Hoje é um bom dia para lembrar que a palavra capela tem origem na
hagiografia martinha: com efeito, denominou-se capela — ou seja, capinha — ao aposento basílico em que alegadamente se guardava a
metade da capa que São Martinho reservou para si quando a dividiu para
ofertar metade a um mendigo. O nome dessa relíquia, hipocorísticamente
chamada de capinha, por ser somente metade de uma capa, serve de
substantivo às capelas.
De onde escrevo, vejo o sol lisboeta verrumar
com veemência o muro de nuvens para salpicar com luz moribunda os
edifícios indiferentes a esse Milagre de São Martinho, ébrios pelas
falsas luzes dos ecrãs de LCD, faróis de automóveis e opocéfalos
semáforos que todas juntas mais parecem cadáveres ainda mornos de
estrelas que tombaram deste céu abacinado. A luz verdadeira é sempre uma
luz do passado: emitida há muito tempo. Todos somos iluminados pelo
passado — só as luzes falsas são imediatas, repentinas, presentinas. É
provável que o dito Milagre de São Martinho se relacione mais com a luz
do que com uma capa: uma luz que finalmente chega, vinda de outro tempo,
para nos dizer que a luz miserável que nos ensopa não é a única, não é
verdadeira, não é destino.
(Texto escrito na tarde de 11 de Novembro de 2019.)