sábado, 29 de junho de 2019

O dom da Última Palavra

Em cada período os indivíduos morrem de acordo com o espírito do seu tempo; e um dos aspectos mais deletérios da hodierna medicalização da morte é roubar-se aos moribundos o dom da Última Palavra — pois como podem proferi-la com tubos ensartados na boca?

Já não se crê que a alma vai adquirindo consciência de si enquanto se descarnifica e que, nesse revificante desamodorrar, alcança arcanos que olhos humanos são incapazes de perscrutar; não se atenta aos mussitares mortiços, plenos de memorabilia ultra-tumular, entoados com a desarmonia própria de sopros extintos. Trincafiados nos hospitais, amordaçados com látex ou silicone, os nossos mortos expiram em adiáfora aglossia, encarcerados em abjecto mutismo somente ferido por unissoantes monossílabos de desconforto — por vezes, é vertida por olhos sem luz uma peregrinante lágrima em reles reologia; quase sempre, secreções mucóides sarapintadas de sangue, padrões marginais de desespero.

Somos do tempo da morte açaimada.