domingo, 27 de setembro de 2020

Centros, n.º3

A arduidade de muitas práticas contemplativas que diversas religiões exigem aos crentes constitui uma prova mais do que suficiente de que o Homem não foi feito para o silêncio: assente na oralidade e na escrita, a linguagem é uma forma de vida na aventura humana, reproduzindo-se de indivíduo para indivíduo, coagindo artífices da palavra a transmutá-la e resignificá-la. Mais do que ser uma interrupção da unidade da inconsútil manta discursiva, a assonia do silêncio é um espaço de ausência do humano; logo, o lugar do sagrado, na perspectiva de que o sagrado é, sempre, a antítese do humano, uma formidável força antropofóbica, porque nas crenças que admitem o contacto do homem com o númen, aquele tem de transcender a carne, qual crisálida ou casca de suas primícias, de molde a ascender da plataforma profana que é este mundo.

A percepção de que o silêncio era sagrado — e intangível — expressa-se nos pânteos paleolíticos, preenchidos por divindades teriomórficas, amálgamas de homem e animal, em desiguais graus de hibridez. Esculpido há quarenta mil anos num dente de mamute, o Homem-Leão de Hohlenstein-Stadel representa essa característica da religiosidade primeva: descoberto numa caverna dos alpes suábios, na Baviera, uma semana antes do início da Segunda Grande Guerra, este ídolo de uma Europa tão antiga que poder-se-ia apelidar de mítica, ergue-se em trinta centímetros de altura — pouco mais alto que um gnomo de jardim (outra criação das alpinas latitudes germânicas) —, enfrentando com confiança felina o olhar dos observadores. É um macho sem juba, segundo o figurino do extinto leão das cavernas europeu, espécie cujos últimos descendentes ainda foram caçados pelos antigos gregos e romanos. Este é o Leão de Nemeia, fabulosa fera chacinada por Herácles no seu primeiro trabalho: o último filho de Équidna, primordial mãe de todos os monstros, irmão mudo da Esfinge. O silêncio e a ferocidade, apanágios dos deuses, anaglifados por lâmina de pedra; arrancados, por esse lítico fórcipe, do útero da matéria-prima animal até a cintilante e imaterial sefira do sonho.

O seu homuncular corpo não se encontra anediado pela erosão milenar, mas pelos ininterruptos afagos dos crentes: isto é adoração no estado mais puro — carícia, beijo, prometimentos contra a miséria dos elementos. Contra a fome e contra o desespero, o Homem-Leão foi venerado na sua despojada gruta: santuário ‘ad fontes’ de todos os templos seguintes. A sua silhueta ainda transmite uma firmeza simultaneamente autoritária e compassiva, de quem, em segredo, gostaria que as presas humanas se tornassem seus filhos. Os deuses não falam, porque ensinam pelo exemplo.

Não obstante, nós falamos — com efeito, não somos capazes de ficar em silêncio. Mussitamos suaves orações, rogamos de voz entrecortada pela desesperança, quando não amordaçada pela própria morte em leito hospitalar cercado de crípticos e cruéis instrumentos. Procuramos a luz fosca da memória; tão fosca quanto uma candeia acesa numa caverna — e igualmente frágil. As palhas da memória precisam do fogo da imaginação.

Esta é a verdade da condição humana: comunicar com o numinoso e ominoso silêncio dos deuses, transcender os contornos do Antropos em direcção ao zoomorfismo silencioso e sagrado das bestas. Homem-Leão, Homem-Pássaro, Homem-Peixe: os elementos não aprisionam o humano transfigurado. E no entanto — uma semana depois de o Homem-Leão ter sido descoberto, deflagrou a barbárie: o mesmo território que deu à luz o monacal Homem-Leão também vomitou o Holocausto. O Homem é um construtor: ergue catedrais e câmaras de gás; fabrica deuses e crucifica-os. Sozinho no universo, só ele inventa o Céu e o Inferno.

A vantagem de idolatrar o silêncio, como bem sabiam os aurignacenses, é que, ao contrários das vociferantes ideologias e credos contemporâneos, não nos é dito como nos devemos comportar: isso — tal como a opção entre cultivar ou não a imaginação — é uma escolha de cada um.

Centros, n.º2

Do rol de confusões da contemporaneidade, uma que me desgosta especialmente é o erro de achar-se que Ciência é o mesmo que Tecnologia e que esta é o mesmo que Fé na tecnologia — a fé de que o desenvolvimento geométrico de comodidades tecnológicas remirá o ser humano das armadilhagens do seu atávico irracionalismo.

É uma percepção positivista, brotada da fonte das Luzes, esta de que moléstias sociais, como o crime, a loucura e o vício, podem, em última análise, ser extirpadas através da aplicação rigorosa de leis racionais, executadas por governos científicos ou tecnológicos. Os antigos Gnósticos acreditavam que o conhecimento libertaria o Homem — não se tratava de sabedoria, como hoje a entendemos, mas a árdua descoberta de que se estaria encasulado numa ilusão colectiva criada por um demiurgo diabólico. Não obstante, o topos de que o conhecimento liberta, e a metafísica aprisiona, permeia toda a Época Contemporânea e a fé resoluta — obstinada — de que o conhecimento racional, alcançável pela ciência e pela tecnologia, resolverá todos os problemas (mesmo quando se comprova que esse conhecimento nada tem de conhecimento e nada tem de científico). A figura electromecânica do robô, ícone futurista por excelência, é uma preclara representação do Homem Contemporâneo: programado para executar tarefas de modo eficaz — logo, de modo racional —, o nosso sósia cibernético ignora completamente tudo aquilo que identifica um ser humano enquanto tal, começando pela irracionalidade, o erro, o transcendente.

Em oposição ao robô, o Homem é uma criatura transcendental: uma mente divina reclusa num corpo animal, falível e deslustrada, capaz de construir uma catedral e, em seguida, escavar uma vala comum. Talvez a melhor forma de garantir que a catedral seja sempre mais alta que a profundidade da vala comum seja admitir a natureza irracional do Humano. Muitos mais cadáveres foram enterrados pelo Sono da Razão que por todos os Sonos anteriores: por trás de cada genocídio ou utopia totalitária novecentistas encontra-se sempre um plano de utilitarismo científico, servido pelos últimos gritos tecnológicos. Do mesmo modo que amputar um órgão não o torna mais eficiente, é uma loucura esperar que processos de desumanização construam seres humanos mais perfeitos. A ser alguma vez forjado, o Homem Novo com que sonham todas as Utopias não será mais do que um robô.

A arte, o sonho, o amor — até a Ciência —, tudo aquilo que identifica um ser humano como humano não é produzido na prancheta de modo canhestro a régua e esquadro: procede da nossa pré-história mental, de um tempo em que muito antes de se pensar em racionalidades, economias e tecnologias, artistas paleolíticos deixavam as mãos impressas nas paredes das grutas — essas mãos dizem-nos “sou eu”, “estou vivo”, “isto foi o que sonhei”. É umbilical, esta poderosa e telúrica energia somente minerada no lugar mais occipital do nosso pensamento, escondida sob compactas camadas de escória mediática e ideológica: penetre-se essa espessa parede, derrube-se as rochas do suposto racionalismo e, ei-las!, as nossas próprias mãos impressas no estrato mais primitivo. Sempre emergentes em tempos de crise da fantasia.

Com efeito, só a fantasia poderá salvar o Homem dos infortúnios da racionalidade, da miséria da acção funcional, da pressão entrópica do utilitarismo. Este é, à maneira gnóstica, um conhecimento perdido que urge encontrar. Se, como dizia Dostoiévsky, “o homem é um animal que se habitua a tudo”, habituemo-nos a fantasiar, a contemplar as mãos na parede da caverna.

Esta foto é de uma fonte esculpida no início do século XVI, no reinado de D. Manuel: representa o rei e a irmã, D. Leonor, na forma de uma serpente bicéfala que jorrava água por ambas as bocas (sabe-se que são o rei e a irmã, porque estão identificados com as suas divisas pessoais, a esfera armilar e o camaroeiro). Não me recordo de outro caso de representação análoga a esta no espaço europeu e penso que este artefacto singular diz muito sobre como uma sociedade e uma civilização podem aprender a fantasiar. A aceitar que a natureza humana é mitológica e metafísica, em oposição a ortogonal ou positivista. A aceitar que a natureza humana é dupla — sagrada e profana; transcendental e reptante como uma serpente. E, como esta, que é da água, anfíbia.

Uma Lisboa feliz produziu uma fonte feérica, simultaneamente rébus e rebis; puro divertimento contra o desespero e o Apocalipse. Porém, quais são os símbolos do nosso tempo? Onde estão as hodiernas mitologias que nos dão sentido? Não existem: vivemos num mundo artificial e desalmado. Não imaginamos nada, porque imaginar é um atavismo irracional.

Mas não tem de ser assim para sempre.

Centros, n.º1

 

Só aqui o Sol se torna luminífero; apenas aqui o tempo se olha, perdulário, ao enorme espelho marinho. Perscrutáveis por cima, gelo e erva padronizam-se em auricerúlea heráldica, esférica e feérica — sonial partícula, fossilizada ao som de tafonómico poslúdio celeste, solene e imperturbável minueto.


Pois haverá outro centro cósmico que não seja aqui, onde as aves transformam em ninhos os excrementos das debulhas, onde a felpa das feras é tão branda ao tacto quanto as suas presas rasgam a carne? Em que outra esfera se poderá ouvir vagidos ensurdecedores de gigantes oceânicos, opacos num crepúsculo plutónico feito de breu abissal e órgãos bioluminescentes? Onde mais se aprende que o sangue sabe a ferrugem — e onde mais haverá sangue e ferrugem?

Quão confortável é o polinomial niilismo do menosprezo da nossa excepcionalidade. Talvez só os loucos e as crianças acreditem que é aqui o centro universal. Olhando-nos do espaço, isso é uma loucura e isso é uma criancice — mas olhando-nos daqui, submersos em recendência e cacofonia, em nascimento e em putrefacção, picados por insectos e aguilhoados pela imaginação, aqui onde as árvores quase existem desde sempre e onde cada vida humana dura menos tempo que a cobreagem de uma folha, aqui a álgebra e a física não nos convencem da descentralidade: pois o centro do universo é aqui.

Nós somos todos centro. O nosso sofrimento intrínseco não resulta de queda ou de expulsão, mas de ferida feita por compasso.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Ninharias Essencias - nova série de David Soares

Na série Ninharias Essenciais, disponível no meu canal de YouTube, apresentar-se-ão curiosidades, enigmas e excentricidades da história - ninharias, mas essenciais.

No primeiro episódio, Inimigo do Género Humano, explana-se o significado e as mutações dessa peculiar designação histórica, partindo de um painel de azulejos do século XVIII, com Santo Antão atormentado por demónios, pertencente ao acervo artístico do Hotel Convento de São Paulo da Serra d'Ossa.

O segundo episódio, Burocracia e Finança, é uma observação histórico-etimológica sobre as origens das palavras ‘burocracia’ e ‘finanças’ e dos contextos cronológicos em que foram inventadas.

(Informo que o quinto episódio da série Pequenas Histórias será publicado em breve.)