Para ser sincero, um convite para falar sobre os livros da minha vida  soa como o som trítonocárpico das falanges da mão da morte a bater-me à  porta, pois se a invitação se refere aos livros da minha vida, então  tenho de aceitar que ela está perto do fim e não vou ter tempo de ler  mais nenhum título: 
mortis en solatium. Talvez. De qualquer das  formas, os livros da minha vida – no mínimo da que vivi até este  momento; e no limite até ao final da escrita deste texto – não são  apenas os livros que eu li, mas aqueles que escrevi. De uma forma ou de  outra, os livros são uma parte muito importante da minha vida, porque a  leitura e a escrita são duas ocupações às quais devoto a maioria das  horas. No início deste parágrafo empreguei o verbo 
falar,  porque é isso mesmo que estou a fazer convosco: a contar-vos um  bocadinho de que é feita a minha experiência com os livros. Apenas um  bocadinho – é, somente, uma precaução da minha parte, de modo a evitar a  insolvência de memórias e garantir que me sobra algo sumarento para  pagar ao barqueiro, porque o maior pecado que se pode cometer, mesmo  depois de morto, é o da negligência.
Aprendi a ler com a ba

nda desenhada 
Donald e as Formigas, de Carl Barks, publicada em Portugal pela Editora Abril/Morumbi no número 1500 da série quinzenal 
Pato Donald.  Decorria o ano de 1981, e eu, sentado no sofá da sala de estar da casa  dos meus pais, observava com atenção as vinhetas e tentava decifrar as  palavras contidas nos balões. Então, num momento inesquecível, que eu só  posso comparar com o acender de uma luz dentro da minha cabeça, as  personagens deixaram de falar para os balões e começaram a falar para  mim: compreendi que não estava a inventar os diálogos, como costumava  fazer, mas a ventriloquar as verdadeiras vozes das personagens – 
estava a ler. O mérito foi, também, da minha mãe, porque ela mantinha a rotina de  sentar-se comigo para me ler histórias; do Pato Donald, mas também do  Mickey, do Musti e do Petzi. Ela ensinava-me a sonoridade das letras e  como elas se harmonizavam e esses ensinamentos fizeram com que eu  aprendesse a ler sozinho. Essa conquista primeva de infância foi um dos  momentos mais importantes da minha vida, porque aprendi a lidar com  palavras antes de ser capaz de me desembaraçar sozinho na casa de banho.  Se a vida e a morte são um único movimento circular, prefiro, em  simetria, no meu último leito, seja ele qual for, perder a elasticidade  entérica em vez da elasticidade da imaginação. Por tudo isso, de modo  inexcedível, esse número 1500 do 
Pato Donald, com uma capa que,  à distância, me evoca até a heteronímia pessoana na multifaria de  Donalds diferentes que a decoram, é um dos livros da minha vida.
Outra memória m

ucípara, resgatada desses tempos das criancices, prende-se com 
O Grande Livro do Maravilhoso e do Fantástico,  publicado pelas Selecções do Reader’s Digest, em 1977. Descobri-o em  casa de uns tios, em meados da década de oitenta, e fiquei apaixonado  pelos relatos assustadores que continha: vampiros, fantasmas, assassinos  em série, exploradores do passado e do futuro, demónios e bruxas,  monstros humanos, invenções fabulosas, extraterrestres, animais  quiméricos… No final dessas visitas, os meus pais vinham resgatar-me do  meu refúgio chegado à varanda, onde me sentava com o livro no colo, e  eu, mais desconsolado que Jeremias, tinha que me separar dele. Passados  poucos anos, em outra visita, convenci os meus tios a emprestarem-mo. (É  claro que ainda o tenho.) Muito, muito, muito texto desse livro  saboreei ao longo de tardes que pareciam imensas, enquanto comia  bolachas 
Catraias da Triunfo, com os signos do Zodíaco,  barradas com manteiga. Acho que aquilo que esse livro me mostrou foi que  era possível as maravilhas e as monstruosidades existirem no mesmo  mundo: uma histonomia excêntrica, composta de sofisticação cosmopolita e  folclore medonho. Também é um livro que, de certo modo, me influenciou a  ser céptico, porque apresenta inúmeras secções que desmistificam  historietas e lugares-comuns da História: verbetes que eu acho  fascinantes. A mistura de proto-esoterismo, História, ciência e fantasia  abarcada pelo 
O Grande Livro do Maravilhoso e do Fantástico faz dele, sem dúvida, outro dos livros da minha vida.
A memória é a únic

a língua com a qual podemos falar com  os mortos e os sonhos são os únicos lugares em que os podemos  encontrar; às vezes, perder alguém é perder uma âncora que nos agarrava a  um determinado local e encontrar o pé, novamente, dá trabalho, mas  encontrá-lo é preciso. O terceiro livro da minha vida que me lembrei de  vos falar é um pequeno volume, que estava na casa do meu avô, e que se  chama 
Doenças dos Bichos de Nogueira de Araújo, publicado pelo Ministério da Educação Nacional, em 1973. O subtítulo é 
Memórias de um Veterinário Rural  e consiste num comedido compêndio no qual as informações  zooterapêuticas são veiculadas através de histórias ilustradas. Não faço  ideia porque é que os meus avós tinham esse livro, mas sempre o achei  hipnotizante; em especial, a ilustração de um cavalo infectado com  tétano, acompanhada pelo retrato detalhado do bacilo anaeróbio  responsável. Lembro-me de passar uma tarde de Sábado em casa dos meus  avós a ler o 
Doenças dos Bichos e a desenhar o Homem Elefante,  do filme homónimo de David Lynch, que passara à noite nessa semana.  Lembro-me desse desenho: era uma criatura careca e deformada, com mãos  minúsculas e olhos tão esbugalhados quanto os do Cão Grande do conto  fantástico de Andersen – muito diferente do protagonista da película,  mas era assim que eu achava que um verdadeiro Homem Elefante deveria  ser. Com curiosidade, procurava no 
Doenças dos Bichos a sua estranha patologia, que um vizinho que estava de visita erroneamente me disse ser elefantíase.
Os livros da minha vida são, também, como indica o título desta  rubrica, os das minhas vidas, porque as pessoas que fui quando os li e  quando os escrevi são um pouco diferentes da que sou neste instante.  Porém, tanto uns como os outros são melhores que os sonhos em que  podemos visitar os nossos mortos, porque basta tirá-los das estantes  para conversarmos com versões mais jovens, mais optimistas e mais  ousadas de nós próprios. Versões que já morreram, evidentemente, mas é  mantendo essas presenças do passado na biblioteca que construímos  carácter e perduramos no tempo. Escrever é trancar a porta pela qual a  morte quer entrar, mas ler é abrir janelas.
(Texto publicado originalmente no número nove da Revista BANG!, editada pela Saída de Emergência.)