No entrecho do terceiro canto de Os Lusíadas, o poeta português Luís Vaz
de Camões escreveu que «não sei se é
errado, que em tanta antiguidade não há certeza». Uma elegante advertência,
porque o desbravar desse “país da névoa” que é o passado longínquo exige
determinação órfica: é vantajoso ter-se alma de poeta para decifrar o críptico cartório
que são as camadas estratigráficas da Terra – falamos de gente esboroada pela
fricção de milénios, cujo bilhete de identidade é o próprio planeta. Um desses
signos, datado de 300 000 a.C. a 100 000 a.C., encontra-se no núcleo do Palácio
Pimenta do Museu de Lisboa e consiste num lanceolado enigma de sílex,
descoberto numa chaminé vulcânica situada a norte do bairro de Campolide: um pequeno
e paleolítico biface de feitio acheulense.
Do tamanho de um palmo, é uma
progressão directa das mais básicas ferramentas de tipo olduvense que se
caracterizam como sendo seixos talhados sem sofisticação. Apesar disso, algo
que poderá passar despercebido a quem olhar com sobranceria para esses utensílios
é o facto de serem muitíssimo difíceis de reproduzir: não se faz um biface, nem
sequer uma ainda mais simples ferramenta olduvense de corte, somente batendo
aleatoriamente e repetidas vezes com uma pedra em outra. Há razão nesses objectos
– há um plano. Isso é reconfortante, porque revela que alguém, num esvaecido
momento, olhou para uma pedra de quinze centímetros de tamanho e viu uma
ferramenta nela escondida – tal como o polímate florentino Miguel Ângelo viu a
estátua de David escondida dentro de um bloco de mármore de seis metros de
altura. Num remoto dealbar alguém agarrou uma pedra e esculpiu
tridimensionalmente a imagem que concebera mentalmente. É uma tarefa tremenda.
Mas para quê esculpir um biface? Porquê perder tempo e energia com algo tão
exótico?
Esse género de ferramentas foi originalmente
pensado para extirpar com eficiência o tutano de dentro dos ossos de presas
caçadas por predadores de maior porte. Os nossos antecessores hominídeos não
começaram a comer a carne proveniente das suas próprias caçadas, mas adquiriram
o apetite por proteínas carcomendo os ossos e sugando o tutano de animais já abatidos;
assim, logo que os grandes predadores se afastavam, saciados, das carcaças, os
pequenos bandos da nossa progénie aproximavam-se e, graças à mais avançada
litotecnologia, abriam os ossos e raspavam-lhes o tutano em poucos instantes.
Era mais eficaz que usar apenas os dentes e as mãos desarmadas – mais
importante, era mais rápido e isso garantia uma refeição satisfatória antes que
animais perigosos sentissem o cheiro das ossamentas despedaçadas. O tutano e a
gordura animais são muitíssimo nutritivos e essa dieta, complementada com a
produção das ferramentas de pedra necessárias para obtê-la, espoletou a expansão
encefálica. O pensamento abstracto é fundamental para a criação de excêntricas ferramentas
de pedra e, ao mesmo tempo, elas incrementam a capacidade de raciocinar de modo
abstracto e despertam a aptidão de ordenar criativamente essas abstracções: o
cérebro assimetrizou-se em diferentes zonas que controlam tarefas distintas.
Uma das diferenças entre o cérebro humano e o dos símios é que este não é
assimétrico: os dois hemisférios cerebrais desses animais são muitíssimo mais
homogéneos do que os de um cérebro humano. À luz dessa assimetrização, é
revelador o facto que as zonas cerebrais que se encontram em fervilhante actividade
quando se esculpe um biface de pedra são exactamente as mesmas que controlam a
linguagem – o que significa que talhar ferramentas nos ajudou, decisivamente, a
desenvolver o discurso e a transmitir cultura. Enquanto esse antigo “lisboeta” esculpia
o biface – batendo metodicamente com uma pedra em outra – também esculpia o
cérebro, desdobrando-o para ser um órgão que, em pouco tempo, seria capaz de
conceber uma catedral. A circunstância evoca-me os versos do poeta português
António Gedeão no Poema da Pedra Lioz:
«como um cinzel que batuca / numa insistência satânica: / truca, truca, truca,
truca»; e, umas linhas à frente, «fixando a pedra, mirando-a, / quanto mais o
olhar se educa, / mais se entende o truca… truca… / que enche a nave,
transbordando-a». Esse onomatopaico e regrado ritmo, quase cricrilado por uma fantástica
cigarra de pedra, evola-se metaforicamente da lascada superfície do biface e diz-nos
algo importantíssimo: que o canteiro pré-histórico era humano como nós.
Fenótipos por extensão, as ferramentas que fazemos contêm partes indissolúveis
da nossa humanidade. Mais do que isso, passaram a fazer parte daquilo que é
ser-se humano, pois todas as ferramentas são, sempre, extensões das nossas
mãos.
A correlação entre dexteridade e
encefalização não escapou aos pensadores do passado: num clássico dilema de ovo
ou galinha, o filósofo grego Anaxágoras considerou as mãos a nascente da nossa
inteligência, enquanto o filósofo grego Aristóteles as entendeu como um efeito
da inteligência. Fosse como fosse, ambos concordavam em omitir dessa questão os
animais. Na verdade, existem muitas espécies não-humanas que constroem e usam
com eficácia uma interessante variedade de ferramentas auxiliares – por vezes,
surpreendentemente complexas –, mas a exclusividade da mão humana, da sua
sofisticação, perdura, sobretudo, como corolário de um peculiar tipo de
inteligência abstracta, circunscrito à nossa espécie: a escrita. Somente
através de titânica determinação o excepcional protagonista Sirius, um cão
pastor galês que nasceu com inteligência humana, foi capaz de diminuir a longa
distância que o apartava dessa desenvoltura manual, representativa dos seres
humanos, no romance de ficção científica Sirius:
a Fantasy of Love and Discord, do escritor inglês Olaf Stapledon: «Of
course his handlessness made it
impossible for him ever to write save with some special apparatus. (…) It was he
himself that invented a way out of his disability. He persuaded
Elizabeth to make him a tight leather mitten for his right paw. On the back of
the mitten was a socket into which a pen or pencil could be inserted. (…) The
neural organization of his leg and the motor-centres of his brain were probably
not at all well adapted to this activity; but once more his doggedness
triumphed. Long practice brought him after some years the skill to write a
letter in large, irregular but legible characters. In later life, as I shall
tell, he even ventured on the task of writing books [sublinhado meu].»
Destreza manual. Escrita.
Humanidade.
O circunscrito vínculo entre mão
humana e essência humana evoca-me aquilo que o teólogo germânico Nicolau de
Cusa escreveu no décimo quarto capítulo de A
Visao de Deus: «Assim, igualmente, ó Deus, se comporta o teu ser, que é a
infinidade, de modo absoluto, em relação a todas as coisas que são. Mas digo de
modo absoluto, entendendo-o como forma absoluta
de ser de todas as formas contraídas. Daí que a mão de Sócrates, quando
se separa de Sócrates, embora depois da amputação já não seja a mão de
Sócrates, permanece todavia ainda num certo ser do cadáver. Isto deve-se ao
facto de que a forma de Sócrates, que dá o ser, não dá simplesmente o ser, mas
o ser contraído, isto é, socrático, do qual o ser da mão é separável, e que,
não obstante, pode permanecer sob outra forma. Mas se a mão fosse alguma vez
separada do ser totalmente não contraído, que é infinito e absoluto, cessaria
totalmente de ser, porque seria separada de todo o ser.» Para Cusa, este
Sócrates é um constructo, alegoria de
cada homem e cada mulher: nesse sentido, a mão amputada de Sócrates – isto é, a
mão amputada de um ser humano – continua a comunicar dessa humanidade, dessa
individualidade corporal, que é o ser contraído. Porém, no conto The Body Politic, do escritor inglês Clive
Barker, integrado no quarto volume de The
Books of Blood, as mãos humanas procuram a amputação, porque recusam
participar da «individualidade corporal» cusaniana – em suma, planeiam
separar-se definitivamente dos seus corpos, pois não lhes reconhecem licitude;
e, numa imagem espectacular, próxima do desfecho da narrativa, o protagonista
Charlie, a primeira vítima da vaga de, literalmente, emancipações, encontra perto do hospital onde, a dada altura, ficou
internado, uma árvore recheada de mãos decepadas, pousadas nos ramos: « Charlie
looked up into the branches. (…) Above his head the tree swarmed with that other
fruit, more unnatural still. The hands were everywhere, it seemed: hundreds of
them, chattering away like a manual parliament as they debated their tactics.
All shades and shapes, scampering about up and down the swaying branches.
Seeing them gathered like this the metaphors collpased. They were what they
were: human hands. That
was the horror.» O cidadão comum Charlie sabe que a sua mão direita, ainda
intacta, é a cabeça das emancipações; numa desesperada tentativa de extinguir a
sedição de todas as mãos, o homem atira-se do telhado do hospital, obrigando as
mãos amputadas, independentes, a seguir o líder nessa precipitação para o
asfalto: «He pitched himself into empty space, falling over and over until
there was a sudden end (…) They came in a rain after him, breaking on the concrete
around his body, wave upon wave of them, throwing themselves to their deaths in
pursuit of their Messiah.» A imagem de pernadas pejadas de mãos e o seu subsequente derribamento na
via pública evoca-me uma cena descrita por Raul Brandão no terceiro volume das suas
Memórias, datada de Fevereiro de
1930: «É um lindo espectáculo ir, às tardes, ao largo do Camões, ver os pardais
recolherem-se às grandes árvores do cantinho. (…) na última luz, descem, às
centenas, sobre as duas ou três árvores escolhidas, onde passam a noite,
chiando e bulhando antes de adormecerem. (…) Pois ontem, de repente, às 11
horas da noite, o vento e a chuva glacial, num minuto, alastraram o chão das
aves que tinham pousado naquelas árvores. Matou-as aos milhares. De manhã,
apanhavam-se às pazadas.»
Com efeito, aves e mãos estão
ligadas no imaginário ocidental por via da religiosidade; são símbolos da alma
e da espiritualidade. Observe-se, sob esse enunciado, a mão de Deus, pintada no
início do século XII no tecto da abside da igreja românica de Sant Climent de
Taull, que, hoje, se encontra no Museu Nacional de Arte da Catalunha, em
Barcelona: amputada, vogando no vazio, a sua configuração em V é fortemente
ornitomórfica; espécie de andorinha banhada em dourado, com asas feitas de
dedos e manga. Essa ligação entre ave, mão e espiritualidade está, no meu
entendimento, representada de modo ainda mais dinâmico num desenho de 1588 autorado
pelo artista alemão Hendrick Goltzius e traçado a giz preto e vermelho: os Quatro Estudos de uma Mão Direita
mostram uma sequência vertical de uma mão que se apresenta alternadamente
aberta e fechada, parecendo mimar os movimentos de um pássaro que ascende em
voo, estendendo e recolhendo as asas. Distante daquela estilizada mão criadora,
pintada por um anónimo mestre do século XII, as maneiristas mãos desenhadas por
Goltzius são, indiscutivelmente, humanas: sanguíneas, musculadas e palpitantes
de carnalidade; atravessadas por cordões venosos, são mãos sem idade e de ambígua
sexualidade, partilhando em simultâneo da inocência infantil, da aspereza da
senescência, da força física de um homem no ápice da robustez e da fragilidade
feminina – em prinicpal nos dedos, que na anatomia de uma mão não têm quaisquer
músculos, somente ossatura e dendrites. No seu livro Les rois thaumaturges. Étude sur le caractère
surnaturel attribué à la puissance royale particulièrement en France et en
Angleterre, o
historiador francês March Bloch escalpeliza a fundo essa relação entre mão
humana e poder divino, encerrada na insólita prática europeia do salvífico
toque real, que, segundo este estudo pioneiro, remonta ao medievo rei capeto
Robert II, o Pio. Unção, realeza e imitação de santidade consubstanciam-se na
mão real num gesto tão alegórico quanto polítco: «C'est en traçant ainsi
l'image sacrée que les saints, en maintes circonstances, avaient, disait-on,
triomphé des maladies; les rois suivirent leur exemple, en France dès Robert II,
en Angleterre également, semble-t-il, depuis l'origine. Au surplus, pour les
dévots le signe divin accompagnait toutes les actions importantes de la vie;
comment ne fût-il pas venu sanctifier le rite de guérison?». Através da mão enlaça-se
uma imagem mental: a mão constrói, a mão escreve, mas a mão também cura, também
se afirma como objecto simbólico. Na colecção do Museu de Anatomia da Faculdade
de Medicina da Universidade de Lisboa conserva-se uma excepcional mão esquerda
diafanizada: tratada segundo o método de diafanização desenvolvido no primeiro
decénio do século XX pelo anatomista alemão Werner Spalteholz, consiste numa translúcida
mão decepada, com a qual se pode examinar minuciosamente os seus vasos
sanguíneos e sistema nervoso. Tóteme permanentemente paralisado entre o
prosaísmo visceral e a imaterial invisibilidade, esta mão mergulhada em
venefícua solução preservativa transmite um poderoso sentimento sortilegial, à
guisa das mágicas “mãos de glória”, cuja manufactura e emprego o folclore
europeu atribui às bruxas: o frade ambrosiano milanês Francesco Maria Guazzo,
por exemplo, é dos primeiros a descrevê-las sem essa designação num texto sobre
feitiços soporíferos, publicado no seu tratado seiscentista Compendium Maleficarum; embora nesse
relato ainda não se consolidem os tropos característicos do mito, como o facto
de a mão utilizada ter necessariamente de ser cortada do braço de um enforcado.
À partida, a mão de um enforcado encasularia em potência a astúcia e a malícia
convenientes aos objectivos anti-sociais das feiticeiras, mas para a hipócrita
personagem Snowball do romance Animal
Farm: a Fairy Story, do escritor britânico George Orwell, todos os homens,
enforcados ou não, são maus – e as suas mãos são os preferenciais instrumentos
do mal: «’A bird’s wing, comrades’, he said, ‘is an organ of propulsion and not
of manipulation. It should therefore be regarded as a leg. The
distinguishing mark of Man is the hand,
the instrument with which he does all his mischief.’» Uma emblemática penitência
ministrada contra malfeitores de muitos matizes é, precisamente, a da amputação
das mãos, retorno forçado à infame bestialidade – um castigo que, muitas vezes,
é prerrogativa real: ora, o facto de só ser permitido o talhe de membros à
justiça real revigora a noção de interdependência que existe entre os aspectos
mundanos e divinos da própria mão. Dir-se-ia que sob essa lógica só a mão que
governa ungida, sacralizada, pode, de modo legítimo, amputar outra mão, que é
sempre, por mais torpe que seja, uma poderosa exteriorização de Deus no ser
humano. Uma imagem que evoca arguciosamente essa concepção hierárquica – até no
sentido etimológico de “governo do sagrado” – é O Milagre da Virgem, pintada pelo artista setecentista italiano
Gaetano Zompini, que se encontra na igreja medieval de San Giacomo dell’Orio,
situada no sestiere de Santa Croche,
em Veneza.
Quando há quatro anos
visitei esse veneziano ponto de partida de peregrinos do caminho de Sant’Iago
de Compostela (aliás, o santo figura no interior da igreja numa tela do pintor
quinhentista italiano Antonio Palma, ilustrando um milagre que lhe foi outorgado
e que na tradição popular portuguesa é conhecido como a história do galo de
Barcelos) fiquei fascinado com o quadro de Zompini: uma das raras representações
na arte religiosa ocidental de um episódio apócrifo associado à Assunção da
Vigem Maria e contado, entre outros, pelo arcebispo italiano Jacobus de Voragine
no hagiológio ducentista Legenda aurea.
Alimentando-se da tradição apócrifa, na qual se incorpora o dito Evangelho de
João, o Teólogo, sobre a Dormição de Nossa Senhora – texto que se conjectura
ser do século V, também atribuído a Sant’Iago –, Voragine desvenda como a alma
da Virgem Maria ascendeu num certo dia ao Céu, à companhia de Cristo, ficando o
corpo inerte no resguardo dos apóstolos; estes dispuseram-no num esquife, de
molde a transportá-lo até ao local de sepultamento. Porém, quando saíram para a
rua, logo se congregou em seu redor uma violenta turba de descontentes
dispostos a imolar o corpo; de entre eles, um tal Jephonias aproximou-se, ágil,
do esquife, agarrando-o com força para derrubá-lo, mas, para seu horror, as
mãos separaram-se dos braços enquanto ele caía ao chão. No relato do Evangelho
de João, o Teólogo, quem decepa as mãos do judeu é um invisível anjo do Senhor,
armado com uma espada flamejante, mas na versão de Voragine é o contacto com o esquife
que murcha as mãos. Todavia, em ambas as leituras o desventurado judeu
converte-se ao cristianismo e readquire nesse momento as mãos.
O tacto está, naturalmente
mais que os outros sentidos, subordinado a pesadas regras comportamentais,
consoante as tradições e as leis de específicos grupos sociais e comunidades étnico-culturais,
sendo possível elencar extensos repertórios de tabus que, mormente, raiam
interdições religiosas e até políticas, como no caso das proibições que padronizam
as conexões entre diferentes castas indianas – aos brâmanes, por exemplo, nem
sequer é permitido receber objectos das mãos de um indivíduo considerado
intocável, porque nesse sistema são essas mãos as executantes das tarefas mais
sujas, como a manipulação de cadáveres humanos e carcaças de animais ou até a
limpeza, com o auxílio de ostracos ou pedaços de lata, de excrementos humanos evacuados
ao ar livre nas chamadas latrinas secas. Nesse sentido, o quadro de Zompini é
todo desenhado em torno de uma peculiar ideia de Noli me tangere: a gramática gestual dos apóstolos que transmovem o
esquife evidencia a repulsa que sentem diante da perspectiva de Jephonias
chegar a tocar na jazente ou adormecida Virgem Maria (de acordo com as explanações
romana e bizantina), mas também o asco de serem, eles próprios, contaminados,
de alguma maneira, pelo seu toque – mãos e pés vacilam, distanciam-se; um braço
ergue-se à laia de escudo entre o desgraçado e decepado descrente e a careta
censurável de um alopécico apóstolo. Um pormenor que, de imediato, instiga a
imaginação é o da ausência de sangue: os tecidos que protegem o esquife são,
calcula-se, hematófugos – resistem à poluição do sangue. Ou resistiriam, caso
este vertesse das veias serradas, mas, à guisa de golpes ministrados por sabres
de luz, os cotos não sangram: não há sangue, não há lágrimas, somente a nímbica
electricidade exsudada pela Virgem, mais iluminante que as petrificadas chamas
dos círios carregados pelos garotos. No antigo mundo judaico no qual foi cultivado
este episódio, os homens costumavam jurar pela honra levantando uma mão e colocando
a outra debaixo da sua coxa ou sob a coxa de um indivíduo venerável; segundo outra
interpretação, lida à luz da relevância próximo-oriental dada nos textos
veterotestamentários à progenitura e à sucessão, o juramento seria feito, de
facto, com uma mão levantada e outra sobre os testículos – hábito que estaria,
conforme a etimologia popular, na origem da palavra e do acto de testificar. À guisa de diapasão
para todo o manancial místico que se seguirá, essa suspeita surge nas primeiras
páginas do hermético romance The
Recognitions, do escritor americano William Gaddis: «They could hardly know
that the Reverend’s powers of resistance were being taxed more heavily than
their own, where he withstood the temptation to tell them details of the Last
Supper at the Eleusinian Mysteries, the snake in the Garden of Eden, what early
translators of the Bible chose to let the word ‘thigh’ stand for (where ancient
Hebrews placed their hands when under oath) (…)». Contudo, a mão sobre a
qual alguém se senta, por mais venerável que seja, ou a mão que toca nos
testículos é indigna, sequer, de pousar os dedos no esquife que transporta a incorrupta
mãe do Messias: por intervenção de um anjo armado de flâmea lâmina ou pelo efeito
estiolante do contacto com o esquife, o judeu Jephonias não poderia ter outra predestinação
que não fosse a acrotomia, a expiação pela excisão. Também na tradição
veterotestamentária, as mãos carregam a infâmia da idolatria, como no episódio
da constituição de um bezerro de ouro, e são justiçadas por essa e outras
transgressões sendo desligadas do corpo. O filósofo judaico-romano Fílon de Alexandria,
note-se, reflecte apuradamente sobre o tema, nas suas filosóficas exegeses do
Antigo Testamento e do corpus
consuetudinário do direito judaico: «And let the punishment be the cutting off
of the hand which has touched what it ought not to have touched.» Sobretudo, para
Fílon, o tacto é o mais perverso dos sentidos: «Well, then, of those things of
which we are to abstain from the sight, are not the hands much more to be
blamed for the touch? For the eyes, being wholly at freedom, are nevertheless
often constrained so as to see things which they do not wish to see; but the
hands are ranked among those parts which are completely under subjection, and
obey our commands, and are subservient to us.»
No entanto, a imagem de um
descrente correndo na direcção do grupo de apóstolos para derrubar o esquife em
que está disposta a Virgem Maria sugere-me um certo tipo de conduta das
partículas elementares – quarks e gluões – estudado pelo físico americano Frank
Wilczek, vencedor do prémio Nobel da Física, em 2004, pela descoberta conjunta da
Liberdade Assimptótica: uma condição segundo a qual a Força Forte – a mais
forte das forças físicas (as outras são a Força Fraca, o Electromagnetismo e a
Gravidade) e a responsável pela ligação nuclear de toda a matéria em partículas
subatómicas compostas (protões e neutrões) – é fraca em intervalos energéticos curtos
e forte em intervalos energéticos maiores. De facto, em sentido figurado, assimptotas
são quaisquer objectos que continuamente se aproximem sem se confinarem – como
duas linhas rectas paralelas. Simplificando, aquilo que a liberdade
assimptótica nos diz é que, a curtíssimas distâncias, os quarks comportam-se
como se fossem partículas livres, porque a Força Forte é fraca em intervalos
energéticos exíguos – existe liberdade nessa limitada e magnânima tangente, mas
ela nunca conduz à emancipação, razão pela qual é assimptótica. Em suma: não
existem quarks independentes. No livro The
Lightness of Being: Big Questions, Real Answers, Wilczek teoriza sobre
atracções de carga positiva e negativa entre quarks, gluões, nuvens de partículas
virtuais (que estão para as partículas elementares, como os vírus estão para as
células – escrevi sobre estas partículas no conto A Sombra sem Ninguém no meu livro A Luz Miserável) e a origem da massa de protões e neutrões, mas
aquilo que considero mais atraente é ver Jephonias como uma partícula elementar
de carga negativa que é atraída velozmente à distância pela Força Forte na
direcção de uma nuvem de partículas de carga positiva – os apóstolos: ao
aproximar-se desse grupo, a Força Forte perde impetuosidade e
Jephonias/Partícula também perde massa (as mãos); no entanto, ao integrar-se na
nuvem (converter-se ao cristianismo), a sua carga negativa muda para positiva
(recupera as mãos). Nessa acepção restaurativa, de regeneração das mãos, não
posso deixar de observar o corpo jazente ou adormecido da Virgem como sendo análogo
aos corpos santos, incorruptos e salvíficos, estudados pelo historiador italiano
Piero Camporesi no seu livro The
Incorruptible Flesh: Bodily Mutation and Mortification in Religion and Folklore;
com efeito, o autor resgata do livro trecentista Fioretti de San Francesco a cura miraculosa de um frade franciscano
do ermo florentino de Soffiano. Nessa narrativa, que compõe o quadragésimo
sétimo capítulo do livro, a Virgem Maria mostra-se compassiva ao frade
moribundo, acompanhada por três virgens celestiais, cada uma com uma caixa nas
mãos; estas contêm, respectivamente, três poderosos e recendentes electuários.
Porém, depois de saciar a saúde com o primeiro, o frade implora para ser desobrigado
dos remanescentes; a Virgem convence-o a tomar uma pequena porção do segundo
remédio, mas isso basta-lhe – o objectivo do frade é amenizar a angústia da
moribundez, não é afastar a morte, para a qual ele, efectivamente, caminha em
odor de santidade passados uns dias.