Desde inícios do século XIX que as emancipações europeias dos judeus
provocaram, em variáveis graus de intensidade, movimentos motivados pelo
anti-semitismo, reconstruindo sob um perfil cada vez mais politizado um
sentimento social anti-judaico que, em principal na Europa central e de
Leste, possuía origens antigas. Nos territórios germânicos, um estilo
particular de anti-judaísmo pugnava desde o dealbar da tipografia em
folhetos e folhas volantes; alguns de jaez protestante, incluindo os de
Lutero, e outros de cariz popular sem assinaláveis vínculos religiosos,
mas ambos similares na sua retórica e propostas — inclusive a do
extermínio da “raça” judaica.
A ideia de uma maciça matança de todos os judeus fazia, desde essas alturas, parte da cultura das populações desses territórios e já no século XX, a partir de 1905, o ex-cisterciense austríaco Lanz von Liebenfels publicava na sua revista Ostara artigos de campanha para o extermínio dos judeus. Fundador da sociedade cavaleiresca Ordo Novi Templi, von Liebenfels antecipou em décadas o uso nacional-socialista de uma bandeira com uma suástica.
Esta síntese mostra como o anti-judaísmo moderno dos séculos XVI a XVIII se “politizou” ao longo do século XIX após o movimento generalizado das emancipações dos judeus — aliás, nos territórios germânicos esse sentimento anti-semita tornou-se desde logo bastante expressivo, com o caso modelar de Karl Lueger, presidente da câmara de Viena e pioneiro no anti-semitismo de massas, politizado, com a criação do Partido Social Cristão, espécie de mimetismo da coeva Liga Anti-Semita Francesa. Assim, o anti-semitismo nacional-socialista enquadra-se nesta moldura referencial mais alargada de profundo sentimento anti-judaizante grassante há décadas — senão séculos — nos territórios germânicos e de Leste: a legislação anti-semita do regime nazi é em muitos aspectos uma adaptação de velhas proibições anti-judaicas promulgadas por séries de bulas papais e alvarás régios um pouco por toda a Europa. A novidade introduzida pelos nacionais-socialistas no campo do anti-semitismo europeu, como já sinalizou Raul Hilberg em A Destruição dos Judeus Europeus, foi o passo final em direcção ao extermínio — extermínio que, recorde-se, já vinha sendo proposto e teorizado em variadas formas há muito tempo sob a designação “questão judaica”, mas que a máquina de morte nazi implementava de modo industrial.
Não obstante, a singularidade do Holocausto não reside, em exclusivo, na imensidade industrial de horror em que consistiu o extermínio em massa de milhões de indivíduos e a profanação dos seus corpos para retirar-se “matéria-prima”, como cabelos, dentes ou gordura, mas na própria ideologia que orientou esse crime contra a humanidade: o facto de segundo o nazismo o Judeu ser o “inimigo global”. Isto, em suma, significa o seguinte: alguns países europeus cúmplices do nacional-socialismo que, contaminados pelo anti-semitismo, incorreram e participaram no Holocausto, eliminando em massa os seus judeus ou deportando-os dos seus territórios para a Alemanha, tinham como objectivo final a extirpação de judeus dentro das suas fronteiras, numa perspectiva puramente regional; já os nacionais-socialistas, em oposição, queriam, segundo o princípio de o Judeu como “inimigo global”, eliminar os judeus em todo o mundo.
O projecto de engenharia social nacional-socialista foi, pois, genocidário desde o início, evoluindo das para-militares Einsatzgruppen para os campos de concentração e extermínio. O genocídio global de todos os judeus foi um elemento basilar e intrínseco do nacional-socialismo. Mas o futuro do nazismo não ficaria por aqui: em Mein Kampf e, sobretudo, na segunda parte desse livro, publicada postumamente, delineia-se o extermínio dos judeus eslavos, americanos e, ainda, o extermínio no Ocidente de categorias ambíguas de indivíduos designados de inferiores, mestiços ou degenerados. A partir daqui compreende-se que depois de exterminados todos os judeus a identidade genocidária do III Reich pretendia estender o seu venefícuo manto sobre novos elencos de indesejáveis, criados em perpétua sucessão para preencher o lugar vazio deixado pelo “inimigo global” e alimentar a máquina de morte já montada — o Reich de Mil Anos, parúsia hitleriana de pendor milenarista (como milenaristas foram outros totalitarismos novecentistas) construir-se-ia sobre um perpétuo crematório em actividade. A singularidade do Holocausto reside na sua filosofia mortífera de um assassínio humano global e perpétuo. Com efeito, na sua ambição internacional e ininterrupta, não se encontra nada parecido na história: o Holocausto é, de facto, único. Singular.
(Imagem: assassínio de judeus por uma Einsatzgruppe.)
A ideia de uma maciça matança de todos os judeus fazia, desde essas alturas, parte da cultura das populações desses territórios e já no século XX, a partir de 1905, o ex-cisterciense austríaco Lanz von Liebenfels publicava na sua revista Ostara artigos de campanha para o extermínio dos judeus. Fundador da sociedade cavaleiresca Ordo Novi Templi, von Liebenfels antecipou em décadas o uso nacional-socialista de uma bandeira com uma suástica.
Esta síntese mostra como o anti-judaísmo moderno dos séculos XVI a XVIII se “politizou” ao longo do século XIX após o movimento generalizado das emancipações dos judeus — aliás, nos territórios germânicos esse sentimento anti-semita tornou-se desde logo bastante expressivo, com o caso modelar de Karl Lueger, presidente da câmara de Viena e pioneiro no anti-semitismo de massas, politizado, com a criação do Partido Social Cristão, espécie de mimetismo da coeva Liga Anti-Semita Francesa. Assim, o anti-semitismo nacional-socialista enquadra-se nesta moldura referencial mais alargada de profundo sentimento anti-judaizante grassante há décadas — senão séculos — nos territórios germânicos e de Leste: a legislação anti-semita do regime nazi é em muitos aspectos uma adaptação de velhas proibições anti-judaicas promulgadas por séries de bulas papais e alvarás régios um pouco por toda a Europa. A novidade introduzida pelos nacionais-socialistas no campo do anti-semitismo europeu, como já sinalizou Raul Hilberg em A Destruição dos Judeus Europeus, foi o passo final em direcção ao extermínio — extermínio que, recorde-se, já vinha sendo proposto e teorizado em variadas formas há muito tempo sob a designação “questão judaica”, mas que a máquina de morte nazi implementava de modo industrial.
Não obstante, a singularidade do Holocausto não reside, em exclusivo, na imensidade industrial de horror em que consistiu o extermínio em massa de milhões de indivíduos e a profanação dos seus corpos para retirar-se “matéria-prima”, como cabelos, dentes ou gordura, mas na própria ideologia que orientou esse crime contra a humanidade: o facto de segundo o nazismo o Judeu ser o “inimigo global”. Isto, em suma, significa o seguinte: alguns países europeus cúmplices do nacional-socialismo que, contaminados pelo anti-semitismo, incorreram e participaram no Holocausto, eliminando em massa os seus judeus ou deportando-os dos seus territórios para a Alemanha, tinham como objectivo final a extirpação de judeus dentro das suas fronteiras, numa perspectiva puramente regional; já os nacionais-socialistas, em oposição, queriam, segundo o princípio de o Judeu como “inimigo global”, eliminar os judeus em todo o mundo.
O projecto de engenharia social nacional-socialista foi, pois, genocidário desde o início, evoluindo das para-militares Einsatzgruppen para os campos de concentração e extermínio. O genocídio global de todos os judeus foi um elemento basilar e intrínseco do nacional-socialismo. Mas o futuro do nazismo não ficaria por aqui: em Mein Kampf e, sobretudo, na segunda parte desse livro, publicada postumamente, delineia-se o extermínio dos judeus eslavos, americanos e, ainda, o extermínio no Ocidente de categorias ambíguas de indivíduos designados de inferiores, mestiços ou degenerados. A partir daqui compreende-se que depois de exterminados todos os judeus a identidade genocidária do III Reich pretendia estender o seu venefícuo manto sobre novos elencos de indesejáveis, criados em perpétua sucessão para preencher o lugar vazio deixado pelo “inimigo global” e alimentar a máquina de morte já montada — o Reich de Mil Anos, parúsia hitleriana de pendor milenarista (como milenaristas foram outros totalitarismos novecentistas) construir-se-ia sobre um perpétuo crematório em actividade. A singularidade do Holocausto reside na sua filosofia mortífera de um assassínio humano global e perpétuo. Com efeito, na sua ambição internacional e ininterrupta, não se encontra nada parecido na história: o Holocausto é, de facto, único. Singular.
(Imagem: assassínio de judeus por uma Einsatzgruppe.)