sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Razões pelas quais o Holocausto é singular


Desde inícios do século XIX que as emancipações europeias dos judeus provocaram, em variáveis graus de intensidade, movimentos motivados pelo anti-semitismo, reconstruindo sob um perfil cada vez mais politizado um sentimento social anti-judaico que, em principal na Europa central e de Leste, possuía origens antigas. Nos territórios germânicos, um estilo particular de anti-judaísmo pugnava desde o dealbar da tipografia em folhetos e folhas volantes; alguns de jaez protestante, incluindo os de Lutero, e outros de cariz popular sem assinaláveis vínculos religiosos, mas ambos similares na sua retórica e propostas — inclusive a do extermínio da “raça” judaica.

A ideia de uma maciça matança de todos os judeus fazia, desde essas alturas, parte da cultura das populações desses territórios e já no século XX, a partir de 1905, o ex-cisterciense austríaco Lanz von Liebenfels publicava na sua revista Ostara artigos de campanha para o extermínio dos judeus. Fundador da sociedade cavaleiresca Ordo Novi Templi, von Liebenfels antecipou em décadas o uso nacional-socialista de uma bandeira com uma suástica.

Esta síntese mostra como o anti-judaísmo moderno dos séculos XVI a XVIII se “politizou” ao longo do século XIX após o movimento generalizado das emancipações dos judeus — aliás, nos territórios germânicos esse sentimento anti-semita tornou-se desde logo bastante expressivo, com o caso modelar de Karl Lueger, presidente da câmara de Viena e pioneiro no anti-semitismo de massas, politizado, com a criação do Partido Social Cristão, espécie de mimetismo da coeva Liga Anti-Semita Francesa. Assim, o anti-semitismo nacional-socialista enquadra-se nesta moldura referencial mais alargada de profundo sentimento anti-judaizante grassante há décadas — senão séculos — nos territórios germânicos e de Leste: a legislação anti-semita do regime nazi é em muitos aspectos uma adaptação de velhas proibições anti-judaicas promulgadas por séries de bulas papais e alvarás régios um pouco por toda a Europa. A novidade introduzida pelos nacionais-socialistas no campo do anti-semitismo europeu, como já sinalizou Raul Hilberg em A Destruição dos Judeus Europeus, foi o passo final em direcção ao extermínio — extermínio que, recorde-se, já vinha sendo proposto e teorizado em variadas formas há muito tempo sob a designação “questão judaica”, mas que a máquina de morte nazi implementava de modo industrial.

Não obstante, a singularidade do Holocausto não reside, em exclusivo, na imensidade industrial de horror em que consistiu o extermínio em massa de milhões de indivíduos e a profanação dos seus corpos para retirar-se “matéria-prima”, como cabelos, dentes ou gordura, mas na própria ideologia que orientou esse crime contra a humanidade: o facto de segundo o nazismo o Judeu ser o “inimigo global”. Isto, em suma, significa o seguinte: alguns países europeus cúmplices do nacional-socialismo que, contaminados pelo anti-semitismo, incorreram e participaram no Holocausto, eliminando em massa os seus judeus ou deportando-os dos seus territórios para a Alemanha, tinham como objectivo final a extirpação de judeus dentro das suas fronteiras, numa perspectiva puramente regional; já os nacionais-socialistas, em oposição, queriam, segundo o princípio de o Judeu como “inimigo global”, eliminar os judeus em todo o mundo.

O projecto de engenharia social nacional-socialista foi, pois, genocidário desde o início, evoluindo das para-militares Einsatzgruppen para os campos de concentração e extermínio. O genocídio global de todos os judeus foi um elemento basilar e intrínseco do nacional-socialismo. Mas o futuro do nazismo não ficaria por aqui: em Mein Kampf e, sobretudo, na segunda parte desse livro, publicada postumamente, delineia-se o extermínio dos judeus eslavos, americanos e, ainda, o extermínio no Ocidente de categorias ambíguas de indivíduos designados de inferiores, mestiços ou degenerados. A partir daqui compreende-se que depois de exterminados todos os judeus a identidade genocidária do III Reich pretendia estender o seu venefícuo manto sobre novos elencos de indesejáveis, criados em perpétua sucessão para preencher o lugar vazio deixado pelo “inimigo global” e alimentar a máquina de morte já montada — o Reich de Mil Anos, parúsia hitleriana de pendor milenarista (como milenaristas foram outros totalitarismos novecentistas) construir-se-ia sobre um perpétuo crematório em actividade. A singularidade do Holocausto reside na sua filosofia mortífera de um assassínio humano global e perpétuo. Com efeito, na sua ambição internacional e ininterrupta, não se encontra nada parecido na história: o Holocausto é, de facto, único. Singular.

(Imagem: assassínio de judeus por uma Einsatzgruppe.)

Vida e virtualidade


Ao mesmo ritmo que a Vida é, até prova contrária, endémica deste planeta, ela consiste num fenómeno incidental, contingente de arbitrariedades e coincidências, de infinitesimais ajustes de condições. O mais natural seria que, à semelhança do remanescente cosmos, ela não existisse. 

Surpreende esta conclusão tão óbvia e tão oclusa, a de que a vida é árdua para todas as espécies, em parte porque todas são clandestinas neste mundo que, provavelmente, nunca esperou albergá-las. Na maior parte das vezes, a vida das espécies faz-se contra o próprio mundo: o sucesso delas é a derrota deste.

Quando era criança, vi um documentário sobre a vida selvagem que me chocou e cuja recordação, hoje, ainda me perturba: em África, um punhado de marabus repastava-se em tragar de dentro de dezenas de ninhos feitos nos ramos de uma árvore as crias há pouco tempo saídas dos ovos de um bando de pássaros que, impotentes, prostestavam com ruidoso alarme - num plano filmado em frente ao Sol, via-se distintamente os pássaros bebés a rolarem numa grotesca cambalhota pela goela semi-translúcida dos marabus. Seres com poucos dias ou até horas de existência terminavam a sua efemeridade dissolvidos em bolsas de ácido gástrico, baldando as esperanças dos progenitores que tanto trabalho e desvelo tiveram na edificação dos ninhos. De quem seria a culpa desta circunstância violenta? Dos pássaros que escolheram um mau local para fazerem os ninhos? Dos insensíveis marabus de apetite voraz? Deste mundo padrasto que é perverso e cruel para todos? 

Sem dúvida que a observação deste tipo de ocorrências terá fortalecido a noção de que a vida no mundo é falsa, perversa e injusta. Mais do isso: a ideia de que aquilo que se vive aqui no plano terreno nem vida será, sequer, mas uma paródia marionetada por uma mente doente da qual somente a morte nos libertará. Essa noção platónico-gnóstica encerra a verdade profunda de que a Vida é, de facto, incidental. Este planeta não precisava de ter vida nenhuma. E, como tal, como ainda ninguém lhe disse que ela existia, continua a agir no seu ritmo orocronolento, tão rude e brutal como nos tempos em que lava fundente fluia nas fístulas da Terra. Bactérias, plantas e animais, todos aparentados verticalmente uns com os outros desde que ácidos nucleicos assentaram como escuma na cútis morna do abiogenésico caldo primordial, são superfluidades na arquitectura do planeta, à laia de disformes gongronas nos gerônticos troncos das árvores. 

Radica neste sentimento de revolta o mitema de que a vida verdadeira não é para ser vivida aqui, mas em outro plano não-rebatível com este e somente acessível pela morte do disfarce terreno, como Séneca disse a Lucílio empregando a metáfora de que o corpo era a casca de um novo organismo que nascia com a morte e que se deixava para trás. 

Eu não sei se Séneca estava certo. Sei que, de facto, a ideia de uma vida extra-terrena também teve a sua própria evolução, com recuos, avanços e consolidações. Civilizações existiram que não tinham como horizonte a crença numa vida pós-morte. Com efeito, a percepção de que a Vida é um acidente, e que o Sol não deixaria de brilhar se ela não existisse, parece ter criado dois tipos diferentes de atitudes, cada qual com as suas inflexões contemporâneas: 1) a da cândida aceitação de que esse é o estado das coisas; e 2) a busca da transcendência.

Quando me ponho a reflectir sobre estas matérias muita informação me passa, em rede — no sentido da conexão, mas também no da rede de pesca, com tantos dados ensarilhados uns nos outros — pela cabeça; no entanto, a perturbante imagem dos marabus a devorar pintainhos inteiros pontifica num local elevado da minha catedral de cepticismo. Ao mesmo tempo é também por essa via que compreendo a necessidade do sentimento religioso. Cada criatura, autotrófica ou não, tem de criar para si — não a realidade — um sentido para a realidade, um laço de luz entre o barbarismo das trevas mais interiores e o empíreo salvífico que nos remirá de uma condição incerta, dolorida, por vezes miserável. O Homem é o fruto da verticalidade do barro — como é que se pode desinventar essa roda? O espaço vertical é a coordenada de astros e deuses, de dias e noites, de nuvens e estrelas.

Histórias, mitos, teorias e ideologias, versos, leis e pregões. Onde estão os fósseis das histórias? Onde, entre artropódicas impressões de trilobitas e veneráveis pegadas de dinossauros, se encontra registada a calandragem das ideias? A ficção — a virtualidade — é o elemento natural do ser humano: é tão espantoso assim o sucesso das tecnologias virtuais? Desde que começámos a riscar com cores nas paredes das paleolíticas igrejas que são as grutas que vivemos em completa e total virtualidade.

Efemérides americanas


No passado dia 17 de Janeiro assinalou-se o centenário do National Prohibition Act, mais conhecido por Volstead Act: legislação americana que teve como intenção desbloquear a Décima Oitava Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que promulgava a proibição de venda e consumo de bebidas alcoólicas.
 
O enquadramento desta iniciativa de engenharia social foi o chamado Movimento Progressista: espécie de sincrética arena ideológica em que participavam diversos actores, mas onde pontificava gente oriunda do puritanismo protestante, do credo científico eugenista e socialistas de diferentes sensibilidades — todos apostados em aposentar o Homem Velho para indigitar o Homem Novo. Com efeito, acreditava-se que extirpando as bebidas alcoólicas do horizonte dos trabalhadores americanos se iria, entre outros objectivos, fortalecer a consciência de classe desse proletariado e acelerar um devir Socialista. Curiosamente, nesses anos, e em sinal oposto à actualidade, a Esquerda americana era, na maioria, fortemente anti-imigração, pois considerava-a nociva aos interesses dos trabalhadores americanos.
 
Assim, sob essa orientação utópica, entrou-se numa era bizarra de destruição de adegas, detenções em massa de indivíduos apanhados a beber álcool, bares clandestinos, contrabando de zurrapas de qualidade muitas vezes fatal e de recrudescimento do gangsterismo.
 
Sobretudo, não deixa de ser revelador das contradições dessa época paradoxal o facto de o presidente Woodrow Wilson ter mantido para consumo pessoal uma estupenda adega de vinhos, espumantes e licores na Casa Branca — que levou consigo para casa depois de acabado o mandato. Vale a pena reflectir nas consequências sociais de toda a propaganda e iniciativas utópicas desenvolvidas nesse período, pois é provável que algumas das lições a tomar ainda se mantenham no prazo de validade.

A 19 de Janeiro de 1809 nasceu o escritor americano Edgar Allan Poe, que dispensa apresentações. Não obstante, vale a pena iluminar um aspecto de Poe que é pouco conhecido: o facto de no longo poema em prosa Eureka, publicado no turbulento ano de 1848, ele ter descrito de modo literário — e pela primeira vez — algumas realidades cosmológicas somente descobertas no século XX — e algumas apenas há poucos anos.
 
É o caso, por exemplo, do Big Bang, dos buracos negros e até uma solução engenhosa para o problema do Paradoxo de Olbers. Sem formação científica, Poe foi capaz de antecipar muitos aspectos da actual astrofísica, somente pela observação empírica e usando a sua fulgurante imaginação — muito antes da escrita de especulação científica ter sido popularizada por autores como Jules Verne ou Herbert George Wells. A lição a reter desta efeméride é a de que nenhuma tecnologia substitui a analógica imaginação humana, capaz de perscrutar a alma do universo através de ferramentas tão simples quanto lápis, tinta e papel.
 

Somos os vossos pais


O único elemento que persiste intacto depois de uma civilização colapsar é a Imaginação; fossilizada em pedra, osso ou madeira, ela é a recatada rosa-dos-ventos que nos diz que outros Tempos ensaiaram a Vida antes de nós.
Nada do que os antepassados consideraram importante no seu dia-a-dia perdurou; nada daquilo que preencheu as suas preocupações se preservou. Só aquilo que não é material, utilitário, reificado, comunica connosco.
A Imaginação é fluidal, cronófaga, eterna. Só os virtuosos, esplêndidos, trabalhos da imaginação nos dizem “estivemos aqui”, “vivemos aqui”, “somos os vossos pais”.

Votos de Ano Novo



À aproximação de outra transição temporal para um novo ano, encontramo-nos, mais uma vez, na fatal encruzilhada que nos coage à dilucidação de tudo o que se testemunhou nos meses que passaram.

Está-se, pois, na catróptica câmara de reflexão que aumenta todos os detalhes, todas as circunstâncias; nebulosa neuróglia que comunica com todos os instantes em simultâneo, à guisa de acetatos sobrepostos num projector, compondo uma incompreensível e opaca silhueta feita de tudo o que fomos e de tudo o que somos. A cor desapareceu nesta antracítica configuração; emblema ambíguo de um exame a fazer, somente perceptível pelo contorno como os ocos perfis de vítimas traçados a giz ou tinta num pavimento — aí todas as estações do ano estiolam em engelhada decrepitude na forma de um infantil Quantos-Queres em que cada face proto-cristalóide é assinalada não por uma pinta colorida, mas por cheiros, sons e vagas sugestões. Desembrulhe-se esse incipiente origami e descubra-se a verdade sobre nós mesmos.

Somos prisioneiros da percepção linear do tempo, segundo a qual este teve um início e, a ser assim, terá, necessariamente, de ter um fim: esta teleologia é a nossa maldição. Cresce-se num determinado ambiente, alimentado por um determinado discurso, e quando essas coordenadas culturais mudam acha-se sempre que chegou o Fim da História, mas a história não tem fim ou finalidade. A doença da Utopia e da escatologia salvífica tem servido de forragem às mais disparatadas e daninhas ideologias, políticas e cultos, mas, feitos o somatório e a prova, tudo o que os números mostram são indivíduos saponificados em bolhas inter-pessoais de relacionamento. Nada termina, nada se conclui, não existe nenhum desígnio metafísico para o qual flui o rio do tempo.

Somos uma sociedade esquizóide que tão depressa acha que vive no Fim da História como no melhor período possível da história: existem vendilhões e públicos para ambas as sensibilidades. Todos são mestres nas artes do “já ouvi falar”, na bisonha papagueação de chavões repetidos por gente unidimensional que somente lê e ouve outra gente unidimensional, na especulação de conteúdos de livros que se diz ainda pretender ler. A verdade é que somos ignorantes, arrogantes, vaidosos, fúteis e maldosos. Nesse sentido, somos como sempre fomos, desde a pré-história: a natureza humana é exactamente a mesma.

Os meus votos de Ano Novo são os de que se extirpe o pensamento utópico, de que se retorne à realidade e de que se ouça com mais atenção a voz simbólica da imaginação. Foi assim que se inventou a roda, o pão, o livro e a máquina a vapor. O pensamento utópico, escatológico e salvífico só inventou a guilhotina, a câmara de gás e o gulag.

Assim, nesta fatal encruzilhada que nos coage à dilucidação de tudo o que se testemunhou nos meses que passaram, convém perceber que tipo de sociedade se quer ser em 2020: a que constrói o pão e o livro ou a que constrói executórios para quem não se insere na ortodoxia utópica em vigência.


(Texto escrito a 31 de Dezembro de 2019.)