sábado, 29 de junho de 2019

Um cronista americano


A nova adaptação do romance It, de Stephen King, estreada em 2017, evidencia o quanto este escritor americano deve a Lovecraft na tentativa de edificação de um universo negro coeso; em principal, na série de livros The Dark Tower, espécie de mapa e breviário desse mundo autoral, o arranjo taxonómico dos agentes do mal e do bem parece feito propositadamente num plano cósmico que remete para concepções lovecraftianas — especialmente na natureza extraterrestre daqueles que, poder-se-ia pensar, seriam demónios

O monstro de It, já o sabíamos do romance, é uma entidade espacial — extraterrestre, por conseguinte —, mas comporta-se tal qual um demónio das mais tradicionais concepções demoníacas assacadas da teologia: passando ao lado do facto de que não é fácil conjectuar sobre como se comportaria um extraterrestre, na literatura de bruxaria é prerrogativa dos demónios 1) conhecer as propriedades ocultas (pensamentos dos homens, inclusive) porque os seres espirituais vêem a essência das coisas, assim como 2) usar essas propriedades ocultas de modo físico, mas ilusório, de maneira a ludibriar vítimas humanas e 3) por fim consumir as almas ou, pelo menos, manietá-las. Em suma, estes são os poderes da Coisa, completa representação daquilo em que consiste um demónio, até na revelação final de que é feito de luz (éter). Com efeito, estas espécies de criaturas feitas de luz morta — deadlights, no original — são a criação mais lovecraftiana de King, pois quem olhar para essa luz ou morre ou enlouquece, um tropo desenvolvido por Lovecraft para reforçar a ininteligibilidade dos seus antagonistas extraterrestres, cujas formas arquitectadas para além da compreensão humana enlouqueciam quem as contemplava.

Porém, King não é Lovecraft: não só lhe falta uma certa petulância aristocrática que Lovecraft injectava nos seus textos e que funcionava muito bem (King é, em oposição, uma voz totalmente popular, da rua, e muito mais sentimental), como as criaturas que inventa não descolam do plano terreno — estão demasiado interessadas nas personagens humanas para que o sentimento de altivez alienígena se faça sentir. São, em suma, demónios secularizados.

Nesse aspecto, quase todos os vilões preternaturais da cultura popular dos ultimos setenta ou oitenta anos são demónios ou entidades espirituais secularizadas, postas em cenários "científicos" ou materialistas. Assim, o modo de derrotá-los é, de igual modo, secular, plebeu: em It, para regressar ao tema, o grupo de miúdos vence o vilão, obrigando-o a hibernar forçadamente, somente por ultrapassar o medo que sentem por ele. No romance a estratégia encontra-se melhor explanada e até tem um nome (o Ritual de Chüd), cifrando-se numa espécie de braço de ferro mental entre crianças e criatura, que deixa esgotadas as primeiras. No fundo é a ideia secular que "o poder está dentro de nós", atomização no indivíduo de uma ajuda espiritual tradicional. Aqui não há necessidade de introduzir conhecimento (grimórios, objectos) na luta contra o mal: basta "ter coragem". Nem o sinal da cruz pica o ponto, mesmo como mera coordenada cultural do mundo em específico no qual a acção decorre. Neste ponto, a ficção de Lovecraft conceptualiza com mais realismo a natureza humana e a natureza alienígena das suas entidades: estas não estão interessadas em dialogar connosco e nós não temos nenhuma capacidade intrínseca de derrotá-las. Lovecraft é um escritor ateu e as suas criaturas também o são! O mais perto que King andou deste conceito foi no conto The Mist, em que um rombo inter-dimensional deixa entrar na nossa esfera de existência uma macrofauna que levará em pouco tempo o ser humano à extinção (a adaptação para cinema deste conto é muito eficaz, mas o final, embora poderoso, já não comporta o niilismo lovecraftiano original).

No fundo, a minha crítica é dirigida à incoerência interna dos elementos semânticos: sou incapaz de ver na Coisa uma entidade cósmica com milhões de milhões de anos de existência. Só vejo um demónio cristão secularizado colocado num contexto secularizado de luta contra o Mal. No livro, o astigmatismo é ainda pior, porque esse contém outras entidades cósmicas, do Bem, que dão uma mãozinha para derrotar o monstro.

King brilha com grande luz é na construção de ambientes e personagens: poucas vezes se encontram personagens tão bem caracterizadas e com personalidades tão bem buriladas. O paradoxo de King é que, apesar da sua grande imaginação e capacidade inventiva, ele é bem capaz de ser um melhor escritor pós-realista, uma espécie de Faulkner para o século XXI, ponha-se nestes termos, que um escritor do sobrenatural. Este lado mais "literário" de King costuma vir à tona nos contos e nos textos de menor dimensão, como no intrigante The Girl Who Loved Tom Gordon ou nas emocionantes colectâneas Different Seasons ou Hearts in Atlantis, que contém retratos notáveis de uma América profunda, secreta e lírica. Não é à toa que dois dos melhores grandes filmes das últimas décadas sobre a América (Stand by Me de Rob Reiner e The Shawshank Redemption de Frank Darabont) tenham sido adaptações de dois contos de King de Different Seasons. O lugar de King nas letras americanas já estará garantido, precisamente, pelo seu talento de cronista do seu tempo, de intérprete do Espírito americano.