
Existem
muitas estirpes de silêncios no filme de Scorsese, permanecendo, no
final, a ambiguidade sobre a qual se refere o silêncio titular: será ao
silêncio da ausência de resposta de Deus às preces dos japoneses
cristãos perseguidos pelo xogun?; ou ao silêncio cúmplice que os
acompanha durante a noite no exterior - silêncio tornado ainda mais
opaco pela ausência de som ambiental ou banda-sonora, excepto quando as
personagens entram nos espaços interiores, nos quais, suspeita-se, será
seguro soltar a palavra? Ou, ainda, ao silêncio opressivo imposto pela
novíssima autoridade central japonesa sobre o cristianismo? Avaliando
pelos pouquíssimos comentários que ouvi no final da sessão, soprados em
surdina por elementos do público, tenho dúvidas sobre se a maioria dos
espectadores terá alcançado na mente algum argumento satisfatório sobre
esta matéria - ou outra -, considerando que os referidos comentários se
pautavam por declarações de aborrecimento ou de que o filme «era uma
brutalidade [de tempo, calculo, pois possui pouca violência explícita] e
não tinha mensagem» - esta declaração proferida por um cavalheiro de
cabelos brancos, desfazendo o mito de que somente as novas gerações não
estarão dispostas a entregar-se a um tipo de cinema contemplativo,
ambíguo e artístico, como é o cinema exemplificado por este filme de
Scorsese.
Com efeito, desenganem-se aqueles que esperarão um
filme de época pontuado pela acção contemporânea, ao jeito de, por
exemplo, O Último Samurai. Assim, questiono se, de modo geral,
existirá - ainda - um grande público (coloco a tónica em grande, porque
público há, certamente) para um filme como Silêncio, propositadamente
meditativo e flexíloquaz; sem, no entanto, ir tão longe no simbolismo
quanto o cinema de Kurosawa. Na verdade, que diria o público que
considerou chato o filme de Scorsese diante de Os Senhores da Guerra
de Kurosawa, filme de ritmo lentíssimo, embora emocionalmente
angustiante, profundamente simbólico e cruel? Estaremos, pois, vivendo
no ocaso do cinema que incita a contemplar, do cinema que,
insistentemente, faz perguntas, em vez de dar um receituário
pré-fabricado de estímulos já experimentados, guiados pavloviamente pela
montagem frenética e pela banda-sonora? Não me refiro a herméticos
universos autorais isolados, como o caso de David Lynch, entre outros,
mas a um cinema de tipo meditativo para o grande público: um que, não
recusando contar uma história (seja lá o que isso for...), a conte de um
modo que ponha o espectador a agir em conjunto com o filme, a formular
hipóteses sobre o que está a ver. De facto, o cinema de Scorsese sempre
foi um equilíbrio entre o cinema artístico, de autor, e o cinema de
grande público, servido com frequência por uma linguagem estilística e
técnica de topo, colocando os avanços mecânicos e visuais de último
grito ao serviço de um sentido artístico próximo do simbólico. Não deixa
de ser agridoce constatar que a consagração de Scorsese por Hollywood
se tenha dado há relativamente pouco tempo e graças a filmes mais
convencionais, diga-se assim, quando comparados com as obras a que mais
rapidamente associamos o seu nome.
O romance histórico de Shusako
Endo, publicado em 1966, já fora alvo de uma adaptação cinematográfica
japonesa, estreada no início dos anos setenta, e, também, de uma
adaptação livre filmada em 1996 por João Mário Grilo com o título de Os
Olhos da Ásia, mas será o filme de Scorsese o que, evidentemente, fará
chegar esta história a mais gente e de modo mais incisivo. De um ponto
de vista histórico, esta obra - e, calculo, também o romance que adapta -
é elíptica: o espectador que não conhecer minimamente o período
histórico em questão não compreenderá muito bem o xadrez político
complexo da transição do Japão dito feudal (ou senhorial) para uma
unificação territorial sob uma autoridade fortemente centralizada num
xogunato, nem o papel crucial - fundamental - que os portugueses tiveram
nesses desenvolvimentos, em virtude da introdução das armas de fogo
nessa sociedade (ainda hoje ocorre todos os anos, em Agosto, na ilha de
Tanegashima - lugar onde os portugueses chegaram pela primeira vez ao
Japão, em 1543 - um grande festival que recorda e celebra a chegada dos
"bárbaros do sul" (os portugueses) e a oferta da espingarda - aliás, o
nome da ilha passou a designar o próprio objecto).
Foi a partir
de Agosto de 1549, com a chegada de São Francisco de Xavier, que tiveram
início as conversões ao cristianismo; conversões a que a emergência em
1603 do xogunato iniciado por Tokugawa Ieyasu (só terminado em 1867)
extirpou quase por completo. A sociedade hierárquica e rígida inaugurada
pelo xogunato não tolerou o cristianismo, assim como, de maneira geral,
a presença ocidental; excepto a de comerciantes holandeses, a partir de
1623, espelhando a espécie de excepcionalidade que existia na China com
os portugueses.
Assim, apesar de elíptico, de um ponto de vista
histórico, o filme de Scorsese pode consistir num enorme avanço de
divulgação histórica, em produtos de entretenimento, da expansão
portuguesa e dos seus reais e poderosos efeitos, num estilo de
observação já exorcizado da dita "culpa do Ocidente" e dos mitos aliados
à propaganda anticolonialista mais radical.
Um filme que
apresenta um Japão que, talvez, ainda não tenhamos visto em qualquer
outro filme: mais real, mais cruel, mais intolerante. Nesses vectores
encontra-se, quanto a mim, o autêntico silêncio titular: o da fé secreta
e indizível mantida pelos padres apóstatas, uma fé muda, mas autêntica,
que transcende a imanência dos objectos para se concentrar apenas na
mente. Nessa perspectiva, a personagem de Kichijiro revela-se
quasi-arquetípica, quando se compreende perto do final que o velhaco
apóstata em série, aquele que parecia ser um unidimensional oportunista,
terá entendido desde o início qual seria, afinal, o segredo desse
silêncio precioso. No recente O Herói de Hacksaw Ridge, Andrew
Garfield interpretou uma personagem que coloca temerariamente as
convicções acima da vida; em Silêncio, o Padre Rodrigues que esse actor
compõe é o lado lunar daquela: a vida - a nossa e a dos outros - é o
bem supremo, porque sem vida ninguém é livre. O espectador é, pois,
livre de julgar por si próprio qual dos dois tipos de heroísmo é o mais
virtuoso: o que brota da destruição do corpo sacrificado à morte pelos
ideais ou aquele que frui da deformação do espírito de quem se sacrifica
pelos ideais mantendo-se vivo.