A exibição dos mortos aos vivos fazia parte dos oitocentistas rituais
lisboetas de Dia de Finados — aqui ilustrados em sinédoque numa
litografia que mostra a cripta do Convento de S. João de Deus, em Buenos
Aires (não a capital argentina, mas uma zona ali para os lados do
bairro da Lapa, em cuja freguesia ainda existe a Rua de Buenos Aires).
Os mortos de outrora eram guarnecidos com ramos de loureiro e
encostados às paredes. Esta é uma sensibilidade devedora da abordagem
sentimental do Barroco, para o qual a
morte se revestia de uma dimensão de espectacularidade. Ainda na
mentalidade pós-tridentina, a chamada Boa Morte era corolário de uma
atitude reflexiva e meditativa sobre a finitude; segundo, por exemplo,
Vieira no seu “Sermão de quarta-feira de cinzas”: «quem morre antes de
morrer [ou seja, quem ensaia a sua morte no pensamento], não há mister
mais doutrina para bem morrer».
Por aqui, evidentemente, ressoa o estóico sentir de Séneca em Cartas a
Lucílio e a constante recomendação de que este deveria praticar a sua
morte mentalmente, de modo a morrer bem quando soasse a sua hora.
Não é exequível apurar um início para práticas desta natureza, será mais prático admitir que foram sendo iniciadas ao longo do tempo, de acordo com especificidades locais ou segundo circunstâncias especiais. A minha convicção, para o caso meridional europeu, é que radica em práticas taumatúrgicas/apotropaicas relacionadas com a exposição de relíquias e de corpos santos, assim como de defuntos célebres. Na época moderna, os nossos reis cumpriam cerimoniais de abertura de túmulos régios, de molde a religar os seus presentes com o passado e com a herança dos monarcas de outrora. A atitude religiosa do barroco pós-tridentino insistirá no arroubo espiritual, na demonstração de uma emoção cada vez mais patenteada e expressiva, na qual o culto das relíquias está totalmente integrado, desde os grupos sociais mais baixos aos mais altos. O sentir da morte desta época passa, como escrevi, pelo testemunhar cerimonialmente a morte — e nesse aspecto, as exéquias régias são paradigmáticas desse programa discursivo, religioso e artístico.
Em seguida, as práticas acabam na maioria das vezes por se desvincular do contexto erudito ou popular que as concebeu para assumirem recortes novos e até inauditos. Estas actividades de speculum mortis, cumprem propósitos catárticos, de reconfirmação do passado e de restabelecimento comunal. São frequentes em países de confissão Romana, pois os países Protestantes possuem outros códigos e outra forma de sentir a morte. Por exemplo, são adversos à cerimonialização e à ostentação de relíquias e objectos. Daí que encontremos exposição de defuntos na Irlanda, mas não na Inglaterra — apesar da contiguidade que, ainda assim, existe entre anglicanismo e catolicismo Romano.
Não é exequível apurar um início para práticas desta natureza, será mais prático admitir que foram sendo iniciadas ao longo do tempo, de acordo com especificidades locais ou segundo circunstâncias especiais. A minha convicção, para o caso meridional europeu, é que radica em práticas taumatúrgicas/apotropaicas relacionadas com a exposição de relíquias e de corpos santos, assim como de defuntos célebres. Na época moderna, os nossos reis cumpriam cerimoniais de abertura de túmulos régios, de molde a religar os seus presentes com o passado e com a herança dos monarcas de outrora. A atitude religiosa do barroco pós-tridentino insistirá no arroubo espiritual, na demonstração de uma emoção cada vez mais patenteada e expressiva, na qual o culto das relíquias está totalmente integrado, desde os grupos sociais mais baixos aos mais altos. O sentir da morte desta época passa, como escrevi, pelo testemunhar cerimonialmente a morte — e nesse aspecto, as exéquias régias são paradigmáticas desse programa discursivo, religioso e artístico.
Em seguida, as práticas acabam na maioria das vezes por se desvincular do contexto erudito ou popular que as concebeu para assumirem recortes novos e até inauditos. Estas actividades de speculum mortis, cumprem propósitos catárticos, de reconfirmação do passado e de restabelecimento comunal. São frequentes em países de confissão Romana, pois os países Protestantes possuem outros códigos e outra forma de sentir a morte. Por exemplo, são adversos à cerimonialização e à ostentação de relíquias e objectos. Daí que encontremos exposição de defuntos na Irlanda, mas não na Inglaterra — apesar da contiguidade que, ainda assim, existe entre anglicanismo e catolicismo Romano.