Não consiste em nenhuma capciosa conclusão a de que o humanismo de Quinhentos sintetizou a cultura clássica com o cristianismo, porque este, com efeito, dirige-se à dimensão somática do indivíduo, na completa acepção da corporalidade.
Em dois trechos dos evangelhos radica essa obvenção: em Mateus 4,4, a célebre expressão «nem só de pão vive o homem» comporta uma resignificância que intima a pensar que para a restante criação o pão é o suficiente, enquanto que o ser humano, criatura catabática, somente se sacia quando se anula a consciência da falibilidade, quando este, através da cultura, se projecta para além da sombra meramente existencial; o outro excerto, enantiomorfologicamente iterável com o primeiro, pode ler-se em Lucas 24,41, quando Cristo recém-ressuscitado aparece aos espaventados apóstolos e lhes pergunta «tendes alguma coisa que se coma?» — este simbionte antropalelopático do espírito com a carnalidade regressa com fome do além-túmulo, recompondo os seus elementos etéreos com o bocado de peixe assado dado pelos discípulos.
Este conjunto não-casuístico de ideias familiares a esta — e a que se pode adicionar aquela que está em Marcos 2,27, «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado», que rompe decisivamente com a subordinação mosaica do indivíduo diante do divino — é um repertório de representações revalorizadoras do humano que, no fundo, são já o prenúncio do profundo encentramento operado pelos humanistas cristãos do Renascimento.