Em vez de ressurgimento
da extrema-direita europeia, denomino de ressurgimento extremo-direitista europeu os êxitos
alcançados por partidos anti-europeus nas passadas eleições europeias, porque
não existirá, de facto, uma extrema-direita europeia unívoca, homogeneizada
numa ideologia e num programa político circunscritos, mas uma panóplia de diferentes
resistências ao projecto europeu e à globalização, classificáveis como sendo de
extrema-direita. Com efeito, o ingrediente comum e conglutinante de todas essas
forças será, em maior espessura, a recusa do referido projecto europeu; alavanca
pela qual se guindaram à própria estrutura do parlamento europeu e dentro do
qual esperam arruiná-lo. Propinadas pelo desprendimento, pela permissividade e,
em alguns casos, pela cumplicidade das democracias, as forças
extremo-direitistas europeias mais perspicazes e melhor financiadas aprenderam a
instrumentalizar a própria democracia para os seus fins antidemocráticos.
Embora sejam herdeiras
dos movimentos reaccionários de massas europeus que deram abrigo a alguns dos piores
crimes de guerra e crises sociais do século XX, como o fascismo e o nacional-socialismo,
estas novas forças extremo-direitistas europeias não são, no todo, idênticas aos seus antepassados
epistemológicos. Pressurosamente arvoram esses antecessores em jeito de
legitimação ou como marketing de
choque para satisfazer apoiantes e financiadores mais radicais, mas fazem-no de
maneira sincrética e puramente propagandística: é que a memória dos crimes de
guerra e dos horrores sociais perpetrados pelas forças extremo-direitistas europeias da
primeira metade do século XX são, ainda, a única membrana que impede as forças extremo-direitistas europeias contemporâneas de invadirem os órgãos centrais; razão pela qual, nimiamente,
elas procuram alvos retóricos mais ou menos consensuais nestes novos tempos de
carestia de vida.
Agarrando o modelo
plasmado pela chamada Nouvelle Droite,
em finais da década de setenta do século passado, as forças extremo-direitistas
europeias contemporâneas compõem um rol de partidos ideologicamente conservadores, de pendor antiglobalizante,
eurocépticos e xenófobos que, paulatinamente, penetraram no espaço político europeu
– às vezes, até nos parlamentos de diversos países – brandindo um discurso populista anti-imigração, cuja tónica impressa na segurança e na defesa da nação tenta obscurecer os reais
motivos de intolerância etnocêntrica que o inflama. Nessa lista de partidos europeus extremo-direitistas
contam-se, entre outros, a Deutsche
Volksunion e os Republikaner alemães,
o Vlaams Belang belga, o Dansk Folkeparti dinamarquês, a Lega Nord italiana, o Fremskrittspartiet
norueguês, o Schweizerische Volkspartei
suíço, a Front National francesa, o
Partido Nacional-Renovador português e o UK
Independence Party inglês. São, classifique-se assim, uma vaga extremo-direitista
europeia dissemelhante daquela que se materializou no período imediato à segunda grande
guerra, encabeirada por associações de assumida continuidade fascista e nacional-socialista
– como o Movimento Sociale italiano e
o Sozialistische Reichspartei alemão.
É, aliás, a partir das criações de organizações deste tipo que se quadra a decomposição dessas ideologias
extremo-direitistas europeias, fibriladas por grupos como a Union de Défense des Commerçants et Artisans
francesa, o Nationaldemokratische
Partei Deutschlands alemão
e o Boerenpartij holandês, por
exemplo, e se verifica o surgimento de divergências mais fundas que sobraçam novas
realidades continentais, como a islamofobia, o discurso anticapitalista, a rejeição da moeda
oficial da União Europeia e a abolição do Acordo de Schengen. De todos os partidos europeus extremo-direitistas contemporâneos é provável que o mais influente seja a Front National francesa, cuja cabeça
histórica, Jean-Marie Le Pen, advogou há cerca de cinco dias o uso do vírus hemorrágico
ébola para “resolver definitivamente a questão da imigração”, sentença que merece ser cotejada
com a vitória deste partido, liderado pela sua filha mais nova, Marine Le Pen, nas
passadas eleições europeias em França – ou seja, essa declaração lamentável não se terá traduzido em perda de eleitores.
No fundo, o programa
político das forças extremo-direitistas europeias contemporâneas é, somente, a
exploração, pela via da volatilidade, de fragilidades e de fracturas sociais,
sejam elas quais forem em determinado momento, preenchendo continuamente, mas
nunca completamente, essa espécie de vazio deixado à direita pelos movimentos
reaccionários de massas europeus do século passado. Assim como a negação do holocausto
tem como objectivo principal reabilitar o nacional-socialismo na praça pública,
os novos partidos europeus extremo-direitistas constroem muitas vezes uma imagem
publicitária que repele o rótulo de extrema-direita, sublinhando que, não sendo de
direita nem de esquerda, estão para além do sistema (como pode ouvir-se, tantas
vezes, na propaganda do partido grego neo-nazi Aurora Dourada e na propaganda
do partido húngaro neo-nazi Jobbik,
que se descrevem como sendo patrióticos e não como sendo de extrema-direita).
Com efeito, residirá aqui um dos principais pólos de atracção destas
organizações para o eleitorado que se identifica com elas: o facto de se
apresentarem como partidos anti-sistema, estratégia que se serve da ubíqua
descrença pública na capacidade de representatividade democrática dos partidos
políticos. A família extremo-direitista europeia apela ao voto das massas,
transfiguradas para efeito retórico em povo soberano, mas desrespeita-as
quando, propositadamente, confunde democracia com oclocracia no seu palavreado antidemocrático
e anti-sistema – algo que, infelizmente, não parece ser evidente para os seus
eleitores. A verdade é que, hoje, a poucos anos de distância dos primeiros centenários das
criações do fascismo e do nacional-socialismo, estas ideologias contra-revolucionárias de massas
tornaram-se algoritmos universalmente aplicáveis que não dependem, de modo
algum, de condições análogas aquelas que serviram de parteiras aos seus
nascimentos para medrarem novamente. As organizações extremo-direitistas europeias da
primeira metade do século XX respigaram elementos do Antigo Regime monárquico-absolutista
e de movimentos contra-revolucionários, como o nacionalismo católico e o
anti-parlamentarismo. As novas forças extremo-direitistas europeias não só não
abandonaram essa matriz, como a transformaram sob a estratégia de uma procura de legitimação pelo sufrágio e através da liberdade de expressão: são autênticos cavalos
de tróia infiltrados no espectro político. Sabotadores da democracia.
São, também, uma herança
da Europa, é preciso lembrar. Se, infelizmente, crescerem da sua presente marginalidade e contribuírem para dissolver
o actual projecto europeu isso consistirá em mais uma dissolução violenta da
Europa por si mesma; em mais uma manta de retalhos de novos estados desfeitos
para ser outra vez remendada de diferente feitio num futuro mais ou menos
distante. À medida que outras sociedades ocidentais e não-ocidentais se desenvolvem e enriquecem sem
agência europeia, a Europa corre o risco, não de tornar-se um grande museu,
como tem sido pugnado com mais nostalgia do que ironia por alguns adivinhos da
desgraça, mas num gueto de fratricidas enclausurados pela prosperidade e
cupidez dos seus vizinhos. Não seria nenhuma novidade.