos. 


Este conjunto não-casuístico de ideias familiares a esta — e a que se pode adicionar aquela que está em Marcos 2,27, «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado», que rompe decisivamente com a subordinação mosaica do indivíduo diante do divino — é um repertório de representações revalorizadoras do humano que, no fundo, são já o prenúncio do profundo encentramento operado pelos humanistas cristãos do Renascimento.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Montaigne: poderia ter sido um "Cristo" para o Estoicismo?



Montaigne foi um individuador, disso não duvido; fresco que venho de mais uma releitura dos seus ensaios, aos quais, brioso, retorno sempre que exequível. Foi, também, um católico paradoxal – mas não no sentido translatício que, hoje, se poderia empregar para designar um católico liberal (ou “não-praticante”). Com efeito, o rigorismo de Montaigne aproxima-o, in limine, de determinadas atitudes evangélicas; como, entre outras, a insistência na pureza de pensamento no acto da oração, tropo que critica evocando um dos contos de Margarida de Navarra sobre o cinismo de Francisco I, que, nessa narrativa, corta caminho pelo interior de um mosteiro em direcção à casa da amante, não se coibindo de rezar virado para o altar a cada ida e vinda (no Heptamerão, publicado postumamente em 1558*). Todavia, em oposição aos pregadores protestantes, Montaigne desconfiava das iniciativas de traduzir-se os textos sagrados para vernáculo; estratégia de divulgação que considerava revogadora da subtil mensagem mistérica – até mesmo iniciática – do corpus crístico.

A esta altura, introduzo uma perspectiva singular que a recente releitura de Montaigne me proporcionou: a de que ele é uma espécie de Cristo do estoicismo. Na verdade, Montaigne é várias vezes seduzido pela ideia que defende uma familiaridade intrínseca entre o cristianismo primitivo e a filosofia estóica; todavia, o autor, de maneira um pouco desorientadora, talvez, em virtude da sua reiterada austeridade, protege a inconstância** intelectual da criatura humana – se o estoicismo defende que o homem sábio é aquele que foi capaz de alcançar o estádio de desejar sempre a mesma coisa e rejeitar sempre a mesma coisa***, Montaigne aconselha a não esperar outra coisa do ser humano, senão a volubilidade. No fundo, é o assumir da improbabilidade do ideal estoicista, provavelmente apenas conseguido pelos mais irredutíveis ascetas – ou pelos santos, o que é quase traduzir no mesmo. Assim, sobre este assunto, sintetizo o credo de Montaigne na seguinte fórmula: o estoicismo foi criado para o homem, não foi o homem a ser criado para o estoicismo.

Não duvido que se Montaigne tivesse, em concreto, enveredado pela sistemática escrita de filosofia teria operado uma mudança profunda nessa corrente filosófica – tão profunda quanto as sismogenias que convulsionaram o universo teológico do seu tempo.    

* Penguin Books, 1986, dia III, conto 25, pp. 288-289.
** Na França quinhentista, a palavra “inconstante” relacionava-se, com maior adequação, com a noção de “diversidade” e não tanto com a de “instabilidade”. Porém, pode perfeitamente aceitar-se que Montaigne se alcandora às duas.  
*** Segundo Séneca em Cartas a Lucílio (Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, carta XX, 5, p. 71).

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

O silêncio é de ouro


Existem muitas estirpes de silêncios no filme de Scorsese, permanecendo, no final, a ambiguidade sobre a qual se refere o silêncio titular: será ao silêncio da ausência de resposta de Deus às preces dos japoneses cristãos perseguidos pelo xogun?; ou ao silêncio cúmplice que os acompanha durante a noite no exterior - silêncio tornado ainda mais opaco pela ausência de som ambiental ou banda-sonora, excepto quando as personagens entram nos espaços interiores, nos quais, suspeita-se, será seguro soltar a palavra? Ou, ainda, ao silêncio opressivo imposto pela novíssima autoridade central japonesa sobre o cristianismo? Avaliando pelos pouquíssimos comentários que ouvi no final da sessão, soprados em surdina por elementos do público, tenho dúvidas sobre se a maioria dos espectadores terá alcançado na mente algum argumento satisfatório sobre esta matéria - ou outra -, considerando que os referidos comentários se pautavam por declarações de aborrecimento ou de que o filme «era uma brutalidade [de tempo, calculo, pois possui pouca violência explícita] e não tinha mensagem» - esta declaração proferida por um cavalheiro de cabelos brancos, desfazendo o mito de que somente as novas gerações não estarão dispostas a entregar-se a um tipo de cinema contemplativo, ambíguo e artístico, como é o cinema exemplificado por este filme de Scorsese.

Com efeito, desenganem-se aqueles que esperarão um filme de época pontuado pela acção contemporânea, ao jeito de, por exemplo, O Último Samurai. Assim, questiono se, de modo geral, existirá - ainda - um grande público (coloco a tónica em grande, porque público há, certamente) para um filme como Silêncio, propositadamente meditativo e flexíloquaz; sem, no entanto, ir tão longe no simbolismo quanto o cinema de Kurosawa. Na verdade, que diria o público que considerou chato o filme de Scorsese diante de Os Senhores da Guerra de Kurosawa, filme de ritmo lentíssimo, embora emocionalmente angustiante, profundamente simbólico e cruel? Estaremos, pois, vivendo no ocaso do cinema que incita a contemplar, do cinema que, insistentemente, faz perguntas, em vez de dar um receituário pré-fabricado de estímulos já experimentados, guiados pavloviamente pela montagem frenética e pela banda-sonora? Não me refiro a herméticos universos autorais isolados, como o caso de David Lynch, entre outros, mas a um cinema de tipo meditativo para o grande público: um que, não recusando contar uma história (seja lá o que isso for...), a conte de um modo que ponha o espectador a agir em conjunto com o filme, a formular hipóteses sobre o que está a ver. De facto, o cinema de Scorsese sempre foi um equilíbrio entre o cinema artístico, de autor, e o cinema de grande público, servido com frequência por uma linguagem estilística e técnica de topo, colocando os avanços mecânicos e visuais de último grito ao serviço de um sentido artístico próximo do simbólico. Não deixa de ser agridoce constatar que a consagração de Scorsese por Hollywood se tenha dado há relativamente pouco tempo e graças a filmes mais convencionais, diga-se assim, quando comparados com as obras a que mais rapidamente associamos o seu nome.

O romance histórico de Shusako Endo, publicado em 1966, já fora alvo de uma adaptação cinematográfica japonesa, estreada no início dos anos setenta, e, também, de uma adaptação livre filmada em 1996 por João Mário Grilo com o título de Os Olhos da Ásia, mas será o filme de Scorsese o que, evidentemente, fará chegar esta história a mais gente e de modo mais incisivo. De um ponto de vista histórico, esta obra - e, calculo, também o romance que adapta - é elíptica: o espectador que não conhecer minimamente o período histórico em questão não compreenderá muito bem o xadrez político complexo da transição do Japão dito feudal (ou senhorial) para uma unificação territorial sob uma autoridade fortemente centralizada num xogunato, nem o papel crucial - fundamental - que os portugueses tiveram nesses desenvolvimentos, em virtude da introdução das armas de fogo nessa sociedade (ainda hoje ocorre todos os anos, em Agosto, na ilha de Tanegashima - lugar onde os portugueses chegaram pela primeira vez ao Japão, em 1543 - um grande festival que recorda e celebra a chegada dos "bárbaros do sul" (os portugueses) e a oferta da espingarda - aliás, o nome da ilha passou a designar o próprio objecto).

Foi a partir de Agosto de 1549, com a chegada de São Francisco de Xavier, que tiveram início as conversões ao cristianismo; conversões a que a emergência em 1603 do xogunato iniciado por Tokugawa Ieyasu (só terminado em 1867) extirpou quase por completo. A sociedade hierárquica e rígida inaugurada pelo xogunato não tolerou o cristianismo, assim como, de maneira geral, a presença ocidental; excepto a de comerciantes holandeses, a partir de 1623, espelhando a espécie de excepcionalidade que existia na China com os portugueses.

Assim, apesar de elíptico, de um ponto de vista histórico, o filme de Scorsese pode consistir num enorme avanço de divulgação histórica, em produtos de entretenimento, da expansão portuguesa e dos seus reais e poderosos efeitos, num estilo de observação já exorcizado da dita "culpa do Ocidente" e dos mitos aliados à propaganda anticolonialista mais radical.

Um filme que apresenta um Japão que, talvez, ainda não tenhamos visto em qualquer outro filme: mais real, mais cruel, mais intolerante. Nesses vectores encontra-se, quanto a mim, o autêntico silêncio titular: o da fé secreta e indizível mantida pelos padres apóstatas, uma fé muda, mas autêntica, que transcende a imanência dos objectos para se concentrar apenas na mente. Nessa perspectiva, a personagem de Kichijiro revela-se quasi-arquetípica, quando se compreende perto do final que o velhaco apóstata em série, aquele que parecia ser um unidimensional oportunista, terá entendido desde o início qual seria, afinal, o segredo desse silêncio precioso. No recente O Herói de Hacksaw Ridge, Andrew Garfield interpretou uma personagem que coloca temerariamente as convicções acima da vida; em Silêncio, o Padre Rodrigues que esse actor compõe é o lado lunar daquela: a vida - a nossa e a dos outros - é o bem supremo, porque sem vida ninguém é livre. O espectador é, pois, livre de julgar por si próprio qual dos dois tipos de heroísmo é o mais virtuoso: o que brota da destruição do corpo sacrificado à morte pelos ideais ou aquele que frui da deformação do espírito de quem se sacrifica pelos ideais mantendo-se vivo.