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terça-feira, 12 de novembro de 2019

A cappella


Hoje é um bom dia para lembrar que a palavra capela tem origem na hagiografia martinha: com efeito, denominou-se capela — ou seja, capinha — ao aposento basílico em que alegadamente se guardava a metade da capa que São Martinho reservou para si quando a dividiu para ofertar metade a um mendigo. O nome dessa relíquia, hipocorísticamente chamada de capinha, por ser somente metade de uma capa, serve de substantivo às capelas.
De onde escrevo, vejo o sol lisboeta verrumar com veemência o muro de nuvens para salpicar com luz moribunda os edifícios indiferentes a esse Milagre de São Martinho, ébrios pelas falsas luzes dos ecrãs de LCD, faróis de automóveis e opocéfalos semáforos que todas juntas mais parecem cadáveres ainda mornos de estrelas que tombaram deste céu abacinado. A luz verdadeira é sempre uma luz do passado: emitida há muito tempo. Todos somos iluminados pelo passado — só as luzes falsas são imediatas, repentinas, presentinas. É provável que o dito Milagre de São Martinho se relacione mais com a luz do que com uma capa: uma luz que finalmente chega, vinda de outro tempo, para nos dizer que a luz miserável que nos ensopa não é a única, não é verdadeira, não é destino.

(Texto escrito na tarde de 11 de Novembro de 2019.) 

domingo, 17 de julho de 2016

Sobre Aleixo, no dia de sua morte


Esta tábua quinhentista (1541), cuja autoria inquestionável é do pintor português Garcia Fernandes (activo entre 1514 e 1565), é conhecida pela maioria do público como sendo uma representação do terceiro casamento do rei D. Manuel I com D. Leonor de Castela, irmã de Carlos V (celebrado a 1518). Todavia, já em 1998, o historiador de arte português Joaquim de Oliveira Caetano propôs e fundamentou a tese de que a imagem mostra o episódio hagiológico do casamento forçado de Santo Aleixo com Sabina. Esta obra faria parte de um conjunto projectado pela oficina do artista para a primeira Igreja de São Roque, em Lisboa (com efeito, a tábua encontra-se em exposição no Museu São Roque da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa). Ora, Garcia Fernandes foi eleitor da Misericórdia de Lisboa e o quadro foi-lhe encomendado por D. Álvaro da Costa, o primeiro provedor das Misericórdias, que, provavelmente, se encontra representado na figura central do sacerdote que celebra o casamento. Sabe-se, igualmente, que poucos anos antes da realização da tábua foi anexada uma confraria de Santo Aleixo à Misericórdia (em 1538); por conseguinte, fortalecendo esta tese. Em analogia, outros pormenores contribuem para a interpretação aleixiana, como a ausência na personagem dita manuelina da insígnia da Ordem do Tosão de Ouro, que D. Manuel I recebeu pelo seu casamento com D. Leonor de Castela. É, pois, neste dia de Santo Aleixo (terá morrido a 17 de Julho) que evoco esta obra enigmática, cujo hirsuto protagonista tem sido utilizado em múltiplos livros de história e veículos televisivos de divulgação histórica como sendo um retrato de D. Manuel I e pelos quais contornos temos desenhado, à guisa de escantilhão, determinados aspectos da vida e façanhas de O Venturoso.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Sobre Santo António no dia de sua morte

Foi a partir do reinado de D. Afonso III que as espécies monetárias começaram a figurar no pagamento do salário dos trabalhadores, que, dessa forma, passou a ser misto: em dinheiro e em géneros (nos quais se contava o vestuário). Espoletou-se, pois, uma economia baseada no dinheiro e não na troca mais ou menos equivalente de produtos e de serviços. De igual modo, foi com esse rei que a circulação da libra se vulgarizou, abrindo o sistema monetário português ao resto da Europa; facto que ditou a extinção lenta, mas inexorável, do morabitino (ou maravedi: moeda exclusivamente peninsular). O sistema de contagem em libras, soldos e dinheiros perdurou até D. Afonso V iniciar o seu reinado; período em que a libra foi substituída pelo real. No reinado dionisino, uma libra valia vinte soldos e um soldo equivalia a doze dinheiros. Estes eram cunhados numa liga metálica de prata e cobre, na qual a percentagem da primeira era muito baixa: essa liga chamava-se bolhão – nome que se transformou em sinónimo dos dinheiros e nome que se relaciona directamente com o cerne do nosso assunto.

Seria engraçado que esse nome estivesse na origem do suposto apelido Bulhões do jovem Santo António (nascido a dois passos de distância da Sé, por alturas de 1190, segundo a tradição), cujo nome de baptismo seria Fernando Martins. Uma tradição oral do século XIV foi estabelecendo na memória popular que os seus pais foram Martinho e Teresa de Bulhões, mas não existe nenhuma fonte histórica que o corrobore, assim como os primeiros cronistas da vida de Santo António nunca mencionaram sequer o apelido Bulhões. Em suma: dizer-se que Santo António se chamava Fernando de Bulhões, e que foi filho de Martinho e de Teresa, será, em última análise, uma ficção. No entanto, a tradição oral supracitada também refere que o pai de Santo António trabalhava para a câmara de Lisboa. Ora, se trabalhasse como cobrador, até pode conjecturar-se, como puro exercício especulativo, se o apelido Bulhões não fosse, em vez disso, uma alcunha derivada do nome das moedas que ele cobrava: os bolhões. Nesse caso é fácil imaginar que o tal Martinho pudesse ter sido conhecido pelos populares como “Martinho dos Bolhões”: ou seja, como o “homem que vem buscar os bolhões”. Por culpa disso, o filho ganharia a alcunha de “Fernando do Bolhões”: ou seja, o “Fernando que é filho do Bolhões”.

Então, como é que Fernando – Martins ou Bulhões – deu lugar a António? A resposta é simples: o nome António, de aristocrática origem romana, cuja etimologia incerta talvez possa estar relacionada com a palavra grega para flor (anthos), foi um nom de plume adoptado pelo santo quando esteve na Itália, por razões que, hoje, não são claras. No entanto, o que é claro é que o nome masculino de António se generalizou muitíssimo após o prestígio granjeado pelo santo; e, ao contrário do que se possa pensar, a sua manutenção fez-se por via culta, em oposição à coexistente degenerescência na redução Antão ou Anto, verificada em contextos populares (o poeta António Nobre usou durante algum tempo o hipocorístico Anto).

À parte das enturbadas origens do nome de Santo António, outros aspectos da vida deste santo permanecem desconhecidos do público. À cabeça, lembro-me de uma curiosidade interessantíssima que tem andado algo esquecida: a tradição estabelece que foi o rex inutilis D. Afonso VI (quando ainda era Príncipe do Brasil) que, em 1655, durante o período da guerra com Castela pela independência do reino de Portugal, tornou Santo António o protector do exército português, ordenando que este assentasse praça como soldado e lhe fosse pago soldo por esse serviço. Assim, Militar, inversamente a Casamenteiro, consiste no mais ignoto atributo antonino.

Imagem: Santo António de Meinedo (séc. XV). Encontrada na freguesia de Meinedo, concelho de Lousada, esta imagem é uma das mais antigas representações de Santo António com o Menino Jesus ao Colo.