quarta-feira, 14 de maio de 2014

Breves apontamentos sobre as touradas


Recentemente, vi parte de um episódio do programa televisivo Prós e Contras em que o tema de debate foi a tourada e isso infundiu-me a apontar aqui algumas meditações que tenho sobre esse assunto. Vale a pena começar por esclarecer que não gosto de touradas, logo o meu discurso não será simpático para com elas, mas estou longe de ser antitouradas, assim como considero desimaginoso e desanimador o desenho que, por vezes, aqueles que o são riscam sobre os aficionados, caracterizando-os como sendo pessoas perversas e carenciadas de empatia. Admitindo a falta de indicadores estatísticos que me comprovem a minha seguinte suposição, aposto com segurança que a maioria dos aficionados (para efeito de simplificação incluo neste grupo todos os agentes que fazem parte do mundo das touradas, espectadores e não só) não são assassinos, nem criminosos, nem psicopatas: são, somente, indivíduos comuns que gostam de touradas, que têm paixão por elas e que sobre elas projectam uma série de conceitos e valores positivos que escapam à leitura de todos aqueles que não gostam de touradas.

Embora me choque a conjunção de brutalidade e artificialismo que consubstancia o espectáculo das touradas não é tanto pela via da violência que se desenvolve o meu desgosto por elas. Na verdade, os circos ferem muito mais a minha sensibilidade do que as touradas. Aquilo que me faz desgostar de touradas é, notadamente, o facto de achá-las repetitivas, aborrecidas e anacrónicas: resquícios de uma congeminência cultural que, hoje em dia, não faz o sentido que fazia há, digamos, trezentos ou quatrocentos anos. Nesta óptica, penso que a proibição seria ineficaz, porque sendo a tourada uma tradição ou uma quasitradição só poderá desaparecer na mesma feição que todas as tradições desaparecem: quando deixam de veicular os desejos e as aspirações de uma comunidade.
Em rigor, a extinção das touradas passará por renovações naturais que, provavelmente, nem sequer estarão relacionadas com elas, mas com o modo como nós, enquanto sociedade, vamos criando outros costumes e novos processos de sentir o colectivo, muito mais sintonizados com a nossa contemporaneidade – o que vai acontecendo. Escrevo “sentir”, porque este fenómeno, como outros da mesma natureza, não investe através da razão, mas da emoção – e é pela via da emoção, colectiva, claro está!, que ele terá de ser vencido, tal como foram outras tradições inúteis. As ingluviosas presas do tempo não se condoem com improficiências. O significado que daqui se assaca é que as touradas ainda reverberam de uma forma mais ou menos vibrante nos nossos dias – não para todos, é certo, mas, ainda assim, para muitos. Caso contrário, não existiriam. Isso parece-me transparente e ignorá-lo é fechar-se os olhos diante de uma realidade que marca o nosso património de ideias.

Falando em património de ideias vale a pena perguntar se, de facto, as touradas serão cultura. A pergunta responde-se a si própria, mas gostaria de contribuir para esta reflexão com a lembrança de que quando se fala de touradas enquanto cultura leia-se, a resistência do espírito de um grupo à erosão operada pela passagem do tempo assume-se, de modo erróneo, que elas sempre foram idênticas à sua taxonomia actual, quando, na realidade, já foram muitíssimo diferentes.
A tourada contemporânea é mais recente do que, à partida, a maioria do público, aficionado ou não, poderá pensar. O toureio a pé, com muleta e estoque, é uma inovação da tourada espanhola, (que sempre foi, em vero aspecto, menos aristocrática que a nossa), inventada à entrada do terceiro decénio do século XVIII, que entrou tardiamente em Portugal. Até os tropos actuais da tourada espanhola são uma invenção do início do século XX: simplesmente, não se encontram nas touradas seiscentistas ou setecentistas. Do mesmo modo, a prática portuguesa da pega do touro, realizada pelos forcados (dantes chamados moços de forcado ou boieiros), não possui um ascendente mais transacto que os meados do século XIX: hoje é apontada como sendo a mais igualitária, chamemos-lhe isso, das práticas tauromáquicas, mas, de facto, chegou a ser proibida pelas autoridades na segunda metade do século XIX, porque a consideraram demasiado violenta (cerca de 1890 já tinha sido reinstituída, todavia). A tourada portuguesa de setecentos, por exemplo, consistia num espectáculo mais selvagem – em violência e desorganização – do que a actual.
O toureio realizava-se sempre a cavalo, com o cavaleiro munido de um chuço para matar o touro, e os espectadores assistiam às mortes não-coreografadas e atrozes de touros, cavalos e, às vezes, alguns homens. Havia a prática do touro-de-fogo: gado que entrava na arena com fachos ou paus de fogo-de-artifício amarrados aos cornos ou ao pescoço; outra variedade de touro-de-fogo constituía no arremesso de guirlandas de granadas aos cornos dos touros. Podia ver-se lutas de touros com cães, lutas de touros com outros touros, espicaçados para o efeito, e encenações bizarras em que os touros eram levados a investir contra bonecos e outras composições feitas de madeira, papel ou tecidos coloridos que nos seus interiores continham coelhos e gatos vivos: quando os touros as desmanchavam, os coelhos ou os gatos fugiam, confundidos, mas eram, de imediato, mortos à cacetada por dezenas de escravos armados de porretes, que corriam pelo picadeiro à caça deles para grande gozo do público. Tudo somado, a autêntica tourada tradicional portuguesa foi esta e não a sua reencarnação recente, organizada e amansada às sensibilidades liberais de meados do século XIX, por conseguinte quando se declara que as touradas são cultura é preciso definir qual tourada está a ser trazida à colação: se esta ou a outra. Se é a outra, tem de perguntar-se se matar coelhos e gatos à cacetada é cultura. Se não é, tem de perguntar-se por que razão é que matar coelhos e gatos à cacetada não é cultura, mas matar touros com estoques ou com pontilhas é cultura. Mais à frente, oferecerei uma possível resposta para esta ambiguidade.

Tenho alguma hesitação em ver as origens da tourada nos espectáculos romanos de lutas de feras contra feras e de feras contra homens. É muitíssimo provável que a origem das touradas se trace a partir daí, mas também é possível que elas possuam uma origem mais enviusada em relação a essas representações. Seja como for, o que interessa para esta exposição é o facto de que os efeitos públicos de catarse das touradas e das lutas romanas de feras são aproximados, assim como são análogos ao efeito de purga popular provocado pelas lutas de ursos com cães e de cães com cães que podiam ser vistas nas principais praças das cidades do norte da Europa até meados do século XIX. Na maioria das vezes, os ursos eram acorrentados a um poste e cegados para que os cães – buldogues e boxers, raças criadas artificialmente para este fim em específico – os pudessem desfazer aos pedaços. Até em Portugal se contam alguns incidentes destes. Um dos principais divertimentos europeus foi o de queimar milhares de gatos em fogueiras: toda a gente trazia gatos dentro de sacos e chegava-se à fogueira para atirá-los às chamas. Existem descrições chocantes de como as gentes riam até rebolarem no chão ouvindo os gritos de sofrimento dos animais imolados. Durante algum tempo estas práticas também foram consideradas cultura. Se as touradas se inscrevem neste rol de passatempos públicos que envolviam o sofrimento de animais, por que é que ainda subsistem? Existem duas respostas plausíveis para esta pergunta, segundo o meu pensamento.
A primeira é a de que a tourada sobreviveu à selecção natural que extinguiu a maioria desses passatempos porque se foi tornando gradualmente um sistema altamente organizado no qual muitos sectores da sociedade participam; um pouco à semelhança, com as devidas distâncias, é claro, do futebol, um desregrado e brutal jogo de rua que foi amansado e sistematizado até à cristalização contemporânea. A segunda é o facto de que as touradas lidam com touros: animais abatidos para consumo humano. Quando se olha para as lutas de cães com ursos ergue-se à nossa frente uma dimensão ética enorme, porque a sociedade mudou e hoje os cães e os ursos são animais que, de modos diferentes, estão sob nossa patronagem: amamos os primeiros e protegemos os segundos. Em oposição, comemos os touros: são animais dos quais cuidamos, note-se, mas que não amamos, nem protegemos. É por essa razão que ainda existem touradas, mas já não existem ursadas, nem queimas maciças de gatos em fogueiras. Simplesmente, achamos que é mais ético objectificar na arena uma espécie animal que já é vista, à partida, como sendo um objecto – neste caso, um alimento. Não tenho dúvida nenhuma que, por responsabilidade de um desvio histórico qualquer, se tivesse passado a comer gatos e ursos em vez de touros, as ursadas e as gatadas seriam tão conspícuas e legais quanto as touradas, porque seriam os ursos e os gatos a ser objectificados. Uma boa maneira de vencer a paixão pelas touradas seria lembrar que não se deve brincar com a comida.

Termino esta explanação com a ideia de que acho ético comer-se touros. Recuso com veemência a argumentação dos vegetarianos radicais, dos veganistas, dos frugívoros e dos anti-humanistas disfarçados de ambientalistas que conculcam constantemente o valor da vida humana em benefício do estatuto superior que atribuem à vida animal. Há quem advogue até que os animais carnívoros deveriam ser extintos para que restassem apenas os animais herbívoros, mas comer carne não é nenhuma imoralidade, nem nenhum crime: crime é tratar como lixo os animais que se criam para consumo humano em sórdidos degoladouros que evocam as masmorras medievais. Melhores condições de criação e abate custam muito mais dinheiro e são muito mais difíceis de implementar, mas o preço a pagar pelas escolhas do barato e do fácil é a nossa desumanização. A tortura enxovalha a vítima e desumaniza o perpetrador. Não existe nenhum justificativo para a tortura.
Seja na prisão, seja no matadouro, seja na arena.